A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

RUBEM BRAGA

Biografia

 

1913-1990

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Rubem Braga, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES), em 1913 e faleceu em 1990.

 

Poesias Eternas

Ao Espelho

Aquela Mulher

Poeta Cristão

Soneto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poeta Cristão

 

 

A poesia anda mofina,

Mofina, mas não morreu.

Foi o anjo que morreu:

Anjo não se usa mais.

Ainda se usa estrela

Se usa estrela demais.

 

Poeta religioso

Mocinha não pode ler:

Pecará em pensamento,

Que o poeta gosta do Novo,

Mas pilha seus amoricos

É no Velho Testamento.

 

Ai, o Velho Testamento!

Eu também faço poema,

Ora essa, quem não faz:

Boto uma estrela na frente

E um pouco de mar atrás.

 

Boto Jesus de permeio

Que Deus, nos pratos de amor,

É um excelente recheio.

E isso bem posto e disposto

Me vou aos peitos da Amada:

Sulamita, Sulamita,

Por ti eu me rompo todo,

Sou cavalheiro cristão.

Minh’alma está garantida

Num rodapé do Tristão

E o corpo? O corpo é miséria,

Peguei doença, mas Jorge

de Lima dá injeção!

 

O badalo está chamando,

Bão-ba-la-lão.

 

Amada, não vai lá não!

Eu também tenho badalos –

Bão-ba-la-lão

Eu sou poeta cristão!

 

(Rio, maio, 1940) 

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Aquela Mulher

 

 

O médico me levou até o elevador.

Quando cheguei à rua

Sabia que já não estava condenado a morrer.

Mas as horas de perigo, de certeza da morte,

De preparação para a morte,

As horas da morte ainda batiam dentro de mim.

Nessas horas a vida recuara ante meus olhos,

Cheia

De suas fascinações, tristezas e ternuras,

Estava orgulhoso de mim mesmo.

De meu pensamento viril diante da morte,

Da força de meu ódio aos inimigos que eu pensara em matar antes de morrer.

Do amor, do grande e comovido amor

Com que eu me despedia em silência de vós, almas queridas,

Almas queridas a que jamais servi bem.

Ia pela rua, mas ainda ia a meu lado

A sombra sem terror mas inapelável

Da morte.

Foi então que passou a desconhecida mulher

Abençoada eternamente seja essa mulher!

Uma alta, bela, desconhecida mulher

Que andava com seu andar de desconhecida mansa

Seus finos cabelos negros brilhavam ao sol

E seus olhos eram claros como a vida que renascia.

No seu corpo havia a doce dignidade essencial

Que é a marca suprema da beleza na mulher.

Eu a fitei, eu detive os seus olhos com os meus,

Foi apenas um segundo.

Ela não desviou os seus,

Apenas continuou na sua marcha mansa

Não sentiu nos meus olhos a aflição deslumbrada

A ansiosa descoberta, a impressão de milagre

Nos meus olhos ressucitados que saudavam

E abençoavam, abençoavam ardentemente sua natureza de mulher.

Eu estava tão sólido em face da morte,

De minha morte, de minha obscura morte,

Estava tão sólido, firme, bem plantado e certo

Perante a morte – e agora

Era como se a vida como alta onda desabasse

Sobre mim, e num instante

Senti toda a sua força furiosa, o desespero, a beleza,

A ânsia que não tem fim, a sede, a dolorosa

Exaltação que sempre foi a vida para mim,

A tonteira cruel, a coragem, a promessa

O que ela me dá, o que tomo, o que roubo,

O que espero, e tudo, tudo o que eternamente desespero.

Senti-me fraco, miserável, diante da vida,

À mercê da sua força inelutável, da atração

Cruel com que me chama todo dia.

Senti a sua exasperante incerteza,

Senti num instante toda a sua longa, longa,

Mortificante melancolia.

Fazia sol na rua.

Dois homens pararam me olhando. Eu olhava

Longe – com meu olhar ressuscitado

Que de longe, muito longe, ainda

Abençoava aquela mulher.

 

(São Paulo, 1941)

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Soneto

 

E quando nós saímos era a Lua,

Era o vento caído e o amr sereno

Azul e cinza-azul anoitecendo

A tarde ruiva das amendoeiras.

 

E respiramos, livres das ardências

Do sol, que nos levara à sombra cauta

Tangidos pelo canto das cigarras

Dentro e fora de nós exasperadas.

 

Andamos em silêncio pela praia.

Nos corpos leves e lavados ia

O sentimento do prazer cumprido.

 

Se mágoa me ficou na despedida

Não fez mal que ficasse, nem doesse –

Era bem doce, perto das antigas.

(1947)

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Ao Espelho

 

Tu, que não foste belo nem perfeito,

Ora te vejo (e tu me vês) com tédio

E vã melancolia, contrafeito,

Como a um condenado sem remédio.

 

Evitas meu olhar inquiridor

Fugindo, aos meus dois olhos vermelhos,

Porque já te falece algum valor

Para enfrentar o tédio dos espelhos.

 

Ontem bebeste em demasia, certo,

Mas não foi, convenhamos, a primeira

Nem a milésima vez que hás bebido.

 

Volta portanto a cara, vê de perto

A cara, tua cara verdadeira,

Oh Braga envelhecido, envilecido.

 

(1957)

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