FERNANDO PINTO DO AMARAL
Biografia
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Poesias Eternas
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Demorámos um ano a aprender
alguns gestos de assombro e maravilha,
a voz da adolescência que desperta
silenciosa, depois do degelo,
e nos derrete a neve que envolvia
o próprio coração, agora aqui
à flor das nossas bocas.
Afogado na tua presença,
repito cada vez com menos estranheza
uma palavra: nós.
A sua vibração é um relâmpago
no crespúsculo da sala
e volto a encontrar a flor azul
que brota dos teus olhos, sempre em busca
de um sobressalto iluminado
quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,
revelado por ti."
Sei hoje como é perder a inocência
e conservá-la ainda num recanto
desta sala de espelhos onde vive
a luz da tua imagem entre vozes
que celebram em coro o espírito das águas,
essa primeira esperança confiada
por Deus às nossas vidas.
ÀS CEGAS, RELÓGIO DE ÁGUA, LISBOA, 1977, P. 25
Vagueara contigo de mãos dadas
pela Piazza del Duomo, àquela hora
ainda polvilhada de turistas
japoneses, chineses, coreanos,
todos armados de câmaras de vídeo,
e entrámos quase a medo: a catedral
respirava connosco a indiferença
dos séculos passados e futuros
nas imagens que ardiam com o furor
de agonias infelizes - santos, santas
e outras personagens lancinantes
olhavam para nós do seu abismo
feito de espelhos náufragos, que às vezes
reflectiam a cor das nossas faces.
Depois de alguns minutos por ali,
tacteando, assombrados, todo o peso
do silêncio compacto e vibrante,
reparámos de súbito na fila
dos típicos cubículos católicos
onde alguém escutaria a voz de alguém:
dois ou três ostentavam inscrições
em línguas estrangeiras - que Milão
sempre foi um lugar cosmopolita -
e à beira de um deles, irreal,
ajoelhava-se uma rapariga
de quem só conseguíamos fixar
a translúcida mancha do cabelo
sob um halo de luz avermelhada.
Na sua pose quase clandestina
alheia a tudo o resto, segredava
frases incandescentes, num múrmurio
por onde se escoavam os espectros
da sua vida ainda breve e obscura:
homens com quem dormiu só por capricho,
logo traídos sem saber porquê;
mulheres mais belas, mais inteligentes,
a quem guardou um ódio sufocado
nos sociais limites da amizade;
ou sobretudo essa ambição de ser
invejada por toda a perfeição
de uma existência limpa de ameaças,
desinfectada contra as tentações.
Cá fora o sol desaparecera. Os pombos
recolhiam aos ninhos sobre os rios
de gente absorvida pelas montras
acesas, procurando resgatar
da sombra as suas almas, os cinzentos
corações tão imunes ao remorso
a caminho da noite, plas feéricas
Galerias Vittorio Emanuelle.
Íamos de mãos dadas e sabíamos
que ninguém é capaz de absolver
ninguém, que toda a culpa ressuscita
a cada instante o nosso próprio rosto
e desenha pra sempre o seu perfil
sob o manto de gelo e de palavras.
ÀS CEGAS, RELÓGIO DE ÁGUA, LISBOA, 1977, P. 91
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.