A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

DANIEL FILIPE

Biografia

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Daniel Filipe nasceu na Ilha da Boavista, em 1925 e faleceu em 1964.

Foi funcionário público, jornalista, publicitário, poeta e ficcionista. Dirigiu, na Emissora Nacional, um programa literário intitulado Voz do Império.

Colaborou com produções suas em várias publicações nomeadamente Távola Redonda, Cabo Verde e nos cadernos Notícias do Bloqueio, dos quais foi co-director.

As suas duas primeiras obras são dois livros de poesia - Missiva e Marinheiro em Terra - e datam respectivamente de 1946 e 1949.

 

Obra:

Ficção
Manuscrito na Garrafa, 1960
 

Poesia
Missiva, 1946
Marinheiro em Terra, 1949
O Viajeiro Solitário, 1951
Recado para a Amiga Distante, 1956
A Ilha e a Solidão, 1957
A Invenção do Amor, 1961
Pátria, Lugar de Exílio, 1963
 

 

Poesias Eternas

Romance de Tomasinho-Cara-Feia

 

Pátria Lugar de Exílio (fragmento)

 

Morna

 

 

 

 

 

 

 

Romance de Tomasinho-Cara-Feia

 

Farto de sol e de areia,

que é o mais que a terra dá,

Tomasinho-Cara-Feia

vai prà pesca da baleia.

Quem sabe se tornará?

 

Torne ou não torne, que tem?

Vai cumprir o seu destino.

Só nha Fortunata, a mãe,

que é velha e não tem ninguém,

chora pelo seu menino.

 

Torne ou não torne, que importa?

Vai ser igual ao avô.

Não volta a bater-me à porta;

deixou para sempre a horta,

que a longa seca matou.

 

Tomasinho-Cara-Feia,

(outro nome quem lho dá?)

farto de sol e de areia,

foi prà pesca da baleia.

 

- E nunca mais voltará.

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Pátria lugar de exílio
(fragmento)


Neste ano de 1962

não como Hazim Hikmet no avião de pedra

mas na minha cidade

livre de ir onde quiser

e no entanto prisioneiro

neste ano de 1962

exatamente

em Lisboa

Avenida de Roma número noventa e três

às três horas da tarde





Neste ano de 1962

encostado a uma esquina da estação do Rossio

esperando talvez a carta que não chega

um amor adolescente

meu Paris tão distante

minha África inútil

aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura

cumprindo os pequenos ritos quotidianos

cigarro após o almoço

café com pouco açúcar

má-língua e literatura





Aqui mesmo a mão sei quantos graus de latitude

e de enjôo crescente

solitário e agreste

invisível aos olhos dos que amo

ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado

com um erro de contas

incapaz de dizer toda a minha ternura

operária de fábrica com três filhos famintos





Aqui mesmo envolto na placidez burguesa

higienicamente limpo e com os papéis em ordem

vestido de nylon dralon leacril

com acabamentos sanitized

e lugar marcado junto ao aparelho de TV

eu

enjoado de tudo e contemporizando com tudo

eu

peça oleada do mecanismo de trituração

eu

incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia

eu

apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto

eu

neste ano de 1962

exatamente

não ontem mas precisamente às três horas da tarde

pela hora oficial

exilado na pátria

 

 

MORNA


É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.


(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.

                (A ilha e a solidão)
 

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