A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

MIA COUTO

Biografia

 

1955

Moçambique Moçambique

Mia Couto nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi director da Agência de Informação de Moçambique, da revista Tempo e do jornal Notícias de Maputo.

Em 1983 publica o seu primeiro livro: Raiz de Orvalho (poemas); depois um livro de contos, Vozes Anoitecidas, premiado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, publicado pela Caminho em 1986. Em 1990 a Caminho publica o seu livro de estórias Cada Homem É Uma Raça e em 1991 Cronicando, também inicialmente publicado em Moçambique. Em 1982 sai o seu primeiro romance: Terra Sonâmbula. Em 1994 sai Estórias Abensonhadas, e em 1996 o romance A Varanda de Frangipani. Contos do Nascer da Terra, último livro do autor, saiu em Julho de 1997.

Nascido na Beira (Moçambique), em 1955, Mia Couto é considerado uma dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos que escrevem em português. Este estatuto incontestado deve-se não só à forma como descreve e trata os problemas e a vida quotidiana do Moçambique contemporâneo, mas principalmente à inventiva poética da sua escrita, numa permanente descoberta de novas palavras através de um processo de mestiçagem entre o português "culto" e as várias formas e variantes dialectais introduzidas pelas populações moçambicanas. Mia é assim uma espécie de mágico da língua, criando, apropriando, recriando, renovando a língua portuguesa em novas e inesperadas direcções. Tem, devido a essa autêntica revolução de inventiva linguística, sido muito apropriadamente comparado a um outro grande mágico da Língua Portuguesa do século XX, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa.

António Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto (uma alcunha que ele conserva desde infância), foi, desde 1974 e durante vários anos, director da Agência de Informação de Moçambique, seguidamente dirigiu o jornal Notícias de Maputo e a revista Tempo. Posteriormente, estudou Medicina e Biologia e é actualmente biólogo na reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique.

A escrita tem sido no entanto uma paixão constante, desde a poesia, com que se estreou em 1983 (A Raiz de Orvalho), até à escrita jornalística (bem presente no livro que reúne as crónicas escritas para o jornal "Notícias de Maputo", Cronicando) e à prosa de ficção. A questão do género literário não é, de resto, a mais importante para um autor em cuja escrita prosa e poesia se contaminam e que escreve "pelo prazer de desarrumar a língua".

Questões mais importantes reflectidas na sua obra são as relacionadas com a vida do povo moçambicano, um dos mais pobres e martirizados do mundo, recém-saído de 30 anos de guerra civil e onde persiste uma forte tradição de transmissão da literatura e dos saberes essencialmente por via oral. Numa cultura onde se diz que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde", Mia empreende uma escrita que liga a tradição oral africana à tradição literária ocidental, tal como no seu trabalho de biólogo liga, no estudo da floresta, o saber ancestral dos anciãos sobre o espírito das árvores e das plantas à moderna ciência da Ecologia. Essencial, num caso como noutro, é sempre a relação mais profunda entre o humano e a terra, entre um humano e outro humano, por vezes nas suas condições mais extremas, como no seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, saudado pela crítica como um dos melhores romances em português dos últimos anos e que descreve a luta pela sobrevivência durante a guerra civil em Moçambique.

Obra:

Poesia
A Raiz de Orvalho. Maputo: Cadernos Tempo, 1983.

Crónica
Cronicando
. Maputo: Notícias, 1986. Lisboa: Caminho, 1991.

Ficção
Vozes Anoitecidas
.(contos) Maputo: Assoc. dos Escritores Moçambicanos, 1986. Lisboa: Caminho, 1987, 3ª ed. 1995.
Cada Homem É uma Raça.(contos). Lisboa: Caminho, 1990, 3ª ed., 1994.
Terra Sonâmbula. (romance) Lisboa: Caminho, 1992; 2ª ed. 1996.
Estórias Abensonhadas. (contos) Lisboa: Caminho, 1994.
A Varanda do Frangipani. (romance) Lisboa: Caminho, 1996.
Contos do Nascer da Terra. (contos) Lisboa: Caminho, 1997.
Mar me quer. Lisboa: Colecção 98Mares, Expo'98 , 1997.

Sítios:

Vida e obra
   
http://www.terravista.pt/Bilene/1949/mia2.html

Vida e obra
   
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/mia_couto/index.html

 

Poesias Eternas

Companheiros

Perguntas à Língua Portuguesa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Companheiros

 

quero

escrever-me de homens

quero

calçar-me de terra

quero ser

a estrada marinha

que prossegue depois do último caminho

 

 

e quando ficar sem mim

não tereri escrito

senão por vós

irmãos de um sonho

por vós

que não sereis derrotados

 

 

deixo

a paciência dos rios

a idade dos livros

 

 

mas não lego

mapa nem bússola

por que andei sempre

sobre meus pés

e doeu-me

às vezes

viver

 

 

hei-de inventar

um verso que vos faça justiça

 

 

por ora

basta-me o arco-íris

 

 

em que vos sonho

basta-te saber que morreis demasiado

por viverdes de menos

mas que permaneceis sem preço

 

 

companheiros

 

topo

 

 

 

 

Perguntas à Língua Portuguesa

 

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

 

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

 

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

 

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

 

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.

 

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

 

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

 

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

 

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

 

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

 

A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

 

O mato desconhecido é que é o anonimato?

 

O pequeno viaduto é um abreviaduto?

 

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

 

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

 

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

 

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

 

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

 

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

 

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

 

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

 

Mulher desdentada pode usar fio dental?

 

A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

 

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

 

Um tufão pequeno: um tufinho?

 

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

 

Em águas doces alguém se pode salpicar?

 

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

 

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

 

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

 

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

 

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

 

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

 

11/04/1997

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