(Para Elza)
Minha alma descansa
na tua alma,
onde a luz jamais
desativada:
é um navio de longo
curso pela água.
Redonda a luz e nós
atracamos na foz
com o fundo calmo.
Em mim te almas
e te amando, eu almo.
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Contra a Esperança
É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.
É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
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Entreato
Testemunhei o desconcerto
meu e de todos;
não escondi o logro.
Se nunca me rendi,
somente desarmei
o que perdi.
Nada retirei
dos arsenais
a não ser
(por meu mal)
este revólver
sem balas,
calibre de horas
padecidas
e um coldre
de ambições.
Sim, muito trabalhei
por natureza e lei.
Medir não aprendi:
a morte, a vida.
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Entre as Cinzas
Confesso às formigas
as cruas penas e elas
na terra da noite lerda
Serão futuras amigas
e confidentes. Meu corpo
poderá falar as ternas
coisas que nos ignoram.
Só falarei com meu corpo,
que a alma estará longe.
E as formigas não precisam
que alma exista. Cotovias
da escuridão, sabidas,
mínimas, deixam suas folhas
no formigueiro. Entre as cinzas,
o pó se encherá de falas.
E minha boca de formigas.
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Os Cavalos
Os cavalos tinham o ardor de nuvens se empinando.
Vinham, inteiros, no nitrir das tardes, junto às oliveiras.
Meninos em férias, focinhavam dálias. Eram exaltados,
amoráveis e as ervas das crinas mugiam de verdor.
As pálpebras amor baixavam. E às vezes, os cavalos
se riam , a dentuça à mostra. Coçavam-se nas ancas, com
a ferrugem de sediciosas vespas.
Eternos, quando saltam. Ou descarregam rolos de ares
bêbados. Todo galope é um pássaro.
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Luiz Vaz de Camões
Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim,bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.
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Soneto aos Sapatos Quietos
Os pés dos sapatos juntos.
Hei-de calçá-los, soltos
e imensos, e talvez rotos,
como dois velhos marujos.
Nunca terão o desgosto
que tive. Jamais o sujo
desconsolo: estando postos,
como eu, em chãos defuntos.
Em vãos de flor, sem o riacho
de um pé a outro, entre guizos.
Não há demência ou fome.
Sapatos nos pés não comem.
Só dormem. Porém, descalço
pela alma, o paraíso.
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