A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

LUÍS CARLOS PATRAQUIM

Biografia

Moçambique Moçambique

 

Poesias Eternas

Lamento de Sancho Pança a D. Quixote, Seu Senhor

Língua

Metamorfose

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LAMENTO DE SANCHO PANÇA

A D. QUIXOTE, SEU SENHOR

 

Para António Assunção

 

 

"La existencia es una letra"

 

Ibn' Arabî

 

 

 

 

"Teimoso é ele pois que não vê

e vai de lanço e cu alçado

a espadeirar um tuboso vento.

O coiro tenho já enregelado,

ó meu senhor do tempo,

em trocada hora achado.

 

"Se a uns moinhos não viu

senão desvairados cavaleiros,

como se em um palco os lesse

imagem de livros desordeiros

e lhes brandisse e afoito desse

o que se não dá a bandoleiros,

 

"pois que de roubo e sonho

se nos vai a vida esvaindo

em real compasso de sextelhos,

mais que de sextinas se vindo

ou heróicas crinas e pentelhos

afagando-se-nos e mui rindo

 

"da letra etérea indescoberta,

eis que me assomo e alto digo

este arrazoado de surdas penas,

a seu mando fazendo-me amigo

da noite sem tecto nem empenas

e do caminho que se esvai comigo."

 

Tal falei eu, temeroso, subindo

ao pano rude onde me embrulho,

já de borco rocinando as tábuas;

 

ferido era Ele sobre as fráguas,

ora só cenário e lamentoso entulho

de seco golpe e rumorosas águas.

 

 

(Publicado no "GrandAmadora" de 29/10/1998)

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Língua

 

 

Mpurukuma, Língua, corpo quase,

o que sou de sobrepostas vozes,

Bayete!

 

E tu, pássaro da alma, Mpipi adejando

sobre o losango tumultuante de cores,

Templo onde me cerco,

não me abandones, cão inflando para o rio

uma escarninha balada que nos enforca.

 

Esfumou-se a Torre na praia nocturna,

a preposição que olfactava o nervo

e Ele dorme ainda e expulso.

 

Quando a palavra surge, inteira, das águas

e os espíritos batem a respiração do batuque,

Ele tacteia os nomes nas abóbadas de sangue

e entra pelo silêncio, dobrando-se

em número.

 

Leva-o nas tuas asas, ó sombra

que as patas de cinza espargiram no vento,

soluço de Leanor

em saínhos sete de capulanas mil,

Ilha mineral, Mpipi hílare no azul

onde me cego.

 

Que sinais sobre que mar do exílio ou

som de algas lavando-te o rosto, se inscreveram

em ti, mulher larga no Índico,

língua por dentro dos lábios cavando, obscuro,

um reino por achar?

 

Língua, Mpurukuma quase.

 

 

 

02/05/1997

 

 

Vocabulário:

Mpurukuma: conceito de oralidade em língua makua.

Bayete: saudação.

Mpipi: pássaro.

 

 

METAMORFOSE
         ao poeta José Craveirinha
 
 
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
                            vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade
 
os jacarandás explodiam na alegria secreta
de serem vagens e flores vermelhas
e nem lustro de cera havia
                            para que o soubesse
na madeira da infância
sobre a casa
 
a Mãe não era ainda mulher
e depois ficou Mãe
                            e a mulher é que é a vagem e a terra
então percebi a cor
e a metáfora
 
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada
das mambas cuspideiras nos trilhos do mato
falemos dos casacos e do medo
tamborilando o som e a fala sobre as planícies verdes
e as espigas de bronze
as rótulas já não tremulam não
e a sete de Março chama-se Junho desde um dia de há muito
com meia dúzia de satanhocos moçambicanos
todos poetas gizando a natureza e o chão no parnaso das balas
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos
num silêncio de rãs a tisana do desejo
enquanto os tocadores de viola
                        com que latas de rícino e amendoim
percutem outros tendões de memória
e concreta
a música é o brinquedo
                                            a roda
                                                e o sonho
das crianças que olham os casacos
e riem
na despudorada inocência deste clarão matinal
que tu
clandestinamente plantaste
Aos Gritos
 
                (in "Monção", Maputo/Lisboa, 1981)
 

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