GUILHERME
DE ALMEIDA
Biografia 1890-1969 |
Poesias Eternas
|
A tentação
Media nocte surgebam...
(Psa. CXVIII, Heth, 62)
Por uma noute douda,
eu levantei-me toda
envolta em cinza & spleen,
& fui, a passo lento,
plantar meu pensamento
num canto do jardim.
A terra, clara & fria,
sonhava que era dia;
&, no jardim claustral,
as grandes flores loucas
beijavam, como boccas,
a noute tropical.
Havia, no ar parado,
perfumes de peccado,
clarões de olhos pagãos,
& musicas de beijo,
sabores de desejo,
contactos de alvas mãos...
E a noute voluptuosa
entrou-me -- deliciosa
como um punhal de mel --
a carne, onde os sentidos
viviam esquecidos,
bebendo absyntho & fel.
Então, na trama escura
daquella noute impura,
um desejo infernal
luziu &, num instante,
riscou, como um diamante,
minha alma de crystal.
Foi meu desejo louco
diluir-me, pouco a pouco,
nessa noute pagã,
para que o sol entrasse
como um amante, & amasse
meu corpo, de manhã...
Quando voltei á vida
olhei, arrependida,
o céo sereno... E vi,
num risco, de repente,
uma estrella cadente
cahir como eu cahi.
Matinas & Laudes
Parte I
Livro de Horas de Soror Dolorosa
"A que morreu de amor"
Emp. Graph. Rossetti Ltda, 1ª Edição numerada - 2139 -, São Paulo, 1928
Guilherme de Almeida
FLOR DO ASFALTO Flor do asfalto, encantada flor de seda, sugestão de um crepúsculo de outono, de uma folha que cai, tonta de sono, riscando a solidão de uma alameda... Trazes nos olhos a melancolia das longas perspectivas paralelas, das avenidas outonais, daquelas ruas cheias de folhas amarelas sob um silêncio de tapeçaria... Em tua voz nervosa tumultua essa voz de folhagens desbotadas, quando choram ao longo das calçadas, simétricas, iguais e abandonadas, as árvores tristíssimas da rua! Flor da cidade, em teu perfume existe Qualquer coisa que lembra folhas mortas, sombras de pôr de sol, árvores tortas, pela rua calada em que recortas tua silhueta extravagante e triste... Flor de volúpia, flor de mocidade, teu vulto, penetrante como um gume, passa e, passando, como que resume no olhar, na voz, no gesto e no perfume, a vida singular desta cidade! (Guilherme de Almeida)
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.