A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

FERNANDO PINTO DO AMARAL

Biografia

 

Poesias Eternas

Schubert, D. 714

Confessionário 

 

 

 

 

 

 

 

 

Schubert, D.714

 

Demorámos um ano a aprender

alguns gestos de assombro e maravilha,

a voz da adolescência que desperta

silenciosa, depois do degelo,

e nos derrete a neve que envolvia

o próprio coração, agora aqui

à flor das nossas bocas.

 

Afogado na tua presença,

repito cada vez com menos estranheza

uma palavra: nós.

A sua vibração é um relâmpago

no crespúsculo da sala

e volto a encontrar a flor azul

que brota dos teus olhos, sempre em busca

de um sobressalto iluminado

quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,

revelado por ti."

 

Sei hoje como é perder a inocência

e conservá-la ainda num recanto

desta sala de espelhos onde vive

a luz da tua imagem entre vozes

que celebram em coro o espírito das águas,

essa primeira esperança confiada

por Deus às nossas vidas.

 

ÀS CEGAS, RELÓGIO DE ÁGUA, LISBOA, 1977, P. 25

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Confessionário

 

Vagueara contigo de mãos dadas

pela Piazza del Duomo, àquela hora

ainda polvilhada de turistas

japoneses, chineses, coreanos,

todos armados de câmaras de vídeo,

e entrámos quase a medo: a catedral

respirava connosco a indiferença

dos séculos passados e futuros

nas imagens que ardiam com o furor

de agonias infelizes - santos, santas

e outras personagens lancinantes

olhavam para nós do seu abismo

feito de espelhos náufragos, que às vezes

reflectiam a cor das nossas faces.

 

Depois de alguns minutos por ali,

tacteando, assombrados, todo o peso

do silêncio compacto e vibrante,

reparámos de súbito na fila

dos típicos cubículos católicos

onde alguém escutaria a voz de alguém:

dois ou três ostentavam inscrições

em línguas estrangeiras - que Milão

sempre foi um lugar cosmopolita -

e à beira de um deles, irreal,

ajoelhava-se uma rapariga

de quem só conseguíamos fixar

a translúcida mancha do cabelo

sob um halo de luz avermelhada.

 

Na sua pose quase clandestina

alheia a tudo o resto, segredava

frases incandescentes, num múrmurio

por onde se escoavam os espectros

da sua vida ainda breve e obscura:

homens com quem dormiu só por capricho,

logo traídos sem saber porquê;

mulheres mais belas, mais inteligentes,

a quem guardou um ódio sufocado

nos sociais limites da amizade;

ou sobretudo essa ambição de ser

invejada por toda a perfeição

de uma existência limpa de ameaças,

desinfectada contra as tentações.

 

Cá fora o sol desaparecera. Os pombos

recolhiam aos ninhos sobre os rios

de gente absorvida pelas montras

acesas, procurando resgatar

da sombra as suas almas, os cinzentos

corações tão imunes ao remorso

a caminho da noite, plas feéricas

Galerias Vittorio Emanuelle.

Íamos de mãos dadas e sabíamos

que ninguém é capaz de absolver

ninguém, que toda a culpa ressuscita

a cada instante o nosso próprio rosto

e desenha pra sempre o seu perfil

sob o manto de gelo e de palavras.

 

 

ÀS CEGAS, RELÓGIO DE ÁGUA, LISBOA, 1977, P. 91

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