MANUEL
ANTÓNIO PINA
Biografia
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Poesias Eternas
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O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia.,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente
sabia.
Olhava-nos com uns olhos
que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele
via,
nem se nos via e nos
reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapa
ou se via o que de nós
passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos
esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
O cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que
existia.
E não compreendia.
Uma dia chamávamos pelo
cão e ele não estava
onde sempre estivera
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por
outro nome,
um absoluto nome,
e muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a mão enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: "É a
vida".
Em algum sítio onde és
um só
como dois gémeos
divididos,
entre o nó da vida e o nó
da morte, sonho dos
sentidos;
em algum passado invivido,
em algum princípio, em
algum modo
da memória ou do ouvido,
em alguma estranheza, em
algum sono;
ou em alguma espécie de
saudade
física e inicial
de seres real,
pura exterioridade.
A tarde estava errada,
não era dali, era de
outro Domingo,
quando ainda não tinhas
acontecido,
e apenas eras uma memória
parada
sonhando (no meu sonho)
comigo.
E eu, como um estranho,
passava
no jardim fora de mim
como alguém de quem alguém
se lembrava
vagamente (talvez tu),
num tempo alheio e
impresente.
Tudo estava no seu lugar
(o teu lugar), excepto a
tua existência,
que te aguardava ainda,
no limiar
de uma súbita ausência,
principalmente de
sentido.
Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, Assírio & Alvim, Lisboa
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.