A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

CASIMIRO DE BRITO

Biografia

 

Poesias Eternas

Com Pessoa no Martinho da Arcada

 

 

 

 

 

 

 

Com Pessoa no Martinho da Arcada

 

 

Também eu me sentei, anos a fio,

à mesa de Pessoa no Martinho

da Arcada e olhei para dentro do novelo

emaranhado da sua vida. Não há nada

para desenrolar, concluímos. Corriam

os anos setenta oitenta

e os meus dias eram uma concha recheada de

metáforas cotações enigmas letras

de câmbio câmbio de afectos graffitti estatísticas

enquanto nas ruas de Lisboa a revolução rolava

ao sabor das marés e das brisas agitadas

pelo patrão Vasques e por outras

abelhas mestras: "Governa quem é alegre(...)

para ser triste é preciso sentir".

Também eu tomei café

de costas viradas para o Tejo e encontrei

o meu sossego no desassossego de Soares

como se fôssemos o mesmo guarda-livros

cansado que descia a Rua Augusta e depois se dividia

em dois, ele a caminho da Rua da Madalena,

eu da Rua do Ouro,

onde escrevíamos apressadas sílabas no verso

dos papéis comerciais que nos pagavam

o pão. Do meu gabinete eu via o "lago azul" do Tejo,

ele não. O que mais me fascina

nesta fotografia

é a página que o poeta lê como se fosse

a mãe louca que embala um filho

morto. Uma tábua

"todos os papéis estão brancos"

"todas as mensagens se adivinham"

onde eu posso entrar e entrava nesses dias

quando me cansava de caminhar nas ruas baixas

que vão dar ao Cais das Colunas e então sentava-me

na sua cadeira e misturava

como se fossem obscuras folhas de café

as palavras dele e as minhas:

 

 

Sofro de não sofrer e sobre a morte

escrevo em seu trabalho de não saber

sofrer lavrando-a enquanto

a vida visito. Vivo ou finjo que vivo?

O discurso do corpo

canta, uma vaga aragem que sai fresca

do calor do dia e me faz

esquecer tudo e com as aves

resvalo e com os rios...

Incontáveis as vezes em que o meu cansaço

da bolsa e da vida,

dos ruídos da baixa e dos barcos que partiam

no azul nevoeiro

se aconchegava na página desconhecida

como se fosse um velho buraco de

família uma espécie de sono

metafórico uma imersão

em águas antigas que exerciam em mim

um vago domínio. E então eu lia

o que ele talvez ali estivesse

lendo: "Nem uma saudade já me resta

dos búzios à beira dos mares" e também eu me sentia

nesses momentos

o sócio minoritário de um pequeno comércio de poetas

sentados na bruma: havia um que buscava

o mar nos búzios, outro que partia para as praias onde

havia

búzios e ouvia o mar "só e calmo",

como quem habita um aroma paciente.

Também eu escrevi versos como se fossem lançamentos

de escrita, "como cuidado

e indiferença": havia que fundir-me,

entrar para dentro da areia

indizível; havia que pesar o ouro das palavras

sabendo que pesava

cinza. "O universo

não é meu", lia Pessoa na página em que não sei

o que lia, o universo "sou eu" — fonte

sonolenta

que se bebe a si própria

e mais nada. Também a mim

me doeu "a cabeça e o universo" nesses dias

em que fui abandonado à tona de água

como se a água tivesse um dentro e um fora

e os cabelos que me foram caindo não dissessem

que tudo são cabelos correndo como rios

um pouco loucos

de um lado para o outro — "uma vaga doença",

"um prenúncio de morte"

que não tem outro mistério além do mistério

de partirem barcos. Também eu

me sentei à mesa de Pessoa no Martinho

da Arcada enquanto lá fora chovia

"como se houvesse chovido(... )

desde a primeira página do mundo"

e o que faço agora é vê-lo estar lendo um nada

que é tudo basta olhar

para o olhar do amigo que sobre o poeta se debruça,

mudo. O enigma que vê outro enigma

no palco ainda verde

e já em ruína.

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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