Talvez
O Vento Saiba
Talvez
o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As
sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só
vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez
se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.
topo
Palimpsesto
A Antônio Carlos Secchin
Eu
vi um sábio numa esfera,
os
olhos postos sobre os dédalos
de
um hermético palimpsesto,
tatear
as letras e as hipérboles
de
um antiqüíssimo alfabeto.
Sob
a grafia seca e austera
algo
aflorava, mais secreto,
por
entre grifos e quimeras,
como
se um código babélico
em
suas runas contivesse
tudo
o que ali, durante séculos,
houvesse
escrito a mão terrestre.
Sabia
o sábio que o mistério
jamais
emerge à flor da pele;
por
isso, aos poucos, a epiderme
daquele
códice amarelo
ia
arrancando como pétalas
e,
por debaixo, outros arquétipos
se
articulavam, claras vértebras
de
um esqueleto mais completo.
Sabia
mais: que o que se escreve,
com
a sinistra ou com a destra,
uma
outra mão o faz na véspera,
e
que o artista, em sua inépcia,
somente
o crê quando o reescreve.
Depois
tangeu, em tom profético:
"Nunca
busqueis nessa odisséia
senão
o anzol daquele nexo
que
fisga o presente e o pretérito
entre
os corais do palimpsesto."
E
para espanto de um intérprete
que
lhe bebia o mel do verbo,
pôs-se
a brincar, dentro da esfera,
com
duendes, górgonas e insetos.
topo
E
Se Eu Disser
E
se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem
mais delonga ou tímidos rodeios,
sem
nem saber se a confissão te enfara
ou
se te apraz o emprego de tais meios?
E
se eu disser que sonho com teus seios,
teu
ventre, tuas coxas, tua clara
maneira
de sorrir, os lábios cheios
da
luz que escorre de uma estrela rara?
E
se eu disser que à noite não consigo
sequer
adormecer porque me agarro
à
imagem que de ti em vão persigo?
Pois
eis que o digo, amor. E logo
esbarro
em
tua ausência - essa lâmina exata
que
me penetra e fere e sangra e mata.
topo