MANOEL
DE BARROS
Biografia
|
Poesias Eternas Da Primeira Parte - Uma Dialética da Invenção |
Venho de um Cuiabá
garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda
de bananas no Beco
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal
de Corumbá, entre bichos do chão,
pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em
lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível
ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10
livros de poesia; ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida
inteira e não
me achei - pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os
caminhos levam à ignorância.
Não fui para a
sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão
ocaso!
Estou na categoria de
sofrer no moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma
dor de árvore.
Da Primeira Parte- UMA DIALÉTICA DA
INVENÇÃO
I
Para apalpar as
intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da
manhã não se abre com faca
b) O modo como as
violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as
borboletas de tarjas vermelhas
tem devoção por túmulos
d) Se o homem que toca
de tarde sua exist6encia num
fagote tem salvação
e) Que um rio que flui
entre dois jacintos carrega
mais ternura que um
rio que flui entre dois
lagartos
f) Como pegar na voz
de um peixe
g) Qual o lado da
noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas
por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O
pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não
pentear. Até que ele fique à
disposição de ser
uma begônia. Ou uma gravanha.
III
Repetir repetir - até
ficar diferente.
Repetir é um dom do
estilo.
IV
No Tratado das
Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a
tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o
dia dorme antes.
Quanod o homem faz sua
primeira lagartixa.
É quando um trevo
assume a noite.
E um sapo engole as
auroras.
VII
No descomeço era o
verbo
Só depois é que veio
o delírio do verbo.
O delírio do verbo
estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu
escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe
que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para
som.
Então se a criança
muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz
de poeta, que á a voz de fazer
nascimentos-
O verbo tem que pegar
delírio.
XIX
O rio que fazia uma
volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro
mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois
e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de
sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem
de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás
de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome
empobreceu a imagem.
(XXI)
Ocupo muito de mim com
o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado
em dicionários.
Não tenho que 100
palavras.
Pelo menos uma vez por
dia me vou no Morais ou
no Viterbo-
A fim de consertar a
minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha
erudição tiro nos almanaques:
Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
ou no verso das
folhinhas:
Conhece-te a ti mesmo.
ou na boca do povinho:
Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc
Etc
Etc
Maior que o infinito
é a encomenda.
XIV
Poesia é voar fora da
asa.
Da Segunda Parte- OS
DESLIMITES DA PALAVRA
DIA UM
1.1
Ontem choveu no
futuro.
Águas molharam meus
pejos
Meus apetrechos de
dormir
Meu vasilhame de
comer.
Vogo no alto da
enchente à imagem de uma rolha/.
Minha canoa é leve
como um selo.
Estas águas não têm
lado de lá.
Daqui só enxergo a
fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão
em mim?)
Estou anivelado com a
copa das árvores.
Pacus comem frutas de
carandá nos cachos.
SEGUNDO DIA
2.2
Lugar sem
comportamento é o coração.
Ando em vias de ser
compartilhado.
Ajeito as nuvens no
olho.
A luz das horas me
desproporciona.
Sou qualquer coisa
judiada de ventos.
Meu fanal é um poente
com andorinhas.
Desnvolvo meu ser até
encostar na pedra.
Repousa uma garoa
sobre a noite.
Aceito no meu fado o
escurecer.
No fim da treva uma
coruja entrava.
2.5
Ando muito completo de
vazios
Meu órgão de morrer
me predomina.
estou sem eternidades.
Não posso mais saber
quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o
amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo
de uma folha.
Atrás do ocaso fervem
os insetos.
Enfiei o que pude
dentro de um grilo o meu destinio.
essas coisas me mudam
para cisco.
A minha independência
tem algemas
TERCEIRO DIA
3.1
Passa um galho de pau
movido a borboletas:
Com elas celebro meu
órgão de ver.
Inclino a fala para
uma oração.
Tem um cheiro de malva
esta manhã.
Hão de nascer
tomilhos em meus sinos.
(Existe um tom de mim
no anteceder?)
Não tenho mecanismos
para santo.
palavra que eu uso me
inclui nela.
este horizonte usa um
tom de paz.
Aqui a aranha não
denigre o orvalho.
3.6
Nuvens me cruzam de
arribação.
Tenho uma dor de
concha extraviada.
Uma dor de pedaços
que não voltam.
Eu sou muitas pessoas
destroçadas.
.....................................................
....................................................
Diviso ao longe um
ombro de barranco.
E encolhidos na areia
uns jaburus.
Chego mais perto e
estremeço de espírito.
Enxergo a Aldeia dos
Guanás.
Imbico numa lata
enferrujada.
Um sabiá me aleluia.
Da Terceira Parte -
MUNDO PEQUENO
V
Esses lagartos curimpãpãs têm índole tropical.
Tornam-se no mês de
agosto amortecidos e diotas
Ao ponto que se deixam
passar por cima como
pedras.
Ao ponto que se deixam
atravessar por caminhões.
Aparecem de sempre
esses lagartos encostados em
muros decadentes -
Onde se criam
devassos.
Bem assim por exemplo:
Formiga puxou um pedaço
de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpapã
assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu
debaixo de um tronco.
(Tem um tipo de árvores
que dão pros lagartos.)
Alguns atravessam
invernos que os pássaros morrem.
Borboletas translúcidas
quedam estancadas no
tronco das árvores-
Se enxergam por perto
os curimpãpãs.
Mas todos sabemos que
esses lagartos curimpãpãs
são pouco favorecidos de horizontes.
Enxergam tão pequeno
que às vezes pensam que a
gente é árvore e nem se mexem.
Nos barrancos há
riscos de suas manguaras.
E se estão em aflição
de espírito - combustam!
(Essas notícias foram
colhidas por volta de 1944,
entre os índios chiquitanos, na Bolívia.)
Águas estavam
iniciando rãs.
VI
De primeiro as coisas
só davam aspecto
Não davam idéias.
A língua era
incorporante.
Mulheres não tinham
caminho de criança sair
Era só concha.*
depois é que fizeram
o vaso da mulher com uma
abertura de cinco centímetros mais ou menos.
(E conforme o uso
aumentava.)
Ao vaso da mulher
passou-se mais tarde a chamar
com lítera elegância de urna consolata.
Esse nome não tinha
nenhuma ciência brivante
Só que se pôs a
provocar incêndio a dois.
Vindo ao vulgar mais
tarde àquele vaso se deu o
nome de cona
Que, afinal das
contas, não passava de concha mesmo.
* Era só concha: está
nas Lendas em Nheengatu e Português, na
Revista do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro, v.154.
IX
Tudo o que se há de
dizer aqui sobre capivaras, nem
as mentiras podem ser
comprovadas. Se esfregam nas
árvores de tarde
antes do amor. Se amam sem ocupar
beijos. Excitadas se
femeiam por baixo dos balseiros.
E ali se aleluiam. O
cisco das raízes aquáticas e a
bosta dos passarinhos
se acumulam no lombo das
capivaras. Dali se
desprende ao meio-dia forte carlor
de ordumes larvais. No
lombo se criam mosquitos
monarcas, daquele de
exposição, que furam até
vidros e abaixam
pratos de balança. É vezo de
dizer-se então que
capivara é um bicho insetoso.
Porquanto favorecem a
estima dos pássaros,
sobretudo dos bentevis
que lhes almoçam larvas ao
lombo. Coisa que todo
mundo gosta, tirante as
capivaras, é de flor.
Pelo que já não entendo, existem
razões particulares
ou individuais que expliquem tal
desgosto ds capivaras
por flor? Todas guardam água
no olho.
XII
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão
alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu
ombro.
Seu olho renova as
tardes.
Guarda num velho baú
seus instrumentos de
trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue
esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a
natureza:
Seu olho aumenta o
poente.
(Pode um homem
enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)
(LIVRO
DAS IGNORÃÇAS, Ed..Record, Rio de Janeiro, Brasil, 1993)
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