A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

FERNANDO ASSIS PACHECO

Biografia

1937-1995

Poesias Eternas

Bom Rei Afonso

Um Melro na Rampa da Televisão 

Sem Título 

A Profissão Dominante

 

 

 

 

 

 

 

 

Sento-me na tua ternura

Sento-me na tua ternura. A chuva cai,

olhas-me tão fundo que de repente

sou de vidro, cuidado, vou quebrar!

 

Acaba triste o mês de Maio, perto.

E estás no Maio triste, na chuva e no vento,

a tua ternura quer matar-me.

Quem sabe, amor, onde o amor se fere?

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Bom Rei Afonso

 

Lavava-se só de raro em rao

e só como o gato mas era um tal

furor entre as damas e suas aias

que se conta de uma dona Ilduara

Veilaz a filha de crego manco

tê-lo chamado um fim de tarde

no meio de forte trovoada

a Rendufe onde então demorava

para a comer (e recomer é claro)

nas três posições principais

o que ele fez com brio e recato

e isso atira para uma conta calada

mesmo em termos de História Pátria

e sem da Igreja o beneplácito

gritando ela ao fim de cada round

senhor senhor mais do que ao mel

vós a erva-babosa me cheirais

 

ah e tudo isto para fortalecer a alma!

 

 

in "Lote de Salvados", A Musa Irregular,2ª edição,

Lisboa, 1996

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Lumiar, Lisboa: Um Melro Na Rampa Da Televisão

 

Um melro na rampa da Televisão

um melro cantava e eu que chegava

parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios à Elisabeth Schwartzkopf

invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol do

Verão a dar na tromba

como uma pedra

eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste de crocodilo ao peito

envolto em águas tristes herdadas dos quatro primeiros impérios

que prefiro as salas lá de trás das cidades que estão

para lá dos rios e das matas de medronheiros

onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis

trazidos queimados de África incapaz

por todas as razões expostas do colar suficientemente à melopeia

do verso heróico

 

um melro cantava e eu que parava

pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito

cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano ten-

tando a sua vez de ser um fecho aceitável

o mal de muita gente é que anda aos gritos

o mal de alguns de nós é já a esgana

 

 

in Memórias do Contencioso, "A Musa Irregular", ed. Asa, Lisboa, 1996

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A Profissão Dominante

 

Meu Deus como eu sou paraliterário

à quinta-feira véspera do jornal

nadando em papel como num aquário

ejectando a minha bolha pontual

 

de prosa tirada do receituário

onde aprendi o cozido nacional

do boçal fingido o lapidário

- fora algum deslize gramatical-

 

receio que me chamem extraordinário

quando esta é uma prática trivial

roçando mesmo o parasitário

meu Deus dá-me a tua ajuda semanal

 

A Musa Irregular, ed.Asa, Lisboa, 1996

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