A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

EGITO GONÇALVES

Biografia

 

Poesias Eternas

 Notícias do Bloqueio

Com Palavras

Sobre os Poemas

3 Poemas da Cidade

Tudo Vai Bem, Amor!...

 

 

 

 

 

 

 

Notícias do Bloqueio

 

Aproveito a tua neutralidade,

o teu rosto oval, a tua beleza clara,

para enviar notícias do bloqueio

aos que no continente esperam ansiosos.

 

Tu lhes dirás do coração o que sofremos

nos dias que embranquecem os cabelos...

Tu lhes dirás a comoção e as palavras

que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

 

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,

sustentando a defesa à nossa volta

- único acolchoado para a note

florescida de fome e de tristezas.

 

Tua neutralidade passará

por sobre a barreira alfandegária

e a tua mala levará fotografias,

um mapa, duas cartas, uma lágrima...

 

Dirás como trabalhamos em silêncio,

como comemos silêncio, bebemos

silêncio, nadamos e morremos

feridos de silêncio duro e violento.

 

Vai pois e noticia com um archote

aos que encontrares de fora das muralhas

o mundo em que nos vemos, poesia

massacrada e medos à ilharga

 

Vai pois e conta nos jornais diários

ou escreve com ácido nas paredes

o que viste, o que sabes, o que eu disse

entre dois bombardeamentos já esperados.

 

Mas diz-lhes que se mantém indevassável

o segredo das torres que nos erguem,

e suspensa delas uma flor em lume

grita o seu nome incandescente e puro.

 

Diz-lhes que se resiste na cidade

desfigurada por feridas de granadas

e enquanto a água e os víveres escasseiam

aumenta a raiva

e a esperança reproduz-se

 

EM A VIAGEM COM O TEU ROSTO

LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, S.D., 3ª SÉRIE, P.317

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Sobre os Poemas

 

1

 

Há poetas que constróem o mundo nos cafés,

outros que o fazem no claro-escuro

entre as prisões e os intervalos.

 

Há poetas que aguardam cartas de apresentação

nem eles sabem para onde:

para a vida que falhou?, para a manteiga

que lhes foi negada?

 

Mas todos têm um sonho, todos

se esforçam por valer o paão que amassam

- lançam seu delicado peso na balança.

 

Eles sabem, esses poetas,

que nada é eterno e imutável.

 

2

 

Tal a "Cadeia de Santo Onofre:

Copie o texto: envie a cinco amigos"...

há poetas que se multiplicam, fendem

a vaga limite, impedem o suicídio,

explicam a vida, argamassam

dedicação e raiva.

 

Girassóis, rodam sobre si mesmos,

indicam o ponto onde a luz se abre.

 

3

 

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece

uma canção à cidade, martela

os que dormem alheios, move-se

silenciosamente ao jeito das estátuas.

 

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;

rosto impreciso solidificando breve;

ténue tinta azul no papel claro...

 

Os poetas têm

como os peles-vermelhas do cinema

o seu fumo e os seus cobertores.

 

4

 

Há poetas que renegam cartas

de apresentação para o arrivismo;

recusam a mão ao salário da trampa;

não enfeixam o nome e a desonra

nos telegramas do medo.

 

Enquanto bebem o café um histrião nocturno

arenga; executa o seu número; recebe

por nova pirueta uma ajuda de custo.

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Com Palavras

 

Com palavras me ergo em cada dia!

Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto

e saio para a rua.

Com palavras - inaudíveis - grito

para rasgar os risos que nos cercam.

 

Ah!, de palavras estamos todos cheios.

Possuímos arquivos, sabemo-las de cor

em quatro ou cinco línguas.

Tomamo-las à noite em comprimidos

para dormir o cansaço.

 

As palavras embrulham-se na língua.

As mais puras transformam-se, violáceas,

roxas de silêncio. De que servem

asfixiadas em saliva, prisioneiras?

 

Possuímos, das palavras, as mais belas;

as que seivam o amor, a liberdade...

Engulo-as perguntando-me se um dia

as poderei navegar; se alguma vez

dilatarei o pulmão que as encerra.

 

Atravessa-nos um rio de palavras:

Com elas eu me deito, me levanto,

e faltam-me palavras para contar...

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3 Poemas da Cidade

 

1

 

Um pequeno dique rompeu as águas na zona do viriato, por volta do meio-dia. Fissuras tinham já sido detectadas, anteriormente, sem provocarem no entanto fundas preocupações; somos pessoas que gostam da água e nela se movem com relativa facilidade. O caudal rompeu sem excessiva violência, criando uma alegria de sentimentos que, ao conduzir-me a casa lentamente, descia pela pele e iluminava as ruas, para assombro dos raros transeuntes de sábado que recebiam o impacto dessa alegria sem compreenderem o que lhes estava a acontecer, sem verem o anjo que os transformava em personagens ocasionais de uma história cujos contornos jamais sequer suspeitariam.

 

2

 

Encontrámo-nos no porto antigo, um espaço de onde os navios tinham desertado e as gaivotas há muito passavam ao largo. Um encontro secreto para navegar à vista, evitando os escolhos mais evidentes, com o olhar atento a uma bússula estranha que pulsava como um coração, e como ele se sobressaltava em momentos que faziam oscilar perigosamente a linha de rumo, Os acidentes eram a alegria da viagem; afastar o objectivo o mais possível de forma a torná-la interminável. A avidez controlada, bebida em pequenos sorvos, lentamente, sob a doçura dos ventos alísios.

 

3

 

À nossa frente o rio. Subia ou descia a maré, era ou não já salgada a água que o mar empurrava para montante, poderiam ou não, na sua superfície, saltar os peixes que desejavam aproximar-se do sol? Outras interrogações menos claras fluíam entre nós, talvez paralisadoras, escurecendo uma situação que antes parecia tão límpida e deslisante como a corrente que nos animava os olhos - embora também não soubéssemos se ela subia ou descia e procurássemos os peixes que sabíamos querer saltar na direcção do sol mas reservavam por agora, numa estranha espécie de pudor, as imaginárias asas que os levariam (ainda que por escassos momentos) a animar a atmosfera que respirávamos.

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Tudo Vai Bem, Amor!...

 

Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!

Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,

ninguém descarna o sonho ou a esperança,

não há fantasmas de espingarda ao ombro,

ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...

Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,

ninguém encobre estrelas com areia,

não cortam com navalhas os seios das mulheres,

não se incendeiam ghetos com corpos de crianças:

é tudo útil, simples, como um campo de trigo

- a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.

Os poetas podem passear nas ruas; a paz

não é uma aranha sobre terra árida.

O sono não se povoa de estátuas de ameaça,

o amor não se faz de coração crispado:

o leito do amor é a simples terra nua.

 

in, O VAGABUNDO DECEPADO

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