A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

JOSÉ CRAVEIRINHA

Biografia

1922

 Moçambique MOÇAMBIQUE

 

José João Craveirinha nasceu em Lourenço Marques, em 1922.

É um auto-didacta que desempenhou ao longo da sua vida diversas actividades tais como funcionário da Imprensa Nacional de Lourenço Marques, jornalista, futebolista, tendo também colaborado em diversas publicações periódicas, nomeadamente O Brado Africano, Itinerário, Notícias, Mensagem, Notícias do Bloqueio e Caliban.

Foi preso pela PIDE, mantendo-se na prisão durante 5 anos. Posteriormente após a independência de Moçambique foi membro da Frelimo e presidiu à Associação Africana. Colabora em inúmeras actividades culturais do seu país.

Recebeu vários prémios como o Prémio Alexandre Dáskalos, o Prémio Nacional, em Itália, o Prémio Lótus, da Associação Afro-Asiática de Escritores e o Prémio Camões, em 1991. É um dos mais reconhecidos poetas da língua portuguesa e um dos maiores escritores africanos. A sua primeira obra, Xibugo, data de 1964.

Obra:

Xibugo, 1964
Cântico a um Dio de Catrane, 1966
Karingana Ua Karingana, 1974
Cela 1, 1980
Maria, 1988
 

Sítios:

José João craverinha
   http://www.terravista.pt/Bilene/1418/poema.html

 

Depoimento autobiográfico, Janeiro de 1977:

 

"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.

Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Mae e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.

Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.

A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.

Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.

Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.

Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.

Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.

Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país tamé'm. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite."

 

Poesias Eternas

 

A Boca

Aforismo

Barbearia

Fábula

 

Gula

Pena

Prótese Bucal

 

Reza Maria

 

Sementeira

Um Homem Nunca Chora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Barbearia

Na barbearia às escuras

Júlio Chaúque foi barbeado

quando voltava da machamba de milho.

Os que viram

dizem que Júlio foi escanhoado

até às carótidas do colarinho

em requintes de gilete

dos faco~es de mato.

Os barbeiros do Chaúque

deixaram em toalhas de folhas secas

congruentes nódoas roxas.

(Babalaze das Hienas, 1997)

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Um Homem Nunca Chora

Acreditava naquela história

do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência

meus filmes de aventuras

punham-me muito longe de ser cobarde

na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.

E agora choro.

Como um homem treme.

Como chora um homem!

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Aforismo

 

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

Estávamos iguais

com duas diferenças:

Não era interrogada

e por descuido podiam pisa-la.

Mas aos dois intencionalmente

podiam por-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

 

(1968)

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Pena

 

Zangado

acreditas no insulto

e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.

Porque se me chamas negro

encolho os meus elásticos ombros

e com pena de ti sorrio.

 

 

"Cela 1"

 

A BOCA



Jucunda boca
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.

Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.

(Babalaze das Hienas, 1997)
 

Fábula

    "Menino gordo comprou um balão
    e assoprou
    assoprou com força o balão amarelo.

    Menino gordo assoprou
    assoprou
    assoprou
    o balão inchou
    inchou
    e rebentou!

    Meninos magros apanharam os restos
    e fizeram balõezinhos."
 

 

GULA

Uivam
as suas maldições
as insidiosas hienas
própria sanha.

Rituais
de tão escabrosa gulodice
que até nos esfomeados
aldeões da tragédia
a gula das quizumbas
se baba nas beiças
das catanas,
dos machados.


(In "Babalaze das Hienas", AEM, Maputo, 1997)
 

 

REZA, MARIA  (1. versão)
   
    Suam no trabalho as curvadas bestas
    e não são bestas
    são homens, Maria!
   
    Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
    e não são cães
    são seres humanos, Maria!
   
    Feras matam velhos, mulheres e crianças
    e não são feras, são homens
    e os velhos, as mulheres e as crianças
    são os nossos pais
    nossas irmãs e nossos filhos, Maria!
   
    Crias morrem á míngua de pão
    vermes na rua estendem a mão a caridade
    e nem crias nem vermes são
    mas aleijados meninos sem casa, Maria!
   
    Do ódio e da guerra dos homens
    das mães e das filhas violadas
    das crianças mortas de anemia
    e de todos os que apodrecem nos calabouços
    cresce no mundo o girassol da esperança
   
    Ah! Maria
    põe as mãos e reza.
    Pelos homens todos
    e negros de toda a parte
    põe as mãos
    e reza, Maria!
   

 

PRÓTESE BUCAL


Insolente
desalegria do riso
em patético mau senso de humor

e da sardónica dentadura alvar
ao bel-prazer das lâminas
que lhe desbeiçaram
a boca.



           (in "Babalaze das hienas",Maputo, 1997)

 

SEMENTEIRA

    "Cresce a semente
    lentamente
    debaixo da terra escura.

    Cresce a semente
    enquanto a vida se curva no chicomo
    e o grande sol de África
    vem amadurecer tudo
    com o seu calor enorme de revelação.

    Cresce a semente
    que a povoação plantou curvada
    e a estrada passa ao lado
    macadamizada quente e comprida
    e a semente germina
    lentamente no matope
    imperceptível
    como um caju em maturação.

    E a vida curva as suas milhentas mãos
    geme e chora na sina
    de plantar nosso suor branco
    enquanto a estrada passa ao lado
    aberta e poeirenta até Gaza e mais além
    camionizada e comprida.

    Depois
    de tanga e capulana a vida espera
    espiando no céu os agoiros que vão
    rebentar sobre as campinas de África
    a povoação toda junta no eucalipto grande
    nos corações a mamba da ansiedade.

    Oh! Dia de colheita vai começar
    na terra ardente do algodão!"

    1955 1a Versão
 

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