LÊDO
IVO
Biografia 1924 Poeta, romancista e ensaísta, Lêdo Ivo, nasceu em Maceió, Estado de Alagoas, no Brasil. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 19 anos e, um ano mais tarde, publicou o seu primeiro livro, As Imaginações. Fez jornalismo e tradução e é membro da Academia Brasileira de Letras. Da sua vasta obra, destacam-se títulos como Ninho de Cobras, A Noite Misteriosa, As Alianças, A Ética da Aventura ou Confissões de um Poeta.
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Poesias Eternas Aviso aos Urubus Ameaçados de Morte
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Que deixem passar- eis
o que peço
diante da porta ou
diante do caminho.
E que ninguém me siga
na passagem.
Não tenho
companheiros de viagem
nem quero que ninguém
fique ao meu lado.
Para passar, exijo
estar sozinho,
somente de mim mesmo
acompanhado.
Mas caso me proíbam
de passar
por ser eu diferente
ou indesejado
mesmo assim passarei.
Inventarei a porta e o
caminho.
E passarei sozinho.
Aviso aos Urubus Ameaçados de Morte
Aviso aos poetas
que cantam as estações:
nas favelas do Brasil
não há primavera.
Em São Gonçalo,
na grande Niterói,
não há cotovias
nem rouxinóis.
Só urubus
que disputam com os
homens
o pão dos monturos.
Cuidado, urubus,
com as turbinas dos
jactos
no céu azul.
Quem é Deus não é
Quem, nem Que, nem Quando.
Vive oculto no bosque,
como o esquilo.
Deus não é Isto ou
Aquilo. Deus é a lei
da maré que se eleva
na restinga.
Entre água e terra
avanço, e na laguna
procuro Deus: a sombra
persistente
de uma luz apagada de
repente
na casa construída
sobre a duna.
O vento lava o tempo e
o deposita
no rochedo insultado
pelas ondaqs
comos e fora um pássaro
ferido.
E Deus é Deus, mormaço
e areia e voo.
E no mundo vazio o mar
ressoa,
volta festiva de um
tambor tardio.
"Uma vida que não
termina em suicídio é uma vida frustrada,
um mar atravessado
pelo grito de um naufrágio,
uma luz humilhada pela
escuridão da madrugada,
uma tediosa aceitação
do dia", dizia o suicida.
E se jogou da ponte
Rio-Niterói quando ao sol nascente
a noite se partia em
vento e vela,
um galo cantava a bela
alvorada,
uma mosca zumbia a sua
melancolia
na aurora que
antecipava o barulho do mundo,
e um navio passava
pelo mar já iluminado.
No dia que nascia como
nasce o dia,
luz incerta que
extingue a madrugada,
o suicida caiu na água
fria da baía
e não achou a morte.
Só achou o nada.
O dia está cheio de
palavras.
Elas escorrem como a
água das sarjetas ou a saliva da boca
dos demagogos.
Espalham-se no chão
como as folhas de um outono excessivo.
Transbordam das
lixeiras junto com as latas de coca-cola e
restos de comida.
São piolhos que avançam
na selva da tarde.
Ninguém pode viver
sem as palavras.
Isto explica o
desconforto dos passageiros do metro.
Condenados a um silêncio
temporário
eles se entreolham
suspeitosamente na plataforma da estação
e estremecem quando as
portas do trem se fecham.
Embalados pelos
solavancos de um viagem sem paisagem
ouvem os vagões
rangerem nos trilhos taciturnos
na escuridão que
sustenta o clamor da cidade.
É o que sobra do
rumor do mundo. Mas eles querem o instante
em que, devolvidos ao
dia loquaz, voltarão a falar.
Rilke vai ao dentista.
Nenhum dos seus anjos
o acompanha.
Ou todos os anjos do
mundo o acompanham.
É outono em Berlim.
As folhas das tílias
caem como os pássaros
silenciosos.
O homem não foi feito
para as pequenas dores.
Protegido do frio por
um espesso sobretudo
(presente da pincesa
Maria von Thurn und Taxis)
Rilke se encaminha
para o consultório do dr. Bodecker.
As ruas iguais aos
mares sucessivos
o conduzem à vida, não
à Morte.
O raio que caiu
dividiu o verão.
a cisterna de luz
escorria na terra
sob a nuvem purpúrea
e o voo do gavião,
e me alcançou em
cheio, no meio de mim
como o aroma da flor
que se ergue no jardim
para impor a quem
passa o domínio do instante.
O sol desmoronado
escondeu os seus raios
na doçura da palha
espalhada no estábulo.
A serpente agoniza,
mudada em coral.
A relva abre caminho
no silêncio dos homens
que escalam as
montanhas douradas do outono.
Entre os que vão e vêm
eu também venho e vou.
Nos tormentos do mundo
fui multiplicado
e de tanto existir já
não sei mais quem sou.
Em minha casa entre as
árvores ouço o rumor da noite.
O vento escorraça os
astros crepitantes
As montanhas descem em
direcção ao mar como rebanhos
que não tivessem
esperado a licença da aurora para
a migração necessária.
E a erva cresce. E a
água corre. E o mundo recomeça
como uma palavra
interrompida. E as nuvens caem do céu
e rastejam no caminho
danificado pelas chuvas de janeiro.
Um pio atravessa a
folhagem murmurante.
A coruja branca, minha
irmã sedentária,
vigia na escuridão o
mundo abandonado
por tantas pálpebras
fechadas.
In
JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS, nº 753, de 11 a 24 de Agosto de 1999
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.