A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

JOSÉ AFONSO

Biografia

 

Poesias Eternas

Adeus Ó Serra da Lapa

Balada do Sino

Canção de Embalar

Cantigas de Maio

Canto Jovem

A Drummond de Andrade

Fui à Beira do Mar

Grândola Vila Morena

Maio Maduro Maio

Menino d'Oiro

Natal dos Simples

O Que Faz Falta

Traz Outro Amigo Também

Vampiros

Vejam bem

Venham Mais Cinco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Natal dos Simples

 

Vamos cantar as janeiras

Vamos cantar as janeiras

Por esses quintais adentro vamos

Às raparigas solteiras

 

Vamos cantar orvalhadas

Vamos cantar orvalhadas

Por esses quintais adentro vamos

Às raparigas casadas

 

Vira o vento e muda a sorte

Vira o vento e muda a sorte

Por aqueles olivais perdidos

Foi-se embora o vento norte

 

Muita neve cai na serra

Muita neve cai na serra

Só se lembra dos caminhos velhos

Quem tem saudades da terra

 

Quem tem a candeia acesa

Quem tem a candeia acesa

Rabanadas pão e vinho novo

Matava a fome à pobreza

 

Já nos cansa esta lonjura

Já nos cansa esta lonjura

Só se lembra dos caminhos velhos

Quem anda à noite à'ventura

topo

 

 

 

Balada do Sino

 

Uma barquinha

Lá vem lá vem

Dim Dem

Na barquinha de Belém

 

Senhor Barqueiro

Quem leva aí

Dão Dim

Na barquinha d'Aladim

 

Levo a cativa

Duma só vez

Dois três

Na barquinha do marquês

 

Ao romper d'alva

Casada vem

Dim Dem

Na barquinha é que vai bem

 

Se a tem guardada

Deixe-a fugir

Dão Dim

Na barquinha do Vizir

 

Lá vai roubada

Lá vai na mão

Dim Dão

Na barquinha do ladrão

topo

 

 

 

Canção de Embalar

 

Dorme meu menino a estrela d'alva

Já a procurei e não a vi

Se ela não vier de madrugada

Outra que eu souber será p'ra ti

 

Outra que eu souber na noite escura

Sobre o teu sorriso de encantar

Ouvirás cantando nas alturas

Trovas e cantigas de embalar

 

Trovas e cantigas muito belas

Afina a garganta meu cantor

Quando a luz se apaga nas janelas

Perde a estrela d'alva o seu fulgor

 

Perde a estrela d'alva pequenina

Se outra não vier para a render

Dorme que inda a noite é uma menina

Deixa-a vir também adormecer.

topo

 

 

 

Vejam Bem

 

Vejam bem

Que não há

Só gaivotas

Em terra

Quando um homem

Se põe

A pensar

 

Quem lá vem

Dorme à noite

Ao relento

Na areia

Dorme à noite

Ao relento

Do mar

 

E se houver

Uma praça

De gente

Madura

E uma estátua

De febre

A arder

 

Anda alguém

Pela noite

De breu

À procura

E não há

Quem lhe queira

Valer

 

Vejam bem

Daquele homem

A fraca

Figura

Desbravando

Os caminhos

Do pão

 

E se houver

Uma praça

De gente

Madura

Ninguém vem

Levantá-lo

Do chão

topo

 

 

 

Traz Outro Amigo Também

(À memória de Miguel Ramos)

 

Amigo

Maior que o pensamento

Por essa estrada amigo vem

Não percas tempo que o vento

É meu amigo também

 

Em terras

Em todas as fronteiras

Seja benvindo quem vier por bem

Se alguém houver que não queira

Trá-lo contigo também

 

Aqueles

Aqueles que ficaram

(Em toda a parte

Todo o mundo tem)

Em sonhos me visitaram

Traz outro amigo também

topo

 

 

 

 

Canto Jovem

 

Somos filhos da madrugada

Pelas praias do mar nos vamos

À procura de quem nos traga

Verde oliva de flor no ramo

Navegámos de vaga em vaga

Não soubemos de dor nem mágoa

Pelas praias do mar nos vamos

À procura da manhã clara

 

Lá do cimo duma montanha

Acendemos uma fogueira

Para não se apagar a chama

Que dá vida na noite inteira

Mensageira pomba chamada

Companheira da madrugada

Quando a noite vier que venha

Lá do cimo duma montanha

 

Onde o vento cortou amarras

Largaremos pela noite fora

Onde há sempre uma boa estrela

Noite e dia ao romper da aurora

Vira a proa minha galera

Que a vitória já não espera

Fresca brisa moira encantada

Vira a proa da minha barca

topo

 

 

 

 

Cantigas de Maio

 

Eu fui ver a minha amada

Lá p'rós baixos dum jardim

Dei-lhe uma rosa encarnada

Para se lembrar de mim

 

Eu fui ver o meu benzinho

Lá p'rós lados dum passal

Dei-lhe o meu lenço de linho

Que é do mais fino bragal

 

Eu fui ver uma donzela

Numa barquinha a dormir

Dei-lhe uma colcha de seda

Para nela se cobrir

 

Eu fui ver uma solteira

Numa salinha a fiar

Dei-lhe uma rosa vermelha

Para de mim se encantar

 

Eu fui ver a minha amada

Lá nos campos eu fui ver

Dei-lhe uma rosa encarnada

Para de mim se prender

 

Verdes prados, verdes campos

Onde está minha paixão

As andorinhas não param

Umas voltam outras não

 

Minha mãe quando eu morrer

Ai chore por quem muito amargou

Para então dizer ao mundo

Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

topo

 

 

 

 

Grândola, Vila Morena

 

Grândola vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti ó cidade

 

Dentro de ti ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola vila morena

 

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola vila morena

Terra da fraternidade

 

Terra da fraternidade

Grândola vila morena

Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

 

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

 

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

topo

 

 

 

 

Maio Maduro Maio

 

Maio maduro maio

Quem te pintou

Quem te quebrou o encanto

Nunca te amou

Raiava o Sol já no Sul

E uma falua vinha

Lá de Istambul

 

Sempre depois da sesta

Chamando as flores

Era dia de festa

Maio de amores

Era dia de cantar

E uma falua andava

Ao longe a varar

 

Maio com meu amigo

Quem me dera já

Sempre depois do trigo

Se cantará

Qu'importa depois do trigo

Se cantará

Qu'importa a fúria do mar

Que a voz não te esmoreça

Vamos lutar.

 

Numa rua comprida

El-rei pastor

Vende o soro da vida

Que mata a dor

Venham ver, Maio nasceu

Que a voz não te esmoreça

A turba rompeu

topo

 

 

 

 

Fui à Beira do Mar

 

Fui à beira do mar

Ver o que lá havia

Ouvi uma voz cantar

Que ao longe me dizia

 

Ó cantador alegre

Que é da tua alegria

Tens tanto para andar

E a noite está tão fria

 

Desde então a lavrar

No meu peito a Alegria

Ouço alguém a bradar

Aproveita que é dia

 

Sentei-me a descansar

Enquanto amanhecia

Entre o céu e o mar

Uma proa rompia

 

Desde então a bater

No meu peito em segredo

Sinto uma voz dizer

Teima, teima sem medo

topo

 

 

 

 

Adeus ó Serra da Lapa

 

Adeus ó serra da Lapa

Adeus que te vou deixar

Ó minha Terra ó minha enxada

Não faço gosto em voltar

 

Companheiros de aventura

Vinde comigo viajar

A noite é negra a vida é dura

Não faço gosto em voltar

 

Dou-te o meu lenço bordado

Quando de ti me apartar

Eu quero ir ao outro lado

Não faço gosto em voltar

 

O meu dinheiro contado

É para quem me levar

O meu caminho está traçado

Não faço gosto em voltar

 

Moirar a terra insegura?

Fugir da serra e do mar?

Meus companheiros de aventura

Tudo farei para a salvar

topo

 

 

 

 

Venham Mais Cinco

 

Venham mais cinco

Duma assentada

Que eu pago já

Do branco ou tinto

Se o velho estica

Eu fico por cá

 

Se tem má pinta

Dá-lhe um apito

E põe-no a andar

De espada à cinta

Já crê que é rei

D'aquém e D'além Mar

 

Não me obriguem

A vir para a rua

Gritar

Que é já tempo

D'embalar a trouxa

E zarpar

 

A gente ajuda

Havemos de ser mais

Eu vem sei

Mas há quem queira

Deitar abaixo

O que eu levantei

 

A bucha é dura

Mais dura é a razão

Que a sustém

Só nesta rusga

Não há lugar

Pr'ós filhos da mãe

 

Não me obriguem

A vir para a rua

Gritar

Que é já tempo

D'embalar a trouxa

E zarpar

 

Bem me diziam

Bem me avisavam

Como era a lei

Na minha terra

Quem trepa

No coqueiro

É o rei

topo

 

 

 

 

Menino D'Oiro

 

O meu menino é d'oiro

É d'oiro fino

Não façam caso

Que é pequenino

 

O meu menino é d'oiro

D'oiro fagueiro

Hei-de levá-lo

No meu veleiro

 

Venham aves do céu

Pousar de mansinho

Por sobre os ombros

Do meu menino

 

Venham comigo venham

Que eu não vou só

Levo o menino

No meu trenó

 

Quantos sonhos ligeiros

P'ra teu sossego

Menino avaro

Não tenhas medo

 

Onde fores no teu sonho

Quero ir contigo

Menino d'oiro

Sou teu amigo

 

Venham altas montanhas

Ventos do mar

Que o meu menino

Nasceu p'ra amar

 

Venham comigo venham

Que eu não vou só

Levo o menino

No meu trenó

topo

 

 

 

 

Vampiros

 

No céu cinzento

Sob o astro mudo

Batendo as asas

Pela noite calada

Vêm em bandos

Com pés de veludo

Chupar o sangue

Fresco da manada

 

Se alguém se engana

Com seu ar sisudo

E lhes franqueia

As portas à chegada

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

 

A toda a parte

Chegam os vampiros

Poisam nos prédios

Poisam nas calçadas

Trazem no ventre

Despojos antigos

Mas nada os prende

Às vidas acabadas

 

São os mordomos

Do universo todo

Senhores à força

Mandadores sem lei

Enchem as tulhas

Bebem vinho novo

Dançam a ronda

No pinhal do rei

 

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

 

No chão do medo

Tombam os vencidos

Ouvem-se os gritos

Na noite abafada

Jazem nos fossos

Vítimas dum credo

E não se esgota

O sangue da manada

 

Se alguém se engana

Com seu ar sisudo

E lhes franqueia

As portas à chegada

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

 

Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada

topo

 

 

 

 

O Que Faz Falta

 

Quando a corja topa da janela

O que faz falta

Quando o pão que comes sabe a merda

O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta

O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta

O que faz falta

 

Quando nunca a noite foi dormida

O que faz falta

Quando a raiva nunca foi vencida

O que faz falta

O que faz falta é animar a malta

O que faz falta

O que faz falta é acordar a malta

O que faz falta

 

Quando nunca a infância teve infância

O que faz falta

Quando sabes que vai haver dança

O que faz falta

 

O que faz falta é animar a malta

O que faz falta

O que faz falta é empurrar a malta

O que faz falta

 

Quando um cão morde uma canela

O que faz falta

Quando à esquina hé sempre uma cabeça

O que faz falta

O que faz falta é animar a malta

O que faz falta

O que faz falta é empurrar a malta

O que faz falta

 

Quando um homem dorme na valeta

O que faz falta

Quando dizem que isto é tudo treta

O que faz falta

 

O que faz falta é animar a malta

O que faz falta

O que faz falta é libertar a malta

O que faz falta

topo

 

 

 

 

A Drummond de Andrade

(com a devida vénia)

 

Velho Drummond se te tivera

Junto de mim a esta hora

em que o silêncio é uma ordem

e a solidão longa espera

Tu me prestaras teu verbo

ou tua mão estendida

cheia dessa humanidade

que alguma vez pressentira

se alguma vez entendera

como agora

 

Lembras-te Drummond amigo

num território macabro

É como levares contigo

Um filho desnaturado

JOSÉ AFONSO TEXTOS E CANÇÕES, PAISAGEM EDITORA, PORTO, 1975

topo

 

 

 

 

 

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