GREGÓRIO
DE MATOS
Biografia 1623-1696 PEQUENA
BIOGRAFIA DO DR. GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA Gregório
de Matos e Guerra, filho de fidalgo português e abastado senhor de engenho,
nasceu na Cidade do Salvador, Bahia, no dia 20 de dezembro de 1623, tendo sido
batizado no dia 28 do mesmo mês e ano com o nome de João; depois trocado para
Gregório, como o do pai. Foi mandado para estudar em Coimbra, Portugal, ainda
moço, tendo então se tornado um dos primeiros doutores brasileiros formado na
famosa escola , onde formou-se Bacharel e conheceu a obra de Camões, Gôngora e
Quevedo. Em Lisboa, viveu cerca de vinte anos, casou-se e foi juiz do crime e de
órfãos. Tendo falecido a esposa, aceitou os cargos de Vigário-geral e de
Tesoureiro mor no Arcebispado do Brasil, recém criado e retornou à Bahia, onde
produziu cerca de 95% dos poemas que sobreviveram aos séculos. Aliando-se à
nascente oposição ao poder colonial, faz amizade com intelectuais, políticos
nativista e com senhores de engenho espoliados pelo comércio português. Em
conseqüência, sua poesia nessa fase é de condenação "ao roubo, à
injustiça, à tirania". Sendo a imprensa era proibida na Colônia, a
poesia sai à rua e é uma festa para os marginalizados do sistema, publico para
o qual GM se volta cada vez mais tornando-se um fenômeno de popularidade.
Repele "o falar agongorado", "os cultos modos" e se põe a
dizer coisas de estarrecer no tom das chularias, na "linguagem
corriqueira", fundando, assim, a poesia brasileira. Na tentativa de cala-lo
a Igreja oferece-lhe a batina. O Poeta recusa e, destituído das funções
publicas, sobrevive miseravelmente da sua banca de advogado, onde a mesa de
trabalho é adornada com bananas em lugar de flores. Depois,
abandona a mulher e o filho, fecha o escritório e, livre de peias, passa a
viver da hospitalidade nos engenhos e nas casas de admiradores e amigos. Nessa
fase, sua poesia esquece a sátira moralizante e assume os valores de uma vida
libertária. O Poder, que até então limitara-se a admoestá-lo com breves prisões e com a demissão dos cargos e funções, decide-se por punição mais severa, pois uma coisa era tolerar de um doutor de Coimbra o protesto de vate moralizador, mesmo quando atingia homens de bem, outra era, contudo, vê-lo freqüentando a ralé e os elementos da reação anticolonial. Foi então que desterraram-no para Angola de onde retornou para morrer no Brasil, em Pernambuco, no ano de 1696. Descreve a Cidade do Salvador, "Cidade
da Bahia", como era conhecida e como ainda é chamada nas cidades do Recôncavo
Baiano.
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Poesias Eternas
Seiscentista 2- SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA 3- A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA 4-AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS. A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO. 5- AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APARECIDO. 6- AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE SENDO ANTIGO HE MUYTO BELLO. 7- A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR. 8- A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA. 9- AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCASIÃO. 10-AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR 11-ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR. 12-A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS NAQUELLE TEMPO:'BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?" O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO ÀS TENTAÇÕES DIABOLICAS. 13- AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO RECOPYLADO NA FLOR DE MARACUJÁ. 14- RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO? NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS RESPOSTAS DE NOSSOS POETAS. 15- AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA COUSA MAIS QUE A PROVIDÊNCIA DIVINA. 16- NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA. 17- CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS. 18- CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E VIDA RELAXADA. 20- A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA. 21- A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA. 24- AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N. SENHORA DE MONSARRATE. 25- A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO. 26- AO GLORIOSO PORTUGUES SANTO ANTONIO. 28- AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR. 29-A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA. 30-SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIMO SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA, PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CRÉDITO DA VENERÁVEL RELIGIOSA.
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... certa pessoa muito principal ...
Salve, Celeste Pombinha,
Salve, divina Beleza,
Salve, dos Anjos Princesa,
e dos céus, Salve Rainha.
Sois graça, luz, e concórdia
entre os maiores horrores,
sois guia de pecadores,
Madre de Misericórdia
Sois divina Formosura,
sois entre as sombras da morte
o mais favorável Norte,
e sois da vida Doçura
Sois a peregrina Ave,
pois minha fé vos alcança
sois pois ditosa esperança
Esperança nossa Salve
Vosso favor invocamos
como remédio mais raro,
não nos falte vosso amparo,
e vede, que a vós bradamos
Os da Pátria desterrados
viver na pátria desejam;
quereis vós, que dela sejam
deste mundo os degradados?
De Jesus tanto agrado leva
de com os homens viver,
nós somos, bem podeis ver,
os mesmos Filhos de Eva.
Humildes vos invocamos
com rogos enternecidos,
e desse amparo rendidos,
Senhora, a vós supiramos.
Se Deus nos perdoa, quando
a nossa culpa é chorada,
estamos por ser perdoada
aqui gemendo, e chorando.
Mas vós, por quem mais se vale,
Lírio do Vale, chorais,
e o vosso pranto val mais
neste de Lágrimas Vale
Já que tão piedosa sois
não tardeis com vosso rogo,
alcançai o perdão logo,
apressai-vos eia pois.
Porque desde agora possa
triunfar qualquer de nós
de inimigo tão atroz
pedi advogada nossa.
E enquanto nestes abrolhos
do mundo postos estamos,
de nós, que o caminho erramos
não tireis os vossos olhos.
Sejam sempre piedosos
para nos favorecer,
e para nos socorrer
sejam misericordiosos.
Favorecer-nos quereia,
de vossos olhos co'a guia,
gloriosa Virgem Maria
sempre eles a nós volvéi
Livrai-nos de todo erro
para que assim consigamos
graça enquanto aqui andamos
e depois deste desterro
Pois vosso Filho é a luz
e alumiar-nos quereis,
para que esta mostreis
nos amostrai a Jesus
E se como raio bruto
o fruto vemos vedado
noutro paraíso dado
veremos o bento Fruto
Em nossos corações entre
seu amor, pois é razão,
seja meu de coração,
o que foi do vosso ventre
De Jericó melhor Rosa,
puro, e cândido Jasmim,
quereis vós, que seja assim
ó clemente, ó piedosa.
Tenhamos esta alegria,
esta doçura tenhamos,
pois que tanta em vós achamos,
ó doce Virgem Maria
Pois quem mais pode, sois vós,
chegando a Deus a pedir
para melhor vos ouvir,
pedi, e rogai por nós.
Que então os favores seus
muito melhor seguramos,
pois que neles empenhamos
a Santa Madre de Deus.
Fazei-nos sempres benignos
entre deste mundo os sustos
para que sejamos justos
para que sejamos dignos
E se nos concedeis isto,
que vos pede o nosso rogo
mui dignos nos fareis logo
ser das promessas de Cristo
Seja pois, divina luz,
melhor Estrela, assim seja
para que por nós se veja
Vosso amparo. Amém Jesus
Venho, Madre de Deus, ao Vosso monte
E reverente em vosso altar sagrado,
Vendo o Menino em berço argenteado
O sol vejo nascer desse Horizonte.
Oh quanto o verdadeiro Faetonte
Lusbel, e seu exército danado
Se irrita, de que um braço limitado
Exceda na soltura a Alcidemonte.
Quem vossa devoção não enriquece?
A virtude, Senhora. é muito rica,
E a virtude sem vós tudo empobrece.
Não me espanto, que quem vos sacrifica
Essa hóstia do altar, que vos ofrece,
Que vós o enriqueçais, se a vós a aplica.
Entre as partes do todo a melhor parte
Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo
Se na parte do peito o quis pôr todo
O peito foi foi do todo a melhor parte.
Parta-se pois de Deus o corpo em parte,
Que a parte, em que Deus ficou o amor todo
Por mais partes, que façam deste todo
De todo fica intacta essa só parte.
O peito já foi parte entre as do todo,
Que tudo mais rasgaram parte a parte;
Hoje partem-se as partes deste todo
Sem que do peito todo rasguem parte,
Que lá quis dar por partes o amor todo,
E agora o quis dar todo nesta parte.
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Em todo o sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.
Oh, quanta divindade, oh quanra graça,
Menino, em vosso vulto sacro, e belo
Infunde a mão de tal gentil modelo,
Inspira o Autor de tão divina traça!
Se o tempo aos mais vultos desengraça
Na vossa Imagem não deslustra um pêlo:
Reverente o tratou com tal desvelo,
Que o que eleva menino, velho embaça.
Quanto a idade usurpa de beleza
Nos que somos mortais, paga em respeito,
Venerações, que atrai a antiguidade.
Mas de vossa escultura a gentileza
Tem trocado do tempo o edaz efeito
Venera-se a beleza, ama-se a idade.
Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,
É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.
Maldade, que encaminha à vaidade,
Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Luz, que claro me mostra a salvação,
A salvação pertendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.
Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme, e inteiro.
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minh vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor, e meu delito,
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Tremendo chego, meu Deus
Ante vossa divindade,
que a fé é muito animosa,
mas a culpa mui cobarde.
À vossa mesa divina
como poderei chegar-me,
se é triaga da virtude
e veneno da maldade?
Como comerei de um pão,
que me dais, porque me salve?
um pão, que a todos dá vida,
e a mim temo, que me mate.
Como não hei de ter medo
de um pão, que tão formidável
vendo, que estais todo em tudo,
e estais todo em qualquer parte?
Quanto a que o sangue vos beba,
isso não, e perdoai-me:
como quem tanto vos ama,
há de beber-vos o sangue?
Beber o sangue do amigo
é sinal de inimizade;
pois como quereis, que o beba,
para confirmarmos pazes?
Senhor, eu não vos entendo;
vossos preceitos são graves,
vossos juízos são fundos,
vossa idéia inescrutável.
Eu confuso neste caso
entre tais perplexidades
de salvar-me, ou de perder-me,
só sei, que importa salvar-me.
Oh se me déreis tal graça,
que tenho culpas a mares,
me virá salvar na tábua
de auxílios tão eficazes!
E pois já à mesa cheguei,
onde é força alimentar-me
deste manjar, de que os Anjos
fazem seus prórios manjares:
Os Anjos, meu Deus, vos louvem,
que os vossos arcanos sabem,
e os Santos todos da glória,
que, o que vos devem, vos paguem.
Louve-vos minha rudeza,
por mais que sois inefável,
porque se os brutos vos louvam,
será a rudeza bastante.
Todos os brutos vos louvam,
troncos, penhas, montes, vales,
e pois vos louva o sensível,
louve-vos o vegetável.
Meu amado Redentor,
Jesu Cristo soberano
Divino Homem, Deus Humano,
da terra, Deus criador:
por seres, quem sois, Senhor,
e porque muito vos quero,
me pesa com rigor fero
de vos haver ofendido,
do que agora arrependido,
meu Deus, o perdão espero.
Bem sei, meu Pai soberano,
que na obstinação sobejo
corri sem temor, nem pejo
pelos caminhos do engano:
bem sei também, que o meu dano
muito vos tem agravado,
porém venho confiado
em vossa graça, e amor,
que também sei, é maior,
Senhor, do que meu pecado.
Bem não vos amo, confesso,
várias juras cometi,
missa inteira nunca ouvi,
a meus Pais não obedeço:
matar alguns apeteço,
luxurioso pequei,
bens do próximo furtei,
falsos levantei às claras,
desejei mulheres raras,
cousas de outrem cobicei.
Para lavar culpas tantas,
e ofensas, Senhor,tão feias
são fortes de graça cheias
essas chagas sacrossantas:
sobre mim venham as santas
correntes do vosso lado;
para que fique lavado,
e limpo nessas correntes,
comunica-me as enchentes
da graça, meu Deus amado.
Assim, meu Pai, há de ser,
e proponho, meu Senhor,
com vossa graça, e amor
nunca mais vos ofender:
prometo permanecer
em vosso amor firmemente,
para que mais nunca intente
ofensas contra meu Deus,
a quem os sentidos meus
ofereço humildemente.
Humilhado desta sorte,
meu Deus do meu coração,
vos peço ansioso o perdão
por vossa paixão, e morte:
à minha alma em ânsia forte
perdão vossas chagas dêem,
e com o perdão também
espero o prêmio dos Céus,
não pelos méritos meus,
mas do vosso sangue: amém.
e a lembrança do presente
é em mim tão continente,
como do mundo murmuro?
Será, porque não procuro
temer do princípio o fim?
Será, porque sigo assim
cegamente o meu pecado?
mas se me vir condenado,
Meu Deus, que será de mim?
Demônio Se não segues meus enganos,
e meus deleites não segues,
temo, que nunca sossegues
no florido dos teus anos:
vê, como vivem ufanos
os descuidados de si;
canta, baila, folga, e ri,
pois os que não se alegraram.
dous infernos militaram.
Bangüê, que será de ti?
Alma Se para o céu me criastes,
Meu Deus, à imagem vossa,
como é possível, que possa
fugir-vos, pois me buscastes:
e se para mim tratastes
o melhor remédio, e fim,
eu como ingrato Caim
deste bem tão esquecido
tenho-vos tão ofendido:
Meu Deus, que será de mim?
Demônio Todo o cantar alivia,
e todo o folgar alegra
toda a branca, parda e negra
tem sua hora de folia:
só tu na melancolia
tens alívio? canta aqui,
e torna a cantar ali,
que desse modo o praticam,
os que alegres pronosticam,
Bangüê, que será de ti?
Alma Eu para vós ofensor,
vós para mim ofendido?
eu já de vós esquecido,
e vós de mim redentor?
ai como sinto, Senhor,
de tão mau princípio o fim:
se não me valeis assim,
como àquele, que na cruz
feristes com vossa luz,
Meu Deus, que será de mim?
Demônio Como assim na flor dos anos
colhes o fruto amargoso?
não vês, que todo o penoso
é causa de muitos danos?
deixa, deixa desenganos,
segue os deleites, que aqui
te ofereço: porque ali
os mais, que cantando vão,
dizem na triste canção,
Bangüê que será de ti?
Alma Quem vos ofendeu, Senhor?
Uma criatura vossa?
como é possível, que eu possa
ofender meu Criador?
triste de mim pecador,
se a glória, que dais sem fim
perdida num serafim
se perder em mim também!
Se eu perder tamanho bem,
Meu Deus, que será de mim?
Demônio Se a tua culpa merece
do teu Deus a esquivança
a folga no mundo, e descansa,
que o arrepender aborrece:
se o pecado te entristece,
como já em outros vi,
te prometo desde aqui,
que os mais da tua facção,
e tu no inferno dirão,
Bangüê, que será de ti?
Divina flor, se en essa pompa vana
Los martirios ostentas reverente,
Corona con los clavos a tu frente,
Pues brillas con las llagas tan losana.
Venera essa corona altiva, y ufana,
Y en tus garbos te ostenta floreciente:
Los clavos enarbola eternamente,
Pues Dios com sus heridas se te hermana.
Si flor nasciste para mas pomposa
Desvanecer floridos crescimientos
Ya, flor, te reconocen mas dichosa.
Que el cielo te ha gravado en dos tormentos
En clavos la corona mas gloriosa,
Y en llagas sublimados luzimientos.
Ya rendida, y prostrada mas que vana
A vuestros pies mi Musa reverente
Por coronar com ellos a su frente
Del suelo sube al cielo mas losana.
Por convencido ostenta gloria ufana,
Que tiene por corona floreciente
El quedar-se rendida eternamente,
Porque humilhada al triumpho se germana.
Rendimiento fiel haze pomposa,
Que en beber los castalios crescimientos
Se adquire la ventura mas dichosa.
A que Phenix nos causa mil tormentos
Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa
Por ser rendida a vuestro luzimiento.
Isto, que ouço chamar por todo o mundo
Fortuna, de uns cruel, d'outros impia,
É no rigor da boa teologia
Providência de Deus alto, e profundo.
Vai-se com temporal a Nau ao fundo
carregada de rica mercancia,
Queixa-se da Fortuna, que a envia,
E eu sei, que a submergiu Deus iracundo.
Mas se faz tudo a alta Providência
De Deus, como reparte justamente
À culpa bens, e males à inocência?
Não sou tão perspicaz, nem tão ciente,
Que explique arcanos d'alta Inteligência,
Só vos lembro, que é Deus o providente.
Na oração, que desaterra....................................................aterra
Quer Deus, que, a quem está o cuidado...............................dado
Pregue, que a vida é emprestado.........................................estado
Mistérios mil, que desenterra...............................................enterra.
Quem não cuida de si, que é terra........................................erra
Que o alto Rei por afamado..................................................amado,
E quem lhe assiste ao desvelado .........................................lado
Da morte ao ar não desaferra................................................aferra.
Quem do mundo a mortal loucura..........................................cura,
A vontade de Deus sagrada..................................................agrada,
Firmar-lhe a vida em atadura.................................................dura.
Ó voz zelosa, que dobrada....................................................brada,
Já sei, que a flor da formosura...............................................usura
Será no fim desta jornada......................................................nada.
Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,
Te lembra hoje Deus por sua Igreja,
De pó te faz espelho, em que se veja
A vil matéria, de que quis formar-te.
Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,
E como o teu baixel sempre fraqueja
Nos mares da vaidade, onde peleja,
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.
Alerta, alerta pois, que o vento berra,
E se assopra a vaidade, e incha o pano,
Na proa a terra tens, amaina, e ferra.
Todo o lenho mortal, baixel humano
Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é porto soberano.
Ai de mim! Se neste intento,
e costume de pecar
a morte me embaraçar
o salvar-me, como intento?
que mau caminho freqüento
para tão estreita conta;
oh que pena, e oh que afronta
será, quando ouvir dizer:
vai, maldito, a padecer,
onde Lucifer te aponta.
Valha-me Deus, que será
desta minha triste vida,
que assim mal logro perdida,
onde, Senhor, parará?
que conta se me fará
lá no fim, onde se apura
o mal, que sempre em mim dura,
o bem, que nunca abracei,
os gozos, que desprezei,
por uma eterna amargura.
Que desculpa posso dar,
quando ao tremendo juízo
for levado de improviso,
e o demônio me acusar?
Como me hei de desculpar
sem remédio, e sem ventura,
se for para aonde dura
o tormento eternamente,
ao que morre impenitente
sem confissão, nem fé pura.
Nome tenho de cristão,
e vivo brutualmente,
comunico a tanta gente
sem ter, quem me dê a mão:
Deus me chama co perdão
por auxílios, e conselhos,
eu ponho-me de joelhos
e mostro-me arrependido;
mas como tudo é fingido,
não me valem aparelhos.
Sempre que vou confessar-me,
digo, que deixo o pecado;
porém torno ao mau estado,
em que é certo o condenar-me:
mas lá está quem há de dar-me
o pago do proceder:
pagarei num vivo arder
de tormentos repetidos
sacrilégios cometidos
contra quem me deu o ser.
Mas se tenho tempo agora,
e Deus me quer perdoar,
que lhe hei de mais esperar,
para quando? ou em qual hora?
que será, quando traidora
a morte me acometer,
e então lugar não tiver
de deixar a ocasião,
na extrema condenação
me hei de vir a subverter.
O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado
O resplandor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!
Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d'outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.
Para Mãe, para Esposa, Templo, e Filha
Decretou a Santíssima Trindade
Lá da sua profunda eternidade
A Maria, a quem fez com maravilha.
E como esta na graça tanto brilha,
No cristal de tão pura claridade
A segunda Pessoa humanidade
Pela culpa de Adão tomar se humilha
Para que foi aceita a tal Menina?
Para emblema do Amor, obra piedosa
Do Padre, Filho, e Pomba essência trina:
É logo conseqüência esta forçosa,
Que Estrela, que fez Deus tão cristalina
Nem por sombras da sombra a mancha goza.
Como na cova tenebrosa, e escura,
A quem abriu o Original pecado,
Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;
Podíeis vós cair, ó virgem pura?
Nem Deus, que o bem das almas só procura,
De todo vendo o mundo arruinado,
Permitira a desgraça haver entrado,
Donde havia sair nova ventura.
Nasce a rosa de espinhos coroada
Mas se é pelos espinhos assistida,
Não é pelos espinhos magoada.
Bela Rosa, ó virgem esclarecida!
Se entre a culpa se vê, fostes criada,
Pela culpa não fosse ofendida.
Antes de ser fabricada
do mundo a máquina digna,
já lá na mente divina,
Senhora, estáveis formada:
com que sendo vós criada
então, e depois nascida
(como é cousa bem sabida)
não podíeis, (se esta sois)
na culpa, que foi depois,
nascer, Virgem, comprendida
Entre os nascidos só vós
por privilégio na vida
fostes, Senhora, nascida
isenta da culpa atroz:
mas se Deus (sabemos nós)
que pode tudo, o que quer,
e vos chegou a eleger
para Mãe sua tão alta,
impureza, mancha, ou falta
nunca em vós podia haver.
Louvem-vos os serafins,
que nessa Glória vos vêem,
e todo o mundo também
por todos os fins dos fins:
Potestades, querubins,
e enfim toda a criatura,
que em louvar-vos mais se apura,
confessem, como é razão,
que foi vossa conceição
sacra, rara, limpa, e pura.
0 Céu para coroar-vos
estrelas vos oferece,
o sol de luzes vos tece
a gala, com que trajar-vos:
a lua para calçar-vos
dedica o seu arrebol,
e consagra o seu farol,
porque veja o mundo todo,
que brilham mais deste modo
Céu. estrelas, lua, e sol.
A Rainha celestial,
venceu o seu contrário,
nosso pobre cabedal
hoje do Santo Rosário
lhe faz um arco triunfal.
O arco é de paz, e guerra,
com que sempre há de triunfar,
e tal virtude em si encerra,
que por ele hei de chegar
ao alto céu desde a terra.
Este é o arco dos céus,
que sobre as nuvens se vê,
dado para nós por Deus,
por cujo meio com fé
teremos grandes troféus.
Porque o rosário rezado
quando a alma em graça está,
é sinal, que Deus tem dado,
de que não me afogará
no dilúvio do pecado.
Este é o arco triunfal,
por onde a alma gloriosa
livre do corpo mortal
vai aos céus a ser esposa
do Príncipe celestial.
Tem o homem seu contrário
dentro em sua mesma terra,
que lhe vence de Ordinário,
e a Virgem por esta guerra
dá-lhes as contas do Rosário.
Esta é boa artilharia
para o justo, e pecador,
tirai a alma em pontaria
co fogo do vosso amor,
e co'as balas de Maria.
Toda alma, que fizer conta
de si, e sua salvação,
ouça, o que a Virgem lhe aponta:
suba, que em sua oração
será degrau cada conta.
Temor de um dano, de uma oferta indício
Pronta em divina Origem desatado,
Que tendo por horrível ao pecado
Sois a Deus agradável sacrifício.
Esperança da fé, terror do vício,
Enigma em dois assuntos decifrado,
Que pareceis castigo ameaçado
E sois executado benefício.
Duas cousas qualquer delas possível
Tendes, ó pranto, para ser forçoso,
e envolveis o prodígio para crível.
Tendo um motivo ingrato, outro piedoso,
Um na minha dureza aborrecível,
Outro no vosso amparo generoso.
Ó magno serafim, que a Deus voaste
Com asas de humildade, e paciência,
E absorto já nessa divina essência
Logras o eterno bem, a que aspiraste:
Pois o caminho aberto nos deixaste,
Para alcançar de Deus também clemência
Na ordem singular de penitência
Destes Filhos Terceiros, que criaste.
A Filhos, como Pai, olha queridos,
E intercede por nós, Francisco Santo,
Para que te sigamos, e imitemos.
E assim desse teu hábito vestidos
Na terra blasonemos de bem tanto,
E depois para o Céu juntos voemos.
Quando o livrinho perdestes
lá na mata do botão,
Antônio, grande aflição
dentro em vossa alma tivestes:
e se da dor, que vencestes
levastes vitória, e palma,
bem se colhe, que em tal calma
tal dor, e tal agonia
só aliviar-vos podia
Deus, que é vosso amigo d'alma.
Fez-vos Deus nessa ocasião
visita bem lisonjeira,
e por não puxar cadeira,
se sentou na vossa mão:
foi larga a conversação,
que o assunto foi de amor,
e porque um Frade menor,
(sendo menor que o Menino)
era de tal palma digno,
Na palma se vos vem pôr.
Convosco o Menino então
um jogo, Antônio, jogou:
ele a palma vos ganhou,
mas vós ganhastes por mão:
não jogou entonces não
com o seu Servo o Senhor
para mostrar, que o favor
nasceu da ociosidade,
senão por mais majestade
Para mostrar, que de amor.
Mostrou, que em quererdes bem
a um Deus, a quem imitastes,
não só premissas pagastes,
mas os dízimos também:
e por deixar em refém
deste amor a mais pura alma,
pois todas deixais em calma,
cantam os coros celestes,
que porque a palma a Deus destes
Só vos levastes a palma.
Qual dos dois terá mor gosto,
Antônio em braços com Cristo,
ou Cristo em seus braços posto?
Gosta Cristo de mostrar
que é de Antônio amante fino,
por isso se faz menino,
para em seus braços estar:
mas quem poderá falar,
quando está de rosto a rosto
Cristo com Antônio posto,
Antônio com Cristo em braços
em tão amorosos laços
Qual dos dois terá mor gosto?
Mas sendo Cristo o que vem
para em seus braços se ver,
com razão se há de dizer,
que Cristo mor gosto tem:
mas se ainda houver alguém,
que duvide assim ser isto,
em seus braços bem se há visto
Cristo, porque quis mostrar,
que somente pode estar
Antônio em braços com Cristo.
Foi tão raro, e peregrino
este Santo Lusitano,
que mereceu, sendo humano,
adorações de divino:
finalmente foi tão digno
de excelências, que em seu rosto
realça de Cristo o gosto:
pois onde Cristo estiver,
logo Antônio se há de ver,
Ou Cristo em seus braços posto.
Entrou um bêbado um dia
pelo templo sacrossanto
do nosso Português Santo,
e para o Santo investia:
a gente, que ali assistia,
cuidando, tinha o demônio,
lhe acudiu a tempo idôneo,
gritando-lhe todos, tá,
tem mão, olha, que acolá,
Bêbado, está Santo Antônio.
Na conceição o sangue esclarecido,
No nascimento a graça, consumada,
Na vida a perfeição mais regulada,
E na morte o triunfo mais devido.
O sangue mal na Europa competido,
A graça nas ações sempre admirada,
A profissão no breve confirmada,
O triunfo no eterno merecido.
Tudo se vincula ao ser profundo
De Estanislau, que a glória do seu norte
Foi ser portento ao céu, prodígio ao mundo.
Por isso teve a fama de tal sorte,
Que o fazem nela unidos sem segundo
Conceição, Nascimento, Vida, e Morte.
Soberano Rei da Glória,
que nesse doce sustento
sendo todo entendimento
quisestes ficar memória.
Numa cruz vos exaltastes,
meu Deus, para padecer,
e nas ânsias de morrer
ao Eterno Pai clamastes:
sangue com água brotastes
do lado para memória,
e como consta da História,
quisestes morrer constante
por serdes tão fino amante,
Soberano Rei da Glória.
Se na glória, em que reinais,
amante vos concedeis
bem mostrais, no que fazeis,
que extremosamente amais:
mas se em pão vos disfarçais,
dando-vos por alimento,
pergunta o entendimento,
onde assistis com mais luz?
mas direis, doce Jesus
Que nesse doce sustento.
Sabendo enfim, que morríeis,
amante vos entregastes,
e no Horto, quando orastes
ânsias de morte sentíeis:
já, divino Amor, sabíeis,
da vossa morte o tormento,
e já desde o nascimento
todo o saber comprendestes,
porque, Senhor, já nascestes
Sendo todo entendimento.
Vivas lembranças deixastes
da vossa morte, Senhor,
e para maior amor
mesmo em lembrança ficastes:
numa ceia apresentastes
vosso corpo em tanta glória,
que para contar a história
da vossa morte, e tormento,
no divino Sacramento
Quisestes ficar memória.
Sendo Sol, que dominais
dos céus a máquina fera,
em tão limitada esfera,
como esse Sol ostentais?
creio, que a entender nos dais,
meu Redentor extremado,
que em lugar tão limitado
só o amor caber se atreve
como num círculo breve
Sol, que estando abreviado
Bem nesse lugar tão breve
vemos com tanto arrebol
abrasar-se tanto sol
nos epiciclos da neve:
muito a vosso amor se deve,
pois como Sol no nascente
pelo cristal transparente
divinamente ilustrais,
e todo vos abrasais
Nesse cândido Oriente.
Todo neve na brancura,
todo sol, no que brilhais,
como sol nos abrasais,
sendo neve na frescura:
mas tanto o divino apura
no cristal o transparente,
que ali fazendo patente
o quanto estais empenhado,
de fino amor abrasado
Abonais o mais ardente.
Nascem desempenhos tais
desses divinos primores,
que em requintados amores
todo a nós nos dedicais:
mas bem que vos empenhais,
vejo-vos mui bem trajado
nessa gala de encarnado,
que tomastes de Maria,
agora por bizarria
Ostentando o mais nevado.
Depois de crucificado
vos admirei, bom Senhor,
fino retrato do amor,
quando vos vi retratado:
então de um iluminado
sanguinosamente escuro,
se bem que estou mui seguro
das finezas do Calvário,
vos contemplei no sudário
Emblema de amor mais puro
E suposto o pensamento
se pasma do escuro enigma,
mais o mistério sublima
vendo-vos no Sacramento:
ali meu entendimento
conhecendo-vos tão claro,
melhor esforça o reparo
de que estais tão luzido,
quando melhor comprendido
Enigma de amor mais raro
Que no Sacramento estais
todo, e toda a divindade,
conheço com realidade,
suposto que o disfarçais:
para que vos ocultais
nesse mistério tão raro,
se a maravilha reparo,
penetrando-vos atento,
mais claroao entendimento,
Que sendo à vista tão claro?
Que se de neve coberto
fica o divino admirado,
bem se pode um disfarçado
conhecer melhor ao perto:
porém vós andais tão certo,
e tanto em recatos puro,
que se ver-vos me asseguro
nesse disfarce, em que andais,
inda que patente estais,
Sois também à vista escuro.
Todo amante, e todo digno
vos veio estar neste trono,
prestando ao amor de abono
quilates do ardor mais fino:
porém, Senhor, se contino
abrasado estais de amores,
entre tantos resplandores,
que por fineza ocultais,
vede, que nos abrasais
Agora, que entre candores.
De amor tão qualificado
digo, ó cordeiro bendito,
que vos aclame infinito
tanto espírito elevado:
que eu vos não louvo ajustado,
bem que supra afetos d'alma,
pois meu amor nesta calma,
sendo do vosso vencido,
reconheço, que subido
A vosso amor dais a palma.
Mas por amor tão subido
ouvi, como tenro amante,
este pecador constante,
que se chega arrependido:
seja de vós admitido
o pranto, em que se desalma
para crédito da palma,
que dais a vossos amores,
dos humildes pecadores
Escutai, Senhor, uma alma.
Ouvi desta alma humilhada,
Senhor, um fraco conceito,
e é, que entreis em meu peito
a fazer vossa morada:
achareis de boa entrada
tormentos, ânsias, e dores,
que deram os malfeitores
em toda a vossa paixão,
e vereis um coração,
Que por vós morre de amores.
Já sei, meu Senhor, que vivo
depois que em meu peito entrastes,
porque logo me deixastes
ardendo em um fogo ativo:
agora tenho motivo
para melhorar conceitos,
quando dos vossos respeitos
palpita meu peito o ardor,
e para ver vosso amor
Escutai vossos efeitos
Mas se o infinito ardor
pode atalhar, quanto diga,
sempre o meu termo periga
nas eloqüências de amor:
cale-se a língua melhor
em tantas dificuldades,
vos intenta ponderar,
mil erros lhe haveis de achar
Em grosseiras humildades.
Quem, Senhor, na confissão
andara tão acertado,
que do mais leve pecado
soubera ter contrição:
que de todo o coração
com assaz de realidades
sentira essas propriedades
confessando, o que mandais,
pois sei, que não quereis mais
Que para vós as verdades.
Bem advertido, Senhor,
estou, que sois lince vós,
e que penetrais em nós
os movimentos de amor:
tanto conheceis a dor,
que temos em nossos peitos,
que sendo de amor efeitos
os verdadeiros sinais,
convosco verdades tais
Têm mais valor, que os conceitos.
Oh quem tivera empregados
em vós, meu Amor divino,
cuidados, que de contino
se multiplicam cuidados:
fazei, que a vós levantados
se acreditem de luzidos
pensamentos, que abatidos
seguem do mundo os enganos,
e que deixando os humanos,
Exercite os mais subidos.
Quem conquistando, Senhor,
vosso amor, perdera a vida,
porque a dá por bem perdida
quem a perde em vosso amor!
Se eu, terníssimo Pastor,
acudira a vossos brados,
então sim, que os meus cuidados
coroara de alta dita,
já que fino se acredita
Quem busca humanos agrados.
Porque aqueles, que vos amam,
e em tais delícias se enlevam,
o prêmio consigo levam,
e filhos vossos se aclamam:
que como no amor se inflamam,
os que são vossos amados,
sendo já purificados
por filhos do vosso amor,
quem há de negar, Senhor,
Que sempre são levantados?
Quem de contino a bradar
por vós no maior rigor
nas enchentes desse amor
não acha de graça um mar?
quero com ânsias mostrar
a dor, a pena, os gemidos;
pois sendo a vós repetidos,
serão de vós bem lembrados,
que são bem-aventurados
Os que são de vós ouvidos.
trazer-vos tão dentro d'alma,
que abrasado em viva calma
do vosso amor falecera!
Ai Senhor, quem padecera
por vós, e só vos amara!
ai quem por vós desprezara
tanta enganosa ruína,
e vossa graça divina
Ai Senhor, quem alcançara.
Ai quem fora tão ditoso,
que soubera bem amar-vos,
e na ação de conquistar-vos
rejeitara o mais custoso!
quem, Senhor, tão sequioso
todo amante, e todo fino
elevara o seu destino
a beber da fonte clara,
que desta sorte lograra,
Um bem tão alto, e divino.
Quem disposto a padecer
por vós buscara os retiros.
onde com ais, e suspiros
soubera por vós morrer!
quem sabendo comprender
desse vosso amor o fino
se elevara peregrino
por um amor de tal porte,
que me dera a melhor sorte,
Que de meus ais o contino!
Só então fora feliz,
e fora então venturoso,
se conhecera ditoso,
que meus suspiros ouvis:
se minha dor admitis,
ditoso então me chamara;
oh se de uma dor tão rara
ouvísseis um só gernido,
e se um ai enternecido
A tais ouvidos chegara!
Porém justamente espera
cada qual chegar-vos logo,
porque a suspiros de fogo
nunca nos negais esfera.
Esta alma, meu Redentor,
que vos busca peregrina,
por vossa grasa divina
suspira em contlnua dor:
diz, e protesta, Senhor,
que se mil vidas tivera,
todas por vós as perdera,
e não só não se embaraça
no pedir da vossa graça,
Porém justamente espera.
Espera, e não estranheis
o confiar de um preverso,
que pertende já converso,
que a todos, Senhor, salveis:
peço-vos, que nos livreis
desse dilúvio de fogo;
ouvi por todos meu rogo,
inda que vos não compete,
que todos juntos, promete
Cada qual chegar-vos logo.
Porque se abrasado o peito
vosso amor está chamando,
não é muito, que chorando
seja cada qual desfeito:
bem posso formar conceito
desta causa, Senhor, logo,
pois vós ouvistes meu rogo,
e atendeis à minha mágoa,
porque vós venceis com água
Porque a suspiros de fogo.
Arde meu peito em calor,
se bem estou anelando,
quando me estou abrasando
em tanto fogo de amor:
se se realça o ardor,
que um peito amante verbera
quem o favor não espera
de tanto carinho ao rogo,
se a chamas de ativo fogo
Nunca vos negais esfera?
Ai meu Deus, que já não sei
vendo, que vos ausentais,
dizer, como me deixais
neste abismo, em que fiquei
ai Senhor! e que farei
para alcançar venturoso,
o que por menos ditoso
perdi, ou talvez de indigno:
ai meu Redentor divino!
Ai meu bem! ai meu Esposo
Ai Senhor, que me deixais
nesta dura soledade
morto na realidade,
bem que vivo me vejais:
mistérios de amor guardais,
porque estais inda encerrado
em dar-me a vida empenhado,
e do vosso amor a palma:
ai amante da minha alma!
Ai Senhor Sacramentado!
Se nos disfarces metido
roubar as almas quereis,
que importa, vos disfarceis,
ficando à vista o vestido?
mas de que (já conhecido
pelo vestido encarnado)
vos importa o rebuçado:
pois conhecido o poder,
tanta luz escurecer
Que mal pode o disfarçado.
Diáfano, e transparente
esse cristal puro, e fino
com resguardar o divino
declara o onipotente:
tanto nele permanente
está sempre o majestoso,
que então brilha mais lustroso
pelas veias do cristal,
e oculta instrumento tal
Ocultar o poderoso.
Cuidei que não permitisse
vosso poder sublimado,
que estando assim disfarçado,
tão claramente vos visse:
mas porque bem arguísse,
qual seja o vosso poder,
breve cheguei a colher
pelo cristal transparente,
o que em vós como acidente
Ai que bem se deixa ver!
Bendito seja, e louvado,
pelo que tem de amoroso,
um Deus, que é tão poderoso,
um Senhor tão sublimado:
deixar de ser exaltado
poder tão grande, não temo,
pois se vê de extremo a extremo,
que a grandeza, que se sabe
cabendo em vós, toda cabe
Nessa Hóstia, Rei Supremo.
Exaltada a Majestade
seja de um Rei tão divino,
e louvada de contino
tão suprema divindade:
porque, Senhor, na verdade
dessas profundezas temo,
quando a razão, Rei Supremo,
responde à minha rudeza
(sobre o subir da grandeza)
Que quanto é maior o extremo.
E colhida a admiração
no Sacramento está visto
quando Pão, ser todo Cristo
quando Cristo, todo Pão
unido na Encarnação
ao divino e humano ser
e sendo imortal morrer
um Deus, que tanto se humilha
sendo grande a maravilha
Tanto é maior o poder
Se no pão vos disfarçais,
por cobrir vossa grandeza,
já do pão na natureza
toda a grandeza expressais.
melhor no pão publicais
o poder a toda a terra,
pasme o mar, e trema a serra,
e reconheça o percito,
que o Pão é Deus infinito;
Porque quem em pão se encerra?
Neste Pão sacramentado,
que dos Anjos é sustento,
têm as almas grande alento
por meio de um só bocado:
perdoa a todo o pecado
por mais torpe, e desumano,
e eu me confesso tirano,
porque me não arrependo
se estou no Pão conhecendo
Ser divino, e ser humano.
Na Ceia se apresentou
o Senhor com realidade,
neste Pão da divindade,
que a todos sacramentou:
se a cada um transformou,
passando a divino o humano
que muito, que o desumano
pecador já convertido
seja aos Anjos preferido?
Que muito, que soberano?
Quem assim o permitiu
com tão alta onipotência,
que o pó da suma indigência
sobre as esferas subiu:
quem este pó preferiu
à luz, que luzes desterra,
que muito a contrária guerra
pacifique aos elementos?
que muito, que a seus intentos
Fabricasse o Céu, e a terra?
De um barro frágil, e vil,
Senhor, o homem formastes,
cuja obra exagerastes
por engenhosa, e sutil:
graças vos dou mil a mil,
pois em conhecido aumento
tem meu ser o fundamento
na razão, em que se estriba,
se lhe infundis alma viva,
Que muito, que vivo alento.
Depois de feita a escultura,
e por um Deus acabada,
obra não houve extremada
como a humana criatura:
ali para mais ventura
(sendo o barro assaz terrível)
alma lhe deu infalível,
e me admira ver, que aquela
alma, que ali fez tão bela
Desse a um barro insensível.
Possível lhe foi fazer
este Arquiteto divino
participando do Trino
aquela alma a seu prazer:
para mais se engrandecer
engrandeceu o insensível,
desatando-se passível
daquele sagrado nó,
que apertava três, e só
Um Deus, que lhe foi possível.
Foi grandeza do poder
aquele querer mostrar
sendo divino encarnar
para humano vir nascer:
e foi grandeza o morrer
um Deus, que é todo portento;
e se bem no Sacramento
se adverte grande fineza,
de seu poder foi grandeza
Dar-se a si mesmo em sustento.
Já requintada a fineza
Nesse Pão sacramentado
temos, Senhor, ponderado
vossa inaudita grandeza:
mas o que apura a pureza
da vossa magnificência
é, quererdes, que uma ausência
não padeça, quem deixais,
pois que partindo ficais,
Ó divina Onipotência.
Permiti por vossa cruz,
por vossa morte, e paixão,
que entrem no meu coração
os raios da vossa luz:
clementíssimo Jesus
sol de imensa claridade,
sem vós a mesma verdade,
com que vos amo, periga;
guiai-me, porque vos siga,
Ó divina Majestade.
Na verdade esclarecida
do vosso trono celeste
toda a potência terrestre
de comprender-vos duvida:
porém na forma rendida
de um cordeiro a Majestade
aos olhos da humanidade
melhor a potência informa,
sendo cordeiro na forma,
Que sendo Deus na verdade.
Cá neste trono de neve,
onde humanado vos vejo,
melhor aspira o desejo,
melhor a vista se atreve:
aqui sabe, o que vos deve
(vencendo a maior ciência)
amor, cuja alta potência
adverte nesse distrito,
que sendo Deus infinito,
Sois também Pão na aparência.
À mesa do Sacramento
cheguei, e vendo a grandeza
admirei tanta beleza,
dei graças de tal portento:
com santo conhecimento
só então folguci ter vida,
pois vendo-a convosco unida
na flama de tanta calma
disse (recebendo-a n'alma)
Ó Soberana Comida!
Naquela mesa admirando
anda a graça tanto a rodo,
que dando-se a todos, todo
vos estais comunicando:
e de tal modo exaltando
vosso ser onipotente,
que quando estais tão patente
nessa nevada pastilha,
vos louvam por maravilha,
Ó maravilha excelente!
Como num excelso trono
realmente verdadeiro,
na Hóstia estais todo inteiro,
Senhor, por maior abono:
se por ser das almas dono
vos empenhais tão patente,
hei de apelidar contente
com a voz ao céu subida,
que esse Pão me seja vida,
Pois em vós é acidente.
Neste excesso do poder
só podia o majestoso
obrar ali de amoroso,
o que chegou a emprender:
eu, que venho a merecer
lograr a Deus por comida,
tenho por cousa sabida
neste excesso do Senhor
serem delíquios do amor,
O que em mim eterna vida.
Três vezes grande, Senhor,
o mesmo céu nos publica,
e este louvor multiplica
com repetido clamor:
não cessa o santo louvor,
porque não cessando o grito
de tanto elevado esprito,
isso mesmo é propriedade,
que defende a majestade
O poder sempre infinito.
Quem chegar a compreender
essa grande imensidade,
há de pasmar na verdade
reconhecido o poder:
porém eu hei de dizer,
que nesse globo in extenso
vejo aquele sol imenso,
que tantos pasmos conduz,
vejo aquela imensa luz,
que o Céu admira suspenso.
Tal a meus olhos exposto
vos vejo no Sacramento.
que supre esse entendimento
os delírios do meu gosto:
porém se encobris o rosto,
já desanimo suspenso,
e vós sabeis por extenso
da águia, que se vos aplica,
qual se desmaia, e qual fica,
Pois se encerra um Deus imenso.
Quando em partes dividido
vos creio nas partes todo,
e vos vejo em raro modo
todo nas partes unido:
e de empenho tão subido
a inteligência repito,
pois me informa o infinito,
que estar pode na verdade
do Céu toda a majestade
Em tão pequeno distrito.
Sol de justiça divino
sois, Amor onipotente,
porque estais continuamente
no luzimento mais fino:
porém, Senhor, se o contino
resplandecer se vos deve,
fazendo um reparo breve
desse sol no luzimento,
sois sol, mas no Sacramento
Com razão divina neve.
Só em vós, meu Redentor,
S tanta grandeza se encerra:
porque dos céus, e da terra
sois absoluto Senhor:
da terra o poder maior
um tempo em ardentes loas
humilharam três pessoas,
prostrando-se ao vosso pé
bem advertidos, de que
A vós se prostram coroas.
Mas porém se o disfarçado
não diminui o valor,
como ocupais, meu Senhor,
um lugar tão limitado?
de maior porém penhado
nos dais advertências boas;
mas convencendo as coroas,
mostrais ao peito arrogante
que esse lugar é bastante,
Pois inclue três pessoas.
A maravilha maior,
que causa o vosso portento,
é, que estais no Sacramento
todo em partes por amor:
porém se o maior valor
ao mais humilde se deve,
e so quem menos se atreve,
esse voz goza, e vos prende,
com razão vos compreende
A partícula mais breve.
Agora, Senhor, espero,
que consintais, no que digo;
quereis vós ficar comigo,
que eu partir convosco quero?
que o permitais considero
fazendo-me a mim ditoso,
pois vos prezais de amoroso:
já quero as entranhas dar-vos,
e vede se assim tratar-vos,
Ora quereis, doce Esposo.
Já, Senhor, seguir-vos posso,
pois vosso amor me rendeu,
ser todo vosso, e não meu,
nada meu, e todo vosso:
permiti como Pai nosso,
não andemos divididos,
mas antes que muito unidos
estejamos entre nós,
porque eu já quero, o que vós
Quereis, luz dos meus sentidos.
Façamos, Senhor, um laço
entre nós tão apertado,
que de vós mais apartado
não possa mudar um passo:
porque com este embaraço
andemos tão prevenidos,
que não ousem meus sentidos
sair de vossos cuidados,
e de tal sorte ajustados,
Que fiquemos sempre unidos.
Seja pois este querer-nos
de tal sorte requintado,
que fique todo admirado,
quem assim chegar a ver-nos:
onde possa conhecer-nos
o mundo de curioso
me inveje pelo ditoso,
vendo, que comigo amante
vos ajustais mui constante
em um vínculo amoroso
Não é minha voz ousada
a pedir-vos mas prossigo,
que quoirais estar comigo,
inda que, Senhor, sou nada:
e se minha alma ilustrada
quereis, que fique em verdade,
pois que sem dificuldade
me podeis engrandecer,
ao auge do vosso ser
Levantai minha humildade.
Tenho, Senhor, no sentido
para duvidar de ousado,
que mal pode o desairado
pertender o esclarecido:
de minhas culpas tolhido
na abominável torpeza,
vendo em vós tanta beleza,
mal posso, Senhor, chegar-vos,
e para poder lograr-vos
Humilhai vossa grandeza.
Fazei por mim, meu Senhor,
tudo quanto possa ser,
e pois tendes tal poder
me podeis dar vosso amor:
uni o vosso valor
com a minha singeleza,
e fique a vossa grandeza
unida, Senhor, comigo;
fazei isto, que vos digo,
Porque em vós seja fineza.
Vosso corpo por inteiro
introduzi no meu peito,
porque assim ficarei feito
um sacrário verdadeiro:
ostentai, manso cordeiro,
com a minha indignidade
vossa grande Majestade,
suposto que o não mereça,
porque traça em vós pareça
O que em mim felicidade.
Mostrai, Senhor, a grandeza
de tão imenso poder,
unindo este baixo ser
a tão suprema beleza:
uni, Senhor, com firmeza
a este barro nada fino
o vosso ser tão divino,
ligai-vos comigo amante,
convosco em laço constante
Uni meu sujeito indigno.
Fazei, Senhor, com que fique
desta união tal memória,
que tão peregrina história
a vosso amor se dedique:
justo será, que publique
em seu pergaminho lhano
vossa glória o peito humano,
e que o mundo suspendido
vejo um pecador unido
A esse objeto soberano.
Como da vossa grandeza
não há mais onde subir,
será realce o vestir as túnicas da vileza:
muito o vosso amor se preza
de abater o soberano;
serei eu o Publicano
indigno do vosso amor:
vinde a meu peito, Senhor,
Fareis do divino humano.
Fareis humanado em mim
créditos à divindade,
porque o vosso incêndio há de
transformar-me em serafim:
fareis deste barro enfim
frágua de incêndio mais digno,
fareis do grosseiro o fino,
que isso é glória do saber
e por timbre do poder
Fareis do humano divino.
Ai quem bem considerara
na glória só de vos ver,
que abrasado em seu querer
salamandra vos buscara!
ai quem tanto vos amara,
que tudo por vós perdera!
ai quem por vós padecera!
ai quem já pudera ver-vos!
ai quem soubera queter-vos!
Ai quem tal bem merecera!
Quem bem convosco se unira,
meu Senhor, e por tal arte,
que juntos em qualquer parte
um, e outro amor se vira!
quem tanto bem conseguira,
e quem tanto vos amara,
que um instante não deixara
de assistir-vos cuidadoso!
e quem fora tão ditoso
Que de vós não se apartara!
Ai quem soubera adorar-vos
de tal sorte, meu Senhor,
que deixara o próprio amor
nas pertendências de amar-vos!
quem, a alma querendo dar-vos,
o coração não deixara,
que desse modo lograra
a glória, Senhor, de ver-vos!
ai quem soubera querer-vos!
Ai quem melhor vos amara!
Quem morto se imaginara
nas glórias da humana vida!
vida em bonanças perdida,
vida, que a morte prepara:
ai quem tão só vos buscara,
que para o mundo morrera!
quem por ganhar-vos perdera
todas as glórias do mundo!
ai quem morrera ao imundo!
Ai quem só em vós vivera!
Quem fora tão fino amante,
que mostrara a seu objeto
bem nas entranhas do afeto
prendas do amor palpitante:
quem nessa pira flamante
purificara o temer-vos!
ai quem temera ofender-vos
só por amor de agradar-vos!
ai quem soubera pagar-vos!
Ai quem soubera querer-vos!
Quem submergido na pena
prantos a mares vertera,
que outro Pedro parecera,
ou qual outra Madalena!
mas se contudo é pequena
para em justiça obrigar-vos
ai quem no rumo de amar-vos,
que de outro amor me desterra,
fora cos olhos na terra!
Ai quem soubera agradar-vos!
Se a vossa divina mão,
amantíssimo Pai nosso,
(como a de Tomé o vosso)
palpara o meu coração:
ai que delícias então
sentira a razão de amar-vos!
ai quem pudera mostrar-vos
o fino do meu amor!
e as circunstâncias da dor
Ai quem soubera explicar-vos!
Entrai, Senhor, no meu peito,
onde ao ver-vos retratado
causa sereis, meu amado,
inseparável do efeito:
entrai, que sois bem aceito,
pelo que sei já querer-vos,
e se dentro chego a ter-vos
desta minha indignidade
haveis de ver na verdade,
Quanto anela o bem de ver-vos.
Bem sei, meu amado objeto,
fazendo um breve conceito,
que penetrais do meu peito
o mais oculto, e secreto:
bem vê meu constante afeto
da vossa potência o fino,
porque neste vidro indigno
raiando desse Oriente,
se sois sol, não só persente,
Mas se sois lince divino.
Deixo à parte haver gerado
vosso justo entendimento
os astros, o firmamento,
e todo o demais criado:
e fico como elevado
no poder, a que me rendo,
admirando: porém vendo
vossa grandeza, e poder,
quando chego a comprender,
Que o mais oculto estais vendo.
Quando isento o pensamento
de toda a minha maldade,
vós lá dessa imensidade
vedes também meu intento:
se um oculto movimento
patente, e claro estais vendo,
fico por fé conhecendo
desse poder penetrante,
que não obsta estar distante,
Se estais, luz minha, sabendo.
E posto encubrais o rosto
no acidental Sacramento,
mui bem vedes meu intento,
pois a tudo estais exposto:
muda a língua, e fixo o gosto
em vós, meu lince divino,
já reconheço, que o fino
deste arnor penetrareis,
porque, Senhor, bem sabeis
O mesmo, que eu imagino.
quando todo a mim vos dais,
porque vós em mim ficais,
eu também em vós me fico:
vosso querer justifico,
tendo em vós assegurados
afetos tão requintados;
e se amor é compaixão,
a culpa, meu coração,
que importa? que? meus cuidados.
Deus amado, e Deus amante,
oh quem trouxera ajustados
seus amorosos cuidados,
que sem vós nem um instante!
mas pois que o mundo inconstante
perturba amantes sentidos,
valham ardentes gemidos
de afetos interiores
pelo instante, em que os amores
não sejam bem referidos.
Fazei, que eu logre a vitória
de uns atrevidos cuidados,
que quando quero explicados
perturbam minha memória:
oh se me alcançara a glória
de ter estes atrevidos
na confissão oprimidos,
onde não posso explicar,
se os conduzo a castigar,
Se para serem sabidos.
Sempre nesta explicação
de meus cuidados secretos
quero mostrar uns afetos
de anelante coração:
vaidosa demonstração
de amores mal informados
que repetir meus cuidados
é nescedade de amor,
quando convosco, Senhor,
Não dependem de explicados.
Nada, meu Senhor, vos digo,
nada quisera dizer-vos,
porque os atos de querer-vos,
têm pelas vozes perigo:
tanto, Senhor, que comigo
hei de acabar de ser mudo,
e de tal maneira rudo,
que quando me perguntares
responderei (se escutares)
Assim, pois vós sabeis tudo.
Porém calar-me não quero,
quero convosco explicar-me,
vede, se quereis levar-me,
onde louvar-vos espero:
porque se bem considero
distante o golpe secreto,
levando-me vós o afeto,
de que servem meus sentidos
prostrados, e desunidos,
Ó diviníssimo objeto
Convosco meu ser se abraça,
e não pareçam delírios
procurar cândidos lírios
da vossa divina graça:
pois neles a alma se enlaça,
e convosco, amado objeto,
diz, que quer ir em secreto
purificar seu valor:
aqui do vosso favor
Valha-se só meu afeto.
Finalmente os meus cuidados
ordenai, Amor, de sorte,
que aos círculos de seu norte
correspondam empenhados:
meus sentidos desvelados
com excesso sobreagudo
vos venerem mais que tudo
em finíssimos extremos:
porém, meu Senhor, mudemos
De estilo, que fala mudo. (Gregório de Matos)
Soneto A cada canto um grande
conselheiro, Que nos quer governar
cabana, e vinha, Não sabem governar sua
cozinha, E podem governar o mundo
inteiro. Em cada porta um freqüentado
olheiro, Que a vida do vizinho, e
da vizinha Pesquisa, escuta,
espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e
ao Terreiro. Muitos Mulatos
desavergonhados, Trazidos pelos pés os
homens nobres, Posta nas palmas toda a
picardia. Estupendas usuras nos
mercados, Todos, os que não
furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da
Bahia. Descreve a vida escolástica Mancebo sem dinheiro, bom
barrete, Medíocre o vestido, bom
sapato, Meias velhas, calção de
esfola-gato, Cabelo penteado, bom
topete. Presumir de dançar,
cantar falsete, Jogo de fidalguia, bom
barato, Tirar falsídia ao Moço
do seu trato, Furtar a carne à ama,
que promete. A putinha aldeã achada
em feira, Eterno murmurar de
alheias famas, Soneto infame, sátira
elegante. Cartinhas de trocado para
a Freira, Comer boi, ser Quixote
com as Damas, Pouco estudo, isto é ser
estudante A Cristo, estando o poeta agonizante
Soneto
Meu Deus, que estais
pendente em um madeiro,
Em cuja lei protesto de
viver,
Em cuja santa lei hei de
morrer
Animoso, constante,
firme, e inteiro.
Neste lance, por ser o
derradeiro,
Pois vejo a minha vida
anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de
se ver
A brandura de um Pai
manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor,
e meu delito,
Porém pode ter fim todo
o pecar,
E não o vosso amor, que
é infinito.
Esta razão me obriga a
confiar,
Que por mais que pequei,
neste conflito
Espero em vosso amor de
me salvar.
Ao glorioso português Santo Antônio
MOTE : Bêbado está
Santo Antônio
Glosa
Entrou um bêbado um dia
pelo templo sacrossanto
do nosso Português
Santo,
e para o Santo investia :
a gente, que ali
assistia,
cuidando, tinha o demônio,
lhe acudiu a tempo idôneo,
gritando-lhe todos, tá,
tem mão, olha, que acolá,
Bêbado, está Santo Antônio.
Ao Conde de Ericeyra D. Luiz de Menezes
pedindo louvores ao poeta, não lhe achando ele préstimo algum.
Soneto
Um soneto começo em
vosso gabo;
Contemos esta regra por
primeira,
Já lá vão duas, e esta
é a terceira,
Já este quartetinho está
no cabo.
Na quinta torce agora a
porca o rabo:
A sexta vá também desta
maneira,
na sétima entro já com
grã canseira,
E saio dos quartetos
muito brabo.
Agora nos tercetos que
direi?
Direi, que vós, Senhor,
a mim me honrais,
Gabando-se a vós, e eu
fico um Rei.
Nesta vida um soneto já
ditei,
Se desta agora escapo,
nunca mais;
Louvado seja Deus, que o
acabei.
Na despedida do mau governo que fez o
governador Antão de Souza Meneses
Soneto
Senhor Antão de Souza de
Meneses,
Quem sobe a alto lugar,
que não merece,
Homem sobe, asno vai,
burro parece,
Que o subir é desgraça
muitas vezes.
A fortunilha autora de
entremezes
Transpõe em burro o Herói,
que indigno cresce:
Desanda a roda, e logo o
homem desce,
Que é discreta a fortuna
em seus reveses.
Homem (sei eu) que foi
Vossenhoria,
Quando o pisava da
fortuna a Roda,
Burro foi ao subir tão
alto clima.
Pois vá descendo do
alto, onde jazia,
Verá, quanto melhor se
lhe acomoda
Ser home em baixo, do que
burro em cima.
Ao governador Antônio Luiz Ferreira de
Noronha
Sal, cal, e alho
caiam no teu maldito
caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e
Gomorra
em cinza te reduzam essa
porra. Amém.
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o
Capitão da Guarda.
Aos capitulares do seu tempo
Décima
A nossa Sé da Bahia,
com ser um mapa de
festas,
é um presépio de
bestas,
se não for estrebaria :
várias bestas cada dia
vemos, que o sino
congrega,
Caveira mula galega,
o Deão burrinha parda,
Pereira besta de albarda,
tudo para a Sé se
agrega.
Na chegada do Il.mo. Sr. D. João Franco de
Oliveyra que houvera sido Bispo em Angola.
Soneto
Hoje os Matos incultos da
Bahia
Se não suavemente for,
ruidosamente
Cantem a boa vinda do
Eminente
Príncipe desta Sacra
Monarquia.
Hoje em Roma de Pedro se
lhe fia
Segunda vez a Barca, e o
Tridente,
Porque a pesca, que fez já
no Oriente,
A destinou para a do
meio-dia.
Oh! se quisera Deus, que
sendo ouvida
A Musa bronca dos
incultos Matos
Ficasse a vossa púrpura
atraída!
Oh! se como Arion, que a
doces tratos
Uma pedra atraiu
endurecida,
Atraísse eu, Senhor,
vossos sapatos!
Ao Capitão Domingos Ferreyra, fretando-lhe
a amasia certo homem chamado Surucucu
Décimas
Passou o surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luisa o cu :
Jesu nome de Jesu,
disse a Mulata assustada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da
escolta
dê uma volta, e na volta
poderá dar-me a dentada.
Apenas isto escutou,
quando a boa cobra solta
deu a volta, mas a volta
não foi, a que a namorou
:
porque o bom Adão achou
no Paraíso, ao entrar,
sem poder a Eva falar,
jurando o seu nome em vão,
pecou no segundo então,
por no sexto não pecar.
O seu Santo nome disse
em vão: mas o capitão
perguntou a Luisa então
a causa da parvoíce :
ela; porque ele ouvisse,
toda de risinhos morta,
este mandu (disse
absorta)
não repara, que se
implica
marchar eu com outra
pica,
tendo o Capitão à
porta?
Saiba, Senhor Capitão,
que se Luisa, se fornica,
antes com homem de pica,
que com homem de bastão
:
porém se este toleirão,
quiser vomitar peçonha,
livrar-me-ei dessa
erronha,
pois na sua cara vejo,
que terá muito de pejo,
mas tem mui pouca
vergonha
Prometeu vir do passeio
veio como um corrupio,
eu não vi homem tão
frio,
que tão depressa se
veio:
sobre ser frio é mui
feio;
sobre ser feio é mui
tolo:
porém se o meu portacolo
não erra, tem o magano
nos culhões muito
tutano,
na testa pouco miolo.
.
Descreve a confusão do festejo do entrudo
(o carnaval da época)
Soneto
Filhós, fatias, sonhos,
mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca, e
mais carneiro,
Os perus em poder do
Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas,
laranjadas.
Enfarinhar, por rabos,
dar risadas,
Gastar para comer muito
dinheiro,
Não ter mãos a medir o
Taverneiro,
Com réstias de cebolas
das pancadas.
Das janelas com tanhos
dar nas gentes,
A buzina tanger, quebrar
panelas,
Querer em um só dia
comer tudo.
Não perdoar arroz, nem
cuscuz quente,
Despejar pratos, e
alimpar tigelas,
Estas as festas são do
Santo Entrudo.
À sua mulher, antes de casar
Os dias se vão,
os tempos se esgotam,
para todos trotam,
só para mim não :
tanta dilação
quem há de curtir?
O tempo a não vir,
e eu por meu pesar
sempre a esperar,
o que tanto foge;
casemo-nos hoje,
que amanhã vem longe.
O tempo sagrado
vem com tal vagar,
que deve de andar
manco, ou aleijado :
eu com meu cuidado
morto por vos ver,
e o tempo a deter
a dita, que espero,
da qual eu não quero,
que ele me despoje;
casemo-nos hoje,
que amanhã vem longe.
Por uma hora mera,
que Píramo andara,
e à Fonte chegara,
onde Tisbe o espera,
nunca acontecera
colar-se de emboque
no seu mesmo estoque,
deixando uma ponta,
onde a Moça tonta
a morrer se arroje;
casemo-nos hoje,
que amanhã vem longe.
Por um hora avara,
por um breve instante,
que Leandro amante
no mar se arrojara,
nunca se afogara,
e Ero de tão alto
não dera tal salto;
porque quis o fado,
que ela, e o afogado
a praia os aloje :
casemo-nos hoje,
que amanhã vem longe.
Hoje poderei
convosco casar,
e hoje consumar,
amanhã não sei :
porque perderei
a minha saúde,
e em mim um ataúde
me podem levar
o corpo a enterrar,
porque vos enoje :
casemo-nos hoje,
que amanhã vem longe.
GM parodia famoso soneto de Camões, em razão
de uma donzela nobre e rica que vindo da Índia era cortejada pelos
"melhores da terra" mas que acabou entregando-se a Fr. Tomás.
Soneto
Sete anos a Nobreza da
Bahia
Serviu a uma Pastora
Indiana, e bela,
Porém serviu a Índia, e
não a ela,
Que à Índia só por prêmio
pretendia.
Mil dias na esperança de
um só dia
Passava contentando-se
com vê-la :
Mas Fr. Tomás usando de
cautela,
Deu-lhe o vilão,
quitou-lhe a fidalguia.
Vendo o Brasil, que por tão
sujos modos
Se lhe usurpara a sua
Dona Elvira,
Quase a golpes de um maço,
e de uma goiva :
Logo se arrependeram de
ama todos,
E qualquer mais amara, se
não fora
Para tão limpo amor tão
suja Noiva.
Gregório de Matos
PESSOAS DE BEM
A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA.
A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.
A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS.
NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.
CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.
SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.
AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.
CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.
AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.
A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER MULUM ABNER."
EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV.
AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES
AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM
TREZ PARTES. O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S.
VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR
A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA.
DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.
SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR.
A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE.
A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR.
SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES.
A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE TEVE PARA SE RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO.
AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS.
A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA LISBOA.
AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA
COUTINHO EM DIA DE REYS OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO
HUMA DAQUELLAS ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA
HUM ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA.
EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA
MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR
CRIADO.
A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR, IMPETRANDO LICENÇA PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO ALARDE.
OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA DE SOLDADO.
AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDAR-SE DE SUA HONRADASUPPLICA SOBRE A MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDICULOCHAMADO O FARIA, POR QUEM NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA".
TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA.E NO DIA, EM QUE O GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO.
A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO.
A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA.
GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE SER DELLE FAVORECIDO NA MERCÉ ORDINARIA.
CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO:
DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO GOVERNADOR SATYRIZADO.
APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ.
DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZER-SE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.
RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA.
A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO.
AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO DEPOIS.
LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO.
RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO.
CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS CONSOANTES.
AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO DE HUMA GRAVE DOENÇA.
2
Este, Senhor, que fiz leve instrumento
Para pesar o sol a qualquer hora,
Dedico a aquele Sol, a cuja aurora
Já destinam dous mundos rendimento.
Desta minha humildade, e desalento,
Que a sua quarta esfera não ignora,
subindo a oitavo céu, pertende agora
A estrela achar no vosso firmamento.
Eu, que outro sol no seu zenith pondero
Aos do Nascido Soberanos Raios,
Pesando-me eu a mim me desespero.
Mas vós, Águia Real, esses ensaios
Entre os vossos levai, pois considero,
Que nunca em tanta sombra houve desmaios.
Hoje pó, ontem Deidade soberana,
Ontem sol, hoje sombra, ó Senadores,
Lises imperiais enfim são flores,
Quem outra cousa crê, muito se engana.
Nas cinzas, que essa urna guarda ufana,
Vejo, que os aromáticos licores
são de seu mortal ser descobridores,
Porque, o que a arte esconde, o juízo alhana.
A Real Capitânia submergida!
Olhos à gávea, ó tu Naveta ousada,
Que ao mar te engolfas de ambição vencida:
Pois em terra a Real está encalhada,
Alerta, altos Baixéis, porque anda a vida
Da mortal tempestade ameaçada.
Nasces, Infanta bela, e com ventura
Tão desigual a toda a gentileza,
Que vencendo o poder da natureza,
Venturosa fizeste à formosura.
Com tal estrela sobe a tal altura
A formosura posta em tanta alteza,
Que por nasceres pasmo da beleza,
Da pensão de formosa estás segura.
Nasceste Filha enfim da bela Aurora
Com graça singular, ventura clara,
Com estrela nasceste, ó feliz hora!
Nascer bela, e feliz é cousa rara:
Mas em ti Portugal venera agora
Uma estrela na dita, um sol na cara.
Bem disse eu logo, que éreis venturosa
Quando nascestes, com nascer tão bela,
E me lembra dizer já com cautela,
Cousa rara é ser bela, e ser ditosa.
O nascer com estrela, e ser formosa
Raro prodígio é, que mais se anela;
Mas ser na terra flor, nos céus estrela,
Só em vós foi ventura prodigiosa.
Fostes, e sois estrela enfim do Norte,
Do céu girando o Norte mui segura,
Girando sempre a tão felice corte.
Hoje lograis mais bela formosura,
Possuindo na glória dita, e sorte,
Que em ser do Céu consiste o ter ventura.
Nascestes bela, e fostes entendida
Uniu-se em vós saber, e formosura:
Não se pode lograr tanta ventura,
Em quem com tal estrela foi nascida.
Quem viu co'a formosura a sorte unida,
Que julgasse essa vida por segura?
Muito esperou por vós a sepultura,
Que, em quem é tão feliz, não dura a vida.
Quem dissera no vosso nascimento,
Que em tal estrela haviam tais enganos,
Para ser maior hoje o sentimento!
Porém nestes prodígios soberanos,
Tendo dos Magos vós o entendimento,
Não podiam ser muitos vossos anos.
Se a dar-te vida a minha dor bastara,
Filha Isabel, de minha dor morrera,
E porque minha dor tudo excedera,
Gêneros novos de sentir buscara.
Se uma vida se dera, ou se emprestara,
A metade da minha te ofrecera,
Ou toda, porque inveja não tivera
Outra a metade, que órfã me ficara.
E se a minha alma enfim tua agonia
Substituir pudera com a sua,
Tua vida animando a cinza fria:
Inda que a arrojo o mundo o atribua,
Não só a vida, a alma te daria
Por melhorá-la com fazê-la tua.
Que do corpo as prisões desemparaste,
E qual cândida flor, ou fresca rosa
De teus anos a flor em flor cortaste:
De minha dor a mágoa saudosa,
Que por herança d'alma me deixaste,
Deves crer, que até agora não durara,
Se a dar-te vida a minha dor bastara.
Não durara até agora a minha mágoa,
Se fora ela bastante a dar-te vida,
Porque, vivendo tu, dos olhos a água
Se enxugara em dous rostos reprimida:
E sendo o peito humano a própria frágua,
Onde a dor em licores derretida
Corre a desafogar: se não correra,
Filha Isabel, de minha dor morrera.
Morrera, Filha minha, e acabara
De um doce mal, formosa enfermidade:
Todo o poder do mundo me invejara,
Pois falta a seu poder esta verdade:
Com minha morte a vida se trocara,
Da maior, e mais alta majestade
Enjeitara tudo, porque nada era,
E porque a minha dor tudo excedera.
Ficara tão ufano de seguir-te,
Vivo por te chorar, morto por ver-te,
Que se pudera crer, que por senir-te
A ocasião estimara de perder-te:
E se nesta estranheza de sentir-te
Não chegara um aplauso a merecer-te,
De uma a outra estranheza me passara,
Gêneros novos de sentir buscara.
Sangue ondeara a margem deste rio,
A rosa adoecera em suas cores,
Da Aurora carmesirn fora o rocio,
Não recendera o ambar entre as flores:
Fora da natureza um desvario
A ordem natural de seus primores:
Mas nada a minha dor necessitara,
Se uma vida se dera, ou se emprestara.
Se pudera emprestar-te a minha vida,
Se escusara então meu sentimento:
Mas ai! que nem o dá-la por perdida
Remédio pode ser do meu tormento:
E já, que não é cousa permitida
Celebrar um contrato tão violento,
E dar a vida enfim se não tolera,
A metade da minha te ofrecera.
E pois a natureza é tão escassa,
Que na esfera da sua potestade
Não cabe por indulto, nem por graça
Uma vida partir pela metade:
E inda que o vença amor, indústria, ou traça,
Me resta outra maior dificuldade,
De que se hão de invejar, metade dera,
Ou toda, porque inveja não tivera.
Se a metade da vida, que te ofreço,
Inveja há de causar, à com que fico,
E sobre dar-lhe inveja à que despeço,
Que saudades Ihe dê me certifico:
Para livrar-me de um, e outro tropeço,
Com que nesta partida me complico,
Sobre a tua metade te largara
A outra metade, que órfã me ficara.
Dera-te enfim a minha vida toda,
Que o mais fora desdouro da firmeza,
Que sempre, quem bem ama, se acomoda
Fazer a vida altar de uma fineza:
Dar tudo nunca a amor desacomoda,
Dera-te a vida, e alma nesta empresa,
Se a minha vida a morte te alivia,
E se a minha alma enfim tua agonia.
Ásia filha maior do mar profundo,
A África do mar soberania,
Europa exemplar luz de todo o mundo
E a América do ouro monarquia,
veriam, com quão ledo, e quão jucundo
Rosto por ti minha alma despedia,
Se o calor da minha alma à vida tua
Substituir pudera com a sua.
O Rouxinol, que canta docemente
À vista da consorte, que o namora,
A Rola triste, que ao esposo ausente
De dia busca, se de noite o chora:
No ar sutil, na fonte transparente,
Vendo o fino de uma alma, que te adora,
Pasmariam de ver, como supria
Tua vida, animando a cinza fria.
A inveja, que do ódio se alimenta,
A detração, que como espada corta,
A calúnia, que a todos ensangüenta,
E a aversão, que os áspides aborta:
Todos a iníquia mão, língua cruenta
Mostrariam pasmada, obtusa, absorta;
Eu só perdera a vida pela tua,
Inda que a arrojo o mundo o atribua.
Pasme de assombro, ou da fineza a terra,
Trema do caso, ou da estranheza o monte,
De invejosas as aves se dêem guerra
De corrido se mude o Horizonte:
Co'as nuvens indignadas choque a serra,
Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte,
Que eu firme nesta minha fantesia
Não só a vida, a alma te daria.
Dá-la-ia não só por imitar-te,
Se cabe em minha dor tão alta sorte,
Senão por despojar-me, e despojar-te
A mim do sentimento, a ti da morte:
Não só daria a alma por mostrar-te,
Que não tenho outro alívio em mal tão forte:
Senão (pois perde tanto em ser tão sua)
Por melhorá-la com fazê-la tua.
Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
Tanta virtude excelente
de animoso, e de alentado,
de valeroso soldado,
e de cortesão valente,
viu o mundo, e soube a gente,
que inda que em santo podia
transformar-se a Senhoria,
o Conde o não conseguiu,
porque de noite caiu,
e o Santo cai no seu dia.
Se o Conde caiu de noite,
como o teremos por Santo,
quando a queda um tanto, ou quanto,
teve do divino açoite:
quis Deus, que o Conde se afoite,
porque visse o bom Soldado,
que o Conde de puro honrado
quis, que o visse a própria terra,
quanto arrojado na guerra,
na paz tão precipitado.
Ícaro da nossa guerra
ares corta o Conde só,
Ícaro caiu no Pó,
e o Conde caiu na terra:
se, porque o rio o enterra,
o nome lhe ficou dado
de Ícaro ter sepultado:
assim porque a terra dura
deu ao Conde sepultura,
ficou a terra um condado.
De cera, e pluma se val
Ícaro para viver,
e o Conde para morrer
valeu-se do natural:
quanto a força artificial
da natureza é sobrada
fica a do Conde adiantada,
porque Ícaro quando bóia
faz tragédia de tramóia,
e o Conde de capa, e espada.
Tinha o Conde de morrer;
todo o mortal nisto pára,
e se ele se não matara,
quem lho havia de fazer?
fez bem o Conde a meu ver,
quando ao jardim se arrojou,
e entre as flores expirou:
vento é a vida em rigor,
e como o Conde era flor,
entre as flores acabou.
Se ignorou alguns sentidos,
porque tanto mal se urdiu,
era valido, e caiu,
que o cair é dos validos:
tão certos são, e sabidos
no monte, no lar, na praça
estes reveses da graça,
que é já dos Palácios lei,
que quem da graça d'EI-Rei
cai, cai da sua desgraça.
Nesse precipício, Conde,
fostes Ícaro segundo,
bem que a Dédalo no mundo
vossa fama corresponde:
em parte caístes, onde
como Ícaro morrestes,
mas a Dédalo excedestes
nesses labirintos tristes,
em fazer no que caístes,
e em cair, no que fizestes.
Caiu o Conde, e se diz,
que foi por um caso atroz,
porém já corre outra voz,
que a esta se contradiz:
que foram uns frenesis
do juízo descortês:
mas eu digo desta vez
ouvindo do baque o truz,
que o juízo ao Conde induz
ter caído, no que fez.
Aqui jaz, em que lhe pes,
quem tudo fez com má sorte,
e só na hora da morte
caiu naquilo, que fez.
Quando a morte de Abner David sentia,
Mandou a seus vassalos, que chorassem,
E que em lágrimas todos publicassem
Quanto o Reino Ihe deve, e o Rei devia.
Cada qual seu tormento repetia,
Sem querer, que os dos outros o igualassem
E todos procuravam, que mostrassem
As lágrimas dilúvio, a dor porfia.
Pois se a morte de Abner se sente tanto,
Só por ser General valente, e forte,
Que move o Reino, e Rei a tanto pranto:
Lamente Portugal, e sinta a Corte
A morte de Marialva, porque espanto
Foi do mundo, e o pudera ser da Morte.
Aqui jaz o coração
do mais valente Anibal,
que restaurou Portugal com a espada de co'a razão:
aos pés do Rei quarto João
lhe mandaram dar jazigo,
para que a todo o perigo
os dous unidos por lei
achasse o vassalo ao Rei,
e tivesse o Rei o amigo.
Aqui jaz o coração
do vassalo mais leal,
a quem deve Portugal
o quarto Rei Dom João:
e assim com justa razão
lhe dão a seus pés jazigo,
porque a todo o perigo
unidos os dous por lei
achasse a lealdade o Rei,
tivesse o vassalo amigo.
Em três partes enterrado
está o corpo do Marquês
de Marialva: porque em dez
mil seu nome é venerado:
e foi destino acertado,
que em tanta parte estivesse,
para que o mundo soubesse,
que este valeroso Marte
morto assiste em qualquer parte,
como se ainda vivesse.
Ó caso o mais fatal da triste sorte!
Ó terrível pesar! ó dor imensa!
Quem viu, que em breves dias de doença
Acabasse valor, que era tão forte!
Quem viu prostrar-se a gala de Mavorte,
Que hoje em cinza se ve à morte apensa!
Que como se prostrou, logo a licença
Concedeu livremente ousada à morte.
Já se vê o valor, que esclarecido
Foi, em urnas de pedra sepultado
Do sujeito mais grave, e entendido.
À Parca rigorosa sujeitado,
Acabado já, e em cinzas consumido
o esforço, que se viu mais alentado.
Teu alto esforço, e valentia forte
Tanto a outro nenhum valor iguala,
Que teve o céu cobiça de lográ-lo,
Que teve inveja de vencê-la a morte.
O céu veio a lográ-la, mas por sorte,
Que por poder não pôde conquistá-la;
A morte por haver de contrastá-la
Vigor de lei tomou, e deu-lhe o corte.
Prêmios, que mereceste, e nunca viste,
Todos com teu valor os desprezaste,
E com os merecer lhe resististe.
O cargo, que na vida não lograste,
Esse o mofino é, órfão, e triste,
Pois te não falta a ti, tu lhe faltaste.
Quem há de alimentar de luz ao dia?
Quem de esplendor ilustrará a Nobreza?
Quem há de dar lições de gentileza
A toda a gentileza da Bahia?
Já feneceu do mundo a galhardia,
Melancólica jaz a natureza,
Vendo em pó reduzida a fortaleza,
E em cinzas desatada a fidalguia.
O Marte (digo), que ao combate expunha
O peito sem temor, que ao mundo assombra,
Sendo da paz terror, da guerra espanto.
Foi este o Senhor Matias da Cunha,
Que hoje nos dá tornado em fria sombra
Ao discurso pesar, aos olhos pranto.
Oh não te espantes não, Dom Antonio,
Que se atreva a Bahia
Com oprimida voz, com plectro esguio
Cantar ao mundo teu rico feitio,
Que é já velho em Poetas elegantes
O cair em torpezas semelhantes.
Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito,
Lucano do Mosquito,
Das Rãs Homero, e destes não desprezo,
Que escreveram matérias de mais peso
Do que eu, que canto cousa mais delgada
Mais chata, mais sutil, mais esmagada.
Quando desembarcaste da fragata,
Meu Dom Braço de Prata,
Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua
Mandava a Inquisição alguma estátua
Vendo tão espremida salvajola
Visão de palha sobre um Mariola.
O rosto de azarcão afogueado,
E em partes mal untado,
Tão cheio o corpanzil de godolhões,
Que o julguei por um saco de melões;
Vi-te o braço pendente da garganta,
E nunca prata vi com liga tanta.
O bigode fanado feito ao ferro
Está ali num desterro,
E cada pêlo em solidão tão rara,
Que parece ermitão da sua cara:
Da cabeleira pois afirmam cegos,
Que a mandaste comprar no arco dos pregos.
Olhos cagões, que cagam sempre à porta,
Me tem esta alma torta,
Principalmente vendo-lhe as vidraças
No grosseiro caixilho das couraças:
Cangalhas, que formaram luminosas
Sobre arcos de pipa duas ventosas.
De muito cego, e não de malquerer
A ninguém podes ver;
Tão cego és, que não vês teu prejuízo
Sendo cousa, que se olha com juízo:
Tu és mais cego, que eu, que te sussurro,
Que em te olhando, não vejo mais que um burro.
Chato o nariz de cocras sempre posto:
Te cobre todo o rosto,
De gatinhas buscando algum jazigo
Adonde o desconheçam por embigo:
Até que se esconde, onde mal o vejo
Por fugir do fedor do teu bocejo.
Faz-lhe tal vizinhança a tua boca,
Que com razão não pouca
O nariz se recolhe para o centro
Mudado para os baixos lá de dentro:
Surge outra vez, e vendo a bafarada
Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.
Pernas, e pés defendem tua cara:
Valha-te; e quem cuidara,
Tomando-te a medida das cavernas
Se movesse tal corpo com tais pernas!
Cuidei, que eras rocim das alpujarras,
E já frisão te digo pelas garras.
Um casaquim trazias sobre o couro,
Qual odre, a quem o Touro
Uma, e outra cornada deu traidora,
E lhe deitou de todo o vento fora;
Tal vinha o teu vestido de enrugado,
Que o tive por um odre esfuracado.
O que te vir ser todo rabadilha
Dirá que te perfilha
Uma quaresma (chato percevejo)
Por Arenque de fumo, ou por Badejo:
Sem carne, e osso, quem há ali, que creia,
Senão que és descendente de Lampreia.
Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre,
Que te temo um desastre,
E é, que por sovela, ou por agulha
Arme sobre levar-te alguma bulha:
Porque depositando-te à justiça
Será num agulheiro, ou em cortiça.
Na esquerda mão trazias a bengala
ou por força, ou por gala:
No sovaco por vezes a metias,
Só por fazer enfim descortesias,
Tirando ao povo, quando te destapas,
Entonces o chapéu, agora as capas.
Fundia-se a cidade em carcajadas,
Vendo as duas entradas,
Que fizeste do Mar a Santo Inácio,
E depois do colégio a teu palácio:
O Rabo erguido em cortesias mudas,
Como quem pelo cu tomava ajudas.
Ao teu palácio te acolheste, e logo
Casa armaste de jogo,
Ordenando as merendas por tal jeito,
Que a cada jogador cabe um confeito:
Dos Tafuis um confeito era um bocado,
Sendo tu pela cara o enforcado.
Depois deste em fazer tanta parvoíce,
Que inda que o povo risse
Ao princípio, cresceu depois a tanto,
Que chegou a chorar com triste pranto:
Chora-te o nu de um roubador de falso,
E vendo-te eu direito, me descalço.
Xinga-te o negro, o branco te pragueja,
E a ti nada te aleija,
E por teu sensabor, e pouca graça
És fábula do lar, riso da praça,
Té que a bala, que o braço te levara,
Venha segunda vez levar-te a cara.
Tempo, que tudo trasfegas,
fazendo aos peludos calvos,
e pelos tornar mais alvos
até os bigodes esfregas:
todas as caras congregas,
e a cada uma pões mudas,
tudo acabas, nada ajudas,
ao rico pões em pobreza,
ao pobre dás a riqueza,
só para mim te não mudas.
Tu tens dado em mal querer-me,
pois vejo, que dá em faltar-te
tempo só para mudar-te, s
e é para favorecer-me:
por conservar-me, e manter-me
no meu infeliz estado,
até em mudar-te hás faltado,
e estás tão constante agora,
que para minha melhora
de mudanças te hás mudado.
Tu, que esmaltas, e prateias
tanta gadelha dourada,
e tanta face encarnada
descoras, turbas, e afeias:
que sejas pincel, não creias,
senão dias já passados;
mas se esmaltes prateados
branqueiam tantos cabelos,
como, branqueando pêlos,
não me branqueias cruzados?
Se corres tão apressado,
como paraste comigo?
corre outra vez, inimigo,
que o teu curso é meu sagrado:
corre para vir mudado,
não pares por mal de um triste:
porque, se pobre me viste,
paraste há tantas auroras,
bem de tão infaustas horas
o teu relógio consiste.
O certo é, seres um caco,
um ladrão da mocidade,
por isso nesta cidade
corre um tempo tão velhaco:
farinha, açúcar, tabaco
no teu tempo não se alcança,
e por tua intemperança
te culpa o Brasil inteiro,
porque sempre és o primeiro
móvel de qualquer mudança.
Não há já, quem te suporte;
e quem armado te vê
de fouce, e relógio, crê,
que és o percussor da morte:
vens adiante de sorte,
e com tão fino artifício,
que à morte forras o ofício;
pois ao tempo de morrer,
não tendo já que fazer,
perde a morte o exercício.
Se o tempo consta de dias,
que revolve o céu opaco,
como tu, tempo velhaco,
constas de velhacarias?
não temas, que as carestias,
que de ti se hão de escrever,
te darão a aborrecer
tanto as futuras idades,
que, ouvindo as tuas maldades,
a cara te hão de torcer.
Se, porque penas me dês,
paras cruel, e inumano,
o céu santo, e soberano
te fará mover os pés:
esse azul móvel, que vês,
te fará ser tão corrente,
que não parando entre a gente,
preveja a Bahia inteira,
que há de correr a carreira
com pregão de delinqüente.
Preso entre quatro paredes
me tem Sua Senhoria
por golotão de despachos,
por fundidor de mentiras.
Dizem, que sou um velhaco,
e mentem por vida minha,
que o velhaco era o Governo,
e eu sou a velhacaria.
Quem pensara, e quem dissera,
quem cuidara, e quem diria,
que um braço de prata velha
pouca prata, e muita liga!
Tanto mais que o Braço Forte
fosse forte, que poria
um cabo de calabouço,
e um soldado de golilha!
Porém eu de que me espanto,
se nesta terra maldita
pode uma onça de prata
mais que dez onças de alquímia.
Quem me chama de ladrão,
erra o trincho à minha vida,
fui assassino de furtos,
mandavam-me, obedecia.
Despachavam-me a furtar;
eu furtava, e abrangia,
e são boas testemunhas
inventários, e partilhas.
Eu era o ninho de guincho,
que sustentava, e mantinha
com suor das minhas unhas
mais de dez aves rapinhas.
O Povo era, quem comprava,
o General, quem vendia,
eu triste era o corretor
de tão torpes mercancias.
Vim depois a enfadar,
que sempre no mundo fica
aborrecido o traidor,
e a traição muito bem vista.
Plantar de fora o ladrão,
quando a ladroíce fica,
será limpeza de mãos,
mas de mãos mui pouco limpas.
Eles cobraram o seu
dinheiro, açúcar, farinha,
até a mim me embolsaram
nesta hedionda enxovia.
Se foi bem feito, ou mal feito,
o sabe toda a Bahia,
mas se a traição ma fizeram,
com eles a traição fica.
Eu sou sempre o Braço Forte,
e nesta prisão me anima,
que se é casa de pecados,
os meus foram ninharias.
Todo este mundo é prisão,
todo penas, e agonias,
até o dinheiro está preso
em um saco, que o oprima.
A pipa é prisão do vinho,
e da água fugitiva
(sendo tão leve, ligeira)
é prisão qualquer quartinha.
Os muros de pedra, e cal
são prisão de qualquer vila,
d'alma é prisão o corpo,
do corpo é qualquer almilha.
A casca é prisão das fruitas,
da rosa é prisão a espinha,
o mar é prisão da terra,
a terra é prisão das minas.
É cárcere do ar um odre,
do fogo é qualquer pedrinha,
e até um céu de outro céu
é uma prisão cristalina.
Na formosura, e donaire
de uma muchacha divina
está presa a liberdade,
e na paz a valentia.
Pois se todos estão presos,
que me cansa, ou me fadiga,
vendo-me em casa d'EI-Rei
junto à Sua Senhoria?
Chovam prisões sobre mim,
pois foi tal minha mofina,
que, a quem dei cadeias d'ouro,
de ferro mas gratifica.
Senhor Antão de Sousa de Meneses,
Quem sobe a alto lugar, que não merece,
Homem sobe, asno vai, burro parece,
Que o subir é desgraça muitas vezes.
A fortunilha autora de entremezes
Transpõe em burro o Herói, que indigno cresce
Desanda a roda, e logo o homem desce,
Que é discreta a fortuna em seus reveses.
Homem (sei eu) que foi Vossenhoria,
Quando o pisava da fortuna a Roda,
Burro foi ao subir tão alto clima.
Pois vá descendo do alto, onde jazia,
Verá, quanto melhor se lhe acomoda
Ser home em baixo, do que burro em cima.
a alegre serenidade,
com que toda a tempestade
do triste inverno acabou:
já Saturno declinou
nas operações malignas,
com influências benignas
Júpiter predominante
nos promete ano abundante
De flores, e pedras finas.
Se destes aspectos tais
bem se calcula a figura,
teremos grande fartura,
não há de haver fome mais:
mostras temos, e sinais
de um tempo muito abastado:
porque bem considerado
dele tem o próprio efeito;
já vemos, que a seu respeito
Floresce, e enriquece o Estado.
Para ser enriquecido
este Estado, e florescente,
temos a causa patente
no Planeta referido:
nem se equivoca o sentido
no efeito aqui declarado:
porque sendo bem notado
o estado, como parece,
se pelo mais não floresce,
Floresce sim pelo Prado.
Pelo Prado flor a flor
se vai a terra esmaltando,
com que o clima está mostrando
temperamento melhor:
do Luminar superior
por tais influências dignas
sendo as pedras, e boninas
da terra únicos primores
pois se esmalta pelas flores,
E enriquece pelas Minas.
Na terra já se exprimentam
virações tão temperadas,
que as aves determinadas
tornar aos ninhos intentam:
já não sentem, nem lamentam
tempestuosas ruínas,
pois com salvas matutinas
se mostram tão prazenteiras,
que mais parecem caseiras
As aves, que peregrinas.
Sua peregrinação
influxo foi de Saturno,
Planeta sempre noturno,
e muito importuno então:
todas nessa conjunção
seus doces ninhos deixaram,
e tanto se recearam
do nocivo temporal,
que escolhendo o menor mal,
Aos montes se retiraram.
Porém tanto que sentiram
haver no tempo mudança,
sem receio, e sem tardança
aos ninhos se reduziram:
outros ares advertiram,
outra clemência notaram,
com que alegres publicaram
dos astros os movimentos,
e com festivos acentos
Nesta manhã já cantaram.
Cantaram para mostrar
com repetidas cadências
singulares excelências
de um Planeta singular:
tal doçura no cantar
não se ouviu nesta Bahia,
ouvindo-se na harmonia
modulações tão suaves,
que nunca cantaram aves
com tão doce melodia.
Cada qual com voz sonora
nos mutetes, que cantavam,
por mil modos explicavam
de todo estado a melhora:
cada instante, e cada hora
a música mais se ouvia;
no Prado resplandecia
por modo maravilhoso
um lustre tão luminoso
que a noite se tornou dia.
Entre as aves modulantes,
que este nosso País tem
todas cantavam o bem,
de que são participantes:
dos males, que foram dantes,
todas também se queixaram;
assim que todas mostraram
com alegrias notórias,
que começaram as glórias,
Porque as penas se acabaram.
Daqui desta Praia grande,
Onde à cidade fugindo,
conventual das areias
entre os mariscos habito:
A vós, meu Conde do Prado,
a vós, meu Príncipe invicto,
Ilustríssimo Mecenas
de um Poeta tão indigno.
Enfermo de vossa ausência
quero curar por escrito
sentimentos, e saudades,
lágrimas, penas, suspiros.
Quero curar-me convosco,
porque é discreto aforismo,
que a causa das saudades
se empenhe para os alívios.
Ausentei-me da Cidade,
porque esse Povo maldito
me pôs em guerra com todos,
e aqui vivo em paz comigo.
Aqui os dias me não passam,
porque o tempo fugitivo,
por ver minha solidão,
pára em meio do caminho.
Graças a Deus, que não vejo
neste tão doce retiro
hipócritas embusteiros,
velhacos entremetidos.
Não me entram nesta palhoça
visitadores prolixos,
políticos enfadonhos,
cerimoniosos vadios.
Uns néscios, que não dão nada,
senão enfado infinito,
e querem tirar-me o tempo,
que me outorga Jesu Cristo.
Visita-me o lavrador
sincero, simples, e liso,
que entra co'a boca fechada,
e sai co queixo caído.
En amanhecendo Deus,
acordo, e dou de focinhos
co sol sacristão dos céus
toca aqui, toca ali signos.
Dou na varanda um passeio,
ouço cantar passarinhos
docemente, ao que eu entendo,
exceto a letra, e o tonilho.
Vou-me logo para a praia,
e vendo os alvos seixinhos,
de quem as ondas murmuram
por mui brancos, e mui limpos:
os tomo em minha desgraça
por exemplo expresso, e vivo,
pois ou por limpo, ou por branco
fui na Bahia mofino.
Queimada veja eu a terra,
onde o torpe idiotismo
chama aos entendidos néscios,
aos néscios chama entendidos.
Queimada veja eu a terra
onde em casa, e nos corrilhos
os asnos me chamam d'asno,
parece cousa de riso.
eu sei um clérigo zote
parente em grau conhecido
destes, que não sabem musa,
mau grego, e pior latino:
Famoso em cartas, e dados
mais que um ladrão de caminhos,
regatão de piaçavas,
e grande atravessa-milhos:
Ambicioso, avarento,
das próprias negras arnigo
só por fazer a gaudere,
o que aos outros custa jimbo.
Que se acaso em mim lhe falam,
torcendo logo o focinho,
ninguém me fale nesse asno,
responde com todo o siso.
Pois agora (pergunto eu)
se Job fora ainda vivo
sofrera tanto ao diabo,
como eu sofro este percito?
Também sei, que um certo Beca
no pretório presidindo,
onde é salvage em cadeira,
me pôs asno de banquinho.
Por sinal que eu respondi,
a quem me trouxe este aviso,
se fosse asno, como eu sou,
que mal fora a esse Ministro.
Eu era lá em Portugal
sábio, discreto, e entendido,
Poeta melhor, que alguns,
douto como os meus vizinhos.
Chegando a esta cidade,
logo não fui nada disto:
porque o direito entre o torto
parece, que anda torcido.
Sou um herege, um asnote,
mau cristão, pior ministro,
mal entendido entre todos,
de nenhum bem entendido.
Tudo consiste em ventura,
que eu sei de muitos delitos
mais graves que os meus alguns,
porém todos sem castigo.
Mas não consiste em ventura,
e se o disse, eu me desdigo;
pois consiste na ignorância
de Idiotas tão supinos.
De noite vou tomar fresco,
e vejo em seu epiciclo
a lua desfeita em quartos
como ladrão de caminhos.
O que passo as mais das noites,
não sei, e somente afirmo,
que a noite mais negra, escura
em claro a passo dormindo.
Faço versos mal limados
a uma Moça como um brinco,
que ontem foi alvo dos olhos,
hoje é negro dos sentidos.
Esta é a vida, que passo,
e no descanso, em que vivo,
me rio dos Reis de Espanha
em seu célebre retiro.
Se, a quem vive em solidão,
chamou beato um gentio,
espero em Deus, que hei de ser
por beato inda benquisto.
Mas aqui, e em toda a parte
estou tão oferecido
às cousas do vosso gosto,
como de vosso serviço.
Generoso Dom Francisco,
mais que Conde Rei do prado,
porque se a Rosa é Rainha,
rei sois vóis, pois sois o Cravo.
Majestoso ramilhete
por cuja causa logramos
trinta e seis meses de flores,
que um mês fizeram de Maio.
Luminar esclarecido,
em quem tanto estão brilhando
as luzidas excelências
desses ascendentes Astros.
Ouvi de meus sentimentos
a voz, inda que o reparo
note, que para a matéria
o instrumento é mui baixo.
Ouvi meus saudosos tonos,
que é bem, Senhor Soberano,
que, quem deu assunto à solfa,
se digne de ouvir os cantos.
Neste papel ponde os olhos,
pois já quisestes dignar-vos
de verdes da minha Musa
noutro tempo outro traslado.
Naquele tempo, então digo,
quando escapei são, e salvo
por vosso bom patrocínio
de mil testemunhos falsos.
Quando viu toda a Bahia
no decurso de três anos
sempre em flor vosso carinho,
nunca murcho o vosso agrado
Aqui mil órgãos quisera,
para que com mil meatos
sempre ferisse os encômios,
onde soam os aplausos.
Mas inda assim não podiam
entender-se os vôos tanto,
que não ficassem sucintos
para elogios tão altos.
Aquele ligeiro monstro,
que nas presunções de alado
pelas plumas marca os vôos,
pelos vôos mede os passos.
Só pode com nova tuba
referir em pregões altos
os timbres da vossa pompa,
as prendas do vosso garbo.
Referirá, Senhor Conde,
que sempre os feitos preclaros
têm por doação dos tempos
da Fama os maiores brados.
Esta vai com grande empenho
desta Praça, para dar-vos
sobre as aras do meu trono
da memória os holocaustos.
Digo, que vai desta Praça,
onde em público teatro
vemos do melhor governo
os mais heróicos ensaios.
Do Mestre as prerrogativas
toquei em hino mais amplo
por ver-se nas lições suas
da pena o primeiro aparo.
Aqui dos seus documentos
nada digo, nada trato,
que pois o assunto é só vosso,
só convosco agora falo.
Só convosco, porque o gênio,
que é para pouco trabalho,
mal pode ser juntamente
Jardineiro, e Lapidário.
Tanto que vos embarcastes,
logo então fiquei notando,
que na falta do presente
se conhece o bem passado.
Por vossa ausência às escuras
fica a terra, e não me espanto,
de que quando o sol se ausenta,
se ausente da Luz os raios.
A vista dos nossos olhos
éreis; com que fica claro,
pois, meu Senhor, vos perdemos,
que sem vós cegos ficamos.
A vossa falta sentimos
geralmente neste estado,
que sentir-se a grande perda
efeito é muito ordinário.
Sente o grande, que não tem
o Prado alegre em Palácio,
o gentil Cravo na rua,
a Flor brilhante no Campo.
Sente igualmente o pequeno
não ter em seus desamparos
abrigo para a tormenta
e tábua para o naufrágio.
Eu sinto, e sentimos todos,
que fosse tão breve o prazo
dos objetos para a vista,
da vista para os regalos.
Mas não podia o triênio,
sendo um bem dos bens humanos,
deixar de incluir o logro
nos termos de momentâneo.
Nesta suposição nossa
concorrem motivos vários
uns por parte dos alívios,
outros em favor dos prazos.
Mas prevalecem as penas,
que os corações magoados,
quando a dor mais dissimulam,
então estão mais penando.
Não permita vossa ausência,
no sentimento intervalos,
que no mal sempre contino
nunca desconsolos faltam.
Vossa saudade gememos
nossa solidão choramos
se na solidão chorosos,
na saudade solitários.
Nesta assistência tão breve
nos mostrou o desengano
não ser para pecadores
o comércio de tal Anjo.
Do Prado mais ameno a flor mais pura,
Que em fragrâncias o alento há desatado,
Hoje a fortuna insípida há roubado
A pompa, o ser, a gala, a formosura.
Flor foste, ó Conde, a quem a desventura
Por decreto fatal do iníquio fado
Quis dar-te como flor do melhor Prado
Tumba no mar, nas águas sepultura.
Porque menos decente o monumento
Poderias achar no infeliz caso
De ver extinto tanto luzimento.
Por magnânimo herói no final prazo
Somente na extensão desse elemento
Terias como sol decente ocaso.
Em essa de cristal campanha errante
Da morte um peito ilustre foi vencido,
Mágoa, que o mar chorava fementido
Com lágrimas de neve, ou de diamante.
Neste teatro horrível, e inconstante
Aos rigores do tempo pôs rendido
A sua pompa o Prado mais florido,
Fim a seu curso o sol mais rutilante.
Como Prado em tormentas inundado,
Como sol, que apressado a esfera corre,
Teve o seu fim nas águas destinado.
Por que se bem se adverte, ou se discorre,
Se o mar inunda, se sepulta o prado,
E se fenece o sol, nas ondas morre.
No Reino de Netuno submergido
Nos campos de Anfitrite sepultado
Tem a Sorte a mais bela Flor, que o Prado
Em sua amenidade há produzido.
Os realces ilustres tem perdido,
porque a Parca os alentos lhe há roubado,
cuja memória os mares têm chorado,
cuja lembrança as águas têm sentido.
Mas se de flor, ó Conde a preminência
Gozavas em teu florido viver,
Que muito não tivesses existência!
Pois a flor, que mais pompa vem a ter
Se pondera em uma hora sem falência
Sujeita à pensão fera de morrer.
Nasce el sol de los astros presidente
Principe en las espheras conocido,
Y aunque el dia le mira el mas luzido,
La noche se le atreve irreverente.
Sirve le de sepulchro transparente
El mar, pension fatal de haver nascido,
Pues el que en todo un ciclo nó ha cabido,
Le viene a ser el mar urna decente.
Sol fuiste, Conde ilustre, en la nobleza,
A quien la triste noche se le atreve,
Pues es el morir del sol naturaleza.
Hallaste como el sol tumba de nieve,
Pues siendo corto el sol à tu grandeza,
Solo à tal sol tal urna se le deve.
Num dia próprio a liberalidades,
No qual o Rei dos Reis aos Reis aceita,
Não é muito, que quem Rei vos respeita,
Vos troque a Senhoria em majestades.
Obriga-me a pedir calamidades
A que o meu fado triste me sujeita,
Obriga-vos a dar a mão perfeita,
Com que sabeis matar necessidades.
Chegaram hoje os Reis do diversório
A tributar incenso, mirra, e ouro,
Fazendo do presépio um oratório:
Se guiou aos três Reis Planeta Louro,
Guie-me a minha estrela o peditório,
Com que na vossa mão ache um tesouro.
Senhor: se quem vem, não tarda,
vim eu em boa ocasião,
pois da Guarda o capitão
é Anjo da minha guarda:
vossa presença galharda,
vossa dócil natureza
bem mostram, que sois na empresa
da minha fortuna imensa
capitão pela defensa
Anjo pela gentileza.
Obrigado a tão bom trato,
que em mim é lance infalível,
o desempenho impossível
temo, que me faça ingrato:
mas como já me precato
de tão previsto desar,
que eu não basto a desviar,
sirva de escusa, ou perdão,
que não falta à gratidão,
quem se peja de faltar.
Na Corte em era oportuna
vistes a minha abastança,
hoje vereis a mudança
da minha infausta fortuna:
de estrela tão importuna
dera uma justa querela,
porque hajais de corrige-la:
mas no mundo é já patente,
que como sábio, e prudente
dominastes minha estrela.
Mudei-me de ponto a ponto
de Portugal ao Brasil,
lá deixo infortúnios mil,
acho cá ditas sem conto:
co'as ditas é, que de ponto
a desgraça lá passada,
e a graça considerada
está em vós, meu capitão,
que a dita está na eleição
da sombra, a que está chegada.
Senhor: Os Negros Juízes
da Senhora do Rosário
fazem por uso ordinário
alarde nestes Países:
como são tão infelizes,
que por seus negros pecados
andam sempre emascarados
contra a lei da policia,
ante Vossa Senhoria
pedem licença prostrados.
A um General Capitão
suplica a Irmandade preta,
que não irão de careta,
mas descarados irão:
todo o negregado Irmão
desta Irmandade bendita
pede, que se lhe permita
ir ao alarde enfrascados,
não de pólvora atacados,
calcados de jeribita.
Senhor: deste meu Sobrinho
afirmou um Padre tolo,
que é furado do miolo,
sendo o tal Padre o tolinho:
não é doudo, nem doudinho,
falando na realidade,
mas se hei de dizer verdade,
e nada hei de encobrir,
anda morto por servir
aqui Sua Majestade.
Pode Vossa Senhoria,
se nisto acertar deseja,
permitir, que o Moço seja
soldado de Infantaria:
e se alcançar algum dia,
que falei afeiçoado,
eu me dou por condenado,
e sem recurso nenhum
a servir sem soldo algum
em lugar deste Soldado.
Sei eu, Senhor, que Vossa Senhoria
Mandou dar ao Faria um bom vestido,
Sendo, que mais o tinha merecido
A mulher do mesmíssimo Faria
Provo: todo o prazer, gosto, e alegria,
Que se tem do Faria deduzido,
O deu sempre a Mulher, nunca o Marido.
Que ela ia pra Angola, e ele não ia.
Assim que se a Mulher vai para Angola,
E ele fica na infame lupanária,
Sua ausência cruel pondo à viola:
Tiro por conseqüência temerária,
Que à Mulher se lhe deve dar a esmola,
Que em crítico se diz mercê ordinária.
Se da Guarda pareceis
Anjo sobre capitão,
não é novidade não,
que de males nos livreis:
dobrado ofício fazeis
em qualquer nossa aflição,
pois com nobre coração
nos livrais amante interno,
se como Anjo do inferno,
do mais como capitão.
Quem, Senhor, celebrando a vossa idade,
Os anos com prazer vos vai contando,
Parece, que vos vai aproximando
Para lograr tal dia a vossa herdade.
Se a conta vos chegara a eternidade,
Contente vo-la iria numerando,
Mas dá-me desprazer a conta, quando
Temo a raia tocar da mortandade.
Com olhos sempre postos na Ordinária
Vos dou os parabéns sem falso engano
De ver-vos contrastando a sorte vária.
Mas se por fim me dais o desengano
(que em vós seria cousa extraordinária)
Direi, que em tal dia fará um ano.
A quem não dá aos fiéis
perdão, se lhe há de outorgar,
eu hoje vos hei de dar,
pedindo me perdoeis:
dou-vos, o que mais quereis,
e o que pedis por favor,
que quando chega um Senhor
a pedir, por não mandar,
mal lhe podia eu faltar
cuma sátira em louvor.
Não fui beijar-vos a mão,
e dar-vos a bem chegada,
porque nessa alta morada
nunca tive introdução:
até agora a indignação
não quis tão altivo trato,
mas hoje é quase distrato,
porque em todo mundo inteiro
de fidalgo, e de escudeiro
são brincos de cão com gato.
Os Fidalgos, e os Senhores
faltos de jurisdição
fazem tudo, e tudo dão
a amigos, e servidores:
os que jogam de maiores
por sangue, e não por poder
fazem jogo de entreter:
porque o sangue desigual
sempre brota ao natural,
e o mando bota a perder.
Perdoai a digressão,
porque esta prolixidade
é boa luz da verdade,
e escusa a sátira então:
quando se ofreça ocasião,
meu Senhor, de que eu vos veja
(na Igreja, ou na rua seja)
hei de prender-vos os pés,
e estai certo, que essa vez
vos não valerá a Igreja.
Estou na minha quintinha,
que é chácara soberana,
ora comendo a banana,
jogando ora a laranjinha:
nem vizinho, nem vizinha
tenho, porque sempre cansa
quem vê tudo, e nada alcança,
e na cidade são raros
os olhos, que não são claros,
se olhos são de vizinhança.
Mas inda que desterrado
me tem o fado, e a sorte
por um Juiz de má morte,
de quem não tenho apelado:
é hoje, que sois chegado,
Senhor, o tempo, em que apele;
fazei, que El-Rei o desvele
pagar o serviço meu,
pois é bizarro, e só
eu não vim muito pago dele.
No culto, que a terra dava,
equivocava-se a vista,
se celebrava o Batista,
se ao Coutinho festejava:
um e outro João estava
arrojando à sua planta
tanto aplauso, e festa tanta:
mas viu-se, que ao mesmo dia,
em que o Batista caía,
o Coutinho se levanta.
Viu-se, que um João Batista
na terça-feira caíra,
e que outro João subira
a imperar esta conquista:
mas não se enganou a vista
por desacerto, ou desgraça,
antes com divina traça
se notou, e se advertiu,
que se um com graça caiu,
outro nos caiu em graça.
Braba ocorrência se achou
no martirológio então,
o dia era de um João,
e outro João lhe levou:
toda a cidade assentou
por razão, se por carinho
ser mais acerto, e alinho
preferir entre dous grandes
como um Silva a um Fernandes
a um Batista um Coutinho.
Mais ocorrências se leram,
porque pasmasse a Bahia,
dous num dia há cada dia,
mas três nunca concorreram:
três de um nome então vieram,
e qual mais para aplaudido,
e assim confuso, e sentido
ficou com tão nova traça
restaurada a nossa Praça
e o Calendário aturdido.
Se de um só João no dia
se abalava a cristandade,
por três de tal qualidade
quem se não abalaria!
tudo quanto então se via,
se via com grande abalo,
um mar de fogo a cavalo,
a pé um Etna de flores,
e por ver tantos primores
o Céu dava tanto estalo.
A ver o grande Alencastro
quem não fez do aperto graça:
se saiu o sol à praça
fazer praça a tanto Astro?
o bronze pois, e alabastro
por solenizar a glória
consentirão, que esta história
fique por mais segurança
nos arquivos da lembrança
nos volumes da memória.
Entre aplausos gentis com luz preclara
Resplandece do sol a monarquia,
E o Príncipe da Luz, que o céu regia
Estático a carroça ardente pára.
E com razão: pois vê, se bem repara,
outro novo Faetonte neste dia,
E sente arder o mundo, como ardia,
Quando ao filho o governo delegara.
Pare pois, e repare, que o decreta
Astréia, porque aprenda no alto pólo
Ditames de luzir deste Planeta.
Sua fama andará de pólo a pólo,
Pois o Jove, que empunha uma gineta,
Faetonte é na luz, no garbo Apolo.
Veio ao Espírito Santo
da Ilha da Madeira Alz.
um Escudeiro Gonçalves
mais pobretão, que outro tanto:
e topando a cada canto
as Tapuias do lugar
havendo uma de tomar
para a bainha da espada,
tomou Vitória agradada,
que então lhe soube agradar.
A tal era uma Tapuia
grossa como uma jibóia,
que roncava de tipóia,
e manducava de cuia:
tocando ela a Aleluia,
tirava ele a culumbrina
com tal estrago, e ruína,
que chegando a conjuncão
lhe encaixou a opilação
por entre as vias da urina.
Pariu a seu tempo um cuco,
um monstro (digo) inumano,
que no bico era tucano
e no sangue mamaluco:
mas não tendo bazaruco,
com que faça o batizado
lhe assistiu sem ser rogado
um troço de fidalguia
pedestre cavalaria
toda de beiço furado.
O Cura, que não curou
de buscar no Calendário
nome de Santo ordinário,
por Antônio o batizou:
tanto o colonim mamou,
e tais forças tomou, que
antes de se pôr de pé,
e antes de estar já de vez,
não falava o português,
mas dizia o seu cobé.
Cansado de ver a Avoa
co'as cuias à dependura,
tratou de buscar ventura,
e embarcou numa canoa:
vindo aportar a Lisboa,
presumiu de fidalguia,
cuidou, que era outra Bahia,
onde basta a presunção
para fazer-se a um cristão
muchíssima cortesia.
Casou com uma rascoa,
que por ele ardia em chamas,
e era criada das Damas
da Rainha de Lisboa:
era uma grande pessoa,
porque tinha um cartapácio,
onde estudava de espácio
todo o primor cortesão,
que até um sujo esfregão
cheira a primor em Palácio.
Nasceu deste matrimônio
um Anjo, digo, um Marmanjo,
que era no simples um Anjo,
e no maligno um demônio:
deram-lhe por nome Antônio;
oh se o Santo tal cuidara!
creio eu, que se irritara
o grande Português tanto,
que deixara de ser Santo,
e o nome lhe não sujara.
Este pois por exaltar-se
veio reger a Bahia:
que bom governo faria,
quem não sabe governar-se!
se ele quisera enforcar-se
pelos que enforcar fazia,
que bom dia nos daria!
mas ele tão mal se salva,
que quando dava a mão alva
então tomava o bom dia.
O Ministro há de ser são,
justo, e não desobrigado,
há de ter ódio ao pecado,
e ao pecador compaixão:
que se tem má propensão,
faz justiça, mas com vício,
e se maior malefício
tem, e pode condenar-me,
livre-me Deus de julgar-me
oficial do meu ofício.
Que, porque furto, o que coma,
me enforquem, pode passar,
mas que me mande enforcar
a bengala de um Sodoma!
quem sofrerá, que Mafoma
me queime por mau cristão,
vendo, que Mafoma é cão,
velhaco, e de suja alparca,
e o mais torpe heresiarca,
que houve entre os filhos de Adão.
Quem na terra sofreria,
que o fedor de um ataúde
com bioco de virtude
disfarçasse a Sodomia?
e de feito em cada dia
desse ao povo um enforcado,
e que de puro malvado
desse esse dia um banquete,
e alegrasse o seu bofete
com bom vinho, e bom bocado?
O bem, que os mais bens encerra,
e as glórias todas contém,
é reinar, quem reina bem,
pois figura a Deus na terra:
eu cuido, que o mundo erra
nesta alta reputação,
que se o Rei erra uma ação,
paga a seu alto atributo
um tristíssimo tributo,
e misérrima pensão.
O Príncipe soberano
bom cristão temente a Deus,
se o não socorrem aos céus,
pensões paga ao ser humano:
está sujeito ao tirano,
que adulando ambicioso
é áspide venenoso,
que achacando-lhe os sentidos,
turbado o deixa de ouvidos,
de olhos o deixa ludoso.
Se fosse El-Rei informado,
de quem o Tucano era,
nunca à Bahia viera
governar um povo honrado:
mas foi El-Rei enganado,
e eu com o povo o paguei,
que é já costume, e já lei
dos reinos sem intervalo,
que pague o triste vassalo
os desacertos de um Rei.
Pagamos, que um figurilha
corcova de canastrão
com nariz de rebecão
em cara de bandurrilha,
descompusesse a quadrilha
dos homens mais bem nascidos,
e que dos mal procedidos
tal estimação fizesse,
que honras, e postos lhes desse
por lhe encherem os ouvidos.
Pagamos ver esta Hiena,
que com a voz nos engana,
pois fala como putana,
e como fera condena:
que uma terra tão amena,
tão fértil, e fão fecunda
a tornasse tão imunda
falta de saúde, e pão;
mas foi força, que tal mão peste,
e fome nos infunda.
Pagamos que um homem bronco
racional como um calhau,
mamaluco em quarto grau,
e maligno desde o tronco:
apenas se dá um ronco,
em briga apenas se fala,
quando os sargentos a escala
prendem com descortesia
aos honrados na enxovia,
todo o patifão na sala.
Pagamos, que um Sodomita,
porque o seu vício dissesse,
todo o homem aborrecesse,
que com mulheres coabita:
e porque ninguém lhe quita
ser um vigário-geral
com pretexto paternal,
aos filhos, e aos criados
tenha sempre aferrolhados
para o pecado mortal.
Pagamos, que o tal jumento
isento de mãos guadunhas
não furtasse pelas unhas,
senão por consentimento:
e que os quatro vezes cento,
que se vieram trazer
ao seu capitão mulher,
porque o pão suba mais dez,
não foi furto, que ele fez,
mas deu jeito a se fazer.
Pagamos ver o Prelado,
que se peca, é de prudente,
dos serventes de um agente
descortesmente ultrajado:
o sobrinho amortalhado
com tão fidalgos brasões
pela Puta dos calções,
que fiado em ser valido
fez do sangue esclarecido
tão lastimosos borrões.
Pagamos com dor interna,
que nos passos da Paixão
tão devoto é da prisão,
que quer levar a lenterna:
se entende, que a glória eterna
prendendo há de merecer,
fora melhor entender,
que o céu lhe dá mais ganhado,
não dormir-se co criado,
que desvelar-se em prender.
Pagamos vê-lo esperar,
e estar com expectativas
de ser Conde das Maldivas
por serviços de enforcar:
e como mandou tirar
um rol dos quatro maraus,
que enforcou por vaganaus,
cuidei (assim Deus me valha)
que entre os Condes da baralha
fosse ele o Conde de paus.
Porém Sua Majestade,
Qual Príncipe Soberano,
que não se indigna de humano
sem dano da dignidade:
conhecida esta verdade,
que é verdade conhecida,
fará justiça cumprida,
para que se lhe agradeça,
que o mau na própria cabeça
traga a justiça aprendida.
E porque nós de antemão
a seus favores mostremos,
quanto lhos agradecemos,
lhe agradecemos D. João:
era justo, era razão,
conforme o direito e lei,
quando o Rei dá Juiz a Grei,
outro em seu lugar dispor,
que seja o Governador
tão fidalgo como El-Rei.
Estas as novas são de Antônio Luí=
No que passa sobre um gato de algá=,
Que algália tira com colher de Itá= .
que coze e corcoja em fonte Rabi= .
Se lhe escalda ou não a serventi=
Isto tem já provado o mesmo ga=
Porque passando os rios de cuá=
O caso tocou logo a Inquisi=
Há cousa mais tremenda e mais atró=,
Que em terra, onde há tanta fartu=,
E haja que por um cu enjeite um có= ?
E que por mau gosto seja um pu= ?
Eu me benzo, e arrenego do demô=
E do pecado, que é contra a natu= .
Que aguarde Luís Ferreira de Norô=
Tão grande pespegar pelo besbê=!
Para o Puto, que aguarda tal pespê=,
E faz servir seu cu de cocó= .
Subverteu-se a cidade de Sodô=
Pelo muito, que andou de caranguê=:
A Palácio também cteio, sucé=
O mesmo, que à cidade de Gomô=.
Que desse em pescador Antônio Luí= ?
Nefando gosto tem o seu cará=,
Em não querer topar ponta de cri= .
Pois tanto se narnora do pescá=,
A cuama se vá pescar lombri=,
E em castigo de Deus morra queimá=.
No beco do cagalhão,
no de espera-me rapaz,
no de cata que farás
e em quebra-cus o acharam,
que tirando ao come-em-vão
que era esperador de cus,
lhe arrebentou o arcabuz
no beco de lava-rabos,
onde lhe cantam diabos
três ofícios de catruz.
Tomem pois exemplo aqui
o Tucano e o Ferreira,
pois lhos diz esta caveira,
aprended, flores, de mi:
mais aqui, ou mais ali
sempre os demônios são artos
sempre bichos, e lagartos,
e dar-lhe-ão sobre beijus,
a comer sempre cuscuz,
a ver se se dão por fartos.
Quem aguarda a luxúria do Tucano
Também pode esperar a do Lagarto,
Se acaso conceber, verá no parto
A substância que leva do tutano.
Estes, que se debreiam mano a mano,
Disciplinar-se-ão de quarto em quarto,
E o que de mais sustância estiver farto,
A via busque, que o negócio é cano.
Conheça a Inquisição estas verdades,
E como é certo, o que o soneto diz,
Paguem-se em vivo fogo estas maldades,
Ardendo morram já como Solis,
E como arderam já duas cidades,
Ardam Luís Ferreira, e Antônio Luís.
pois todo Alentejo andou
não me dirá, quanto achou,
que vai de Beja a Ferreira:
porque outra velha embusteira,
com profia, e com inveja,
não quer que uma légua seja,
e por palmos de cará
diz, que só um palmo achará
quem sai a mijar de Beja.
Isto a velha quer, que seja,
e do seu querer colijo,
que vai a beber do mijo,
quem sai a mijar de Beja:
porém quem saber deseja
a conclusão verdadeira,
deste caminho, ou carreira,
pelos passos do pismão
quer saber, que passos vão
por fora da Vidigueira.
Porque parvoíce fora
não ver entre boca, e centro,
que uma cousa é mijar dentro
outra cousa andar por fora:
e assim vós, minha Senhora
velha, que nesta carreira
já sois useira, e vezeira
desmenti da velha a inveja,
pois diz, que quem sai de Beja,
dá co piçalho em Ferreira.
Sal, cal, e alho
caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra
em cinza te reduzam essa porra. Amém
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.
Desta vez acabo a obra,
porque é este o quarto
tomo das ações de um Sodomita,
dos progressos de um fanchono.
Esta é a dedicatória,
e bem que preverto o modo,
a ordem preposterando
dos prólogos, os prológios.
Não vai esta na dianteira,
antes no traseiro a ponho,
por ser traseiro o Senhor,
a quem dedico os meus tomos.
A vós, meu Antônio Luís,
a vós, meu Nausau ausônio,
assinalado do naso
pela natura do rosto:
A vós, merda dos fidalgos,
a vós, escória dos Godos,
Filho do Espírito Santo,
E bisneto de um caboclo:
A vós, fanchono beato,
Sodomita com bioco,
e finíssimo rabi
sem nascerdes cristão-novo:
A vós, cabra dos colchões,
que estoqueando-lhe os lombos,
sois fisgador de lombrigas
nas alagoas do olho:
A vós, vaca sempiterna
cosida, assada, e de molho,
Boi sempre, Galinha nunca
in secula seculorum:
A vós, ó perfumador
do vosso pagem cheiroso,
para vós algália sempre,
para vós sempre mondongo:
A vós, ó enforcador,
e por testemunhas tomo
os Irmãos da Santa Casa,
que lhes carregam os ossos:
Pois no dia dos Finados,
quando desenterram mortos
também murmuram de vós
pela grã carga dos ombros:
A vós, ilustre Tucano,
mal direito, e bem giboso,
pernas de rolo de pau,
antes de o levar ao torno:
A vós: basta tanto vós,
porque este insensato Povo
vendo, que por vós vos trato,
cuidará, que sois meu moço:
A vós dedico, e consagro
os meus volumes, e tomos,
defendei-os, se quiserdes,
e se não, vai nisso pouco.
Agora saio eu a campo
por vós, meu Antônio Luís,
que já fede tanto verso,
e enfada tanto pasquim!
Que vos quer esta canalha
tropel de vilões ruins,
tanto Poeta sendeiro,
tanto trovador rocim?
Se fizestes mau governo,
que é certo, que foi ruim,
eles, que o façam pior,
que eu lhe dou das quatro mil.
Entorcastes muita gente?
mente, quem tal coisa diz:
Gabriel os enforcava,
que eu com estes olhos vi.
É verdade, que gostáveis
vós muito de vê-los ir,
sois amigo de enforcados,
ter-lhes ódio, isso fora ruim.
Cada qual gosta, o que gosta,
uns carneiro outros perdiz,
vós um quarto de enforcado,
e eu de um quarto do pernil.
Em gostos não há disputa
dai ao demo o povo vil,
que até nos gostos se mete
a ser dos gostos juiz.
O querer não tem razão,
que a vontade é mui sutil,
e assim por onde quer entra,
e talvez não quer sair.
Cada um quer, o que quer,
não há nisto, que arguir,
fez Deus as vontades livres,
prendê-las é frenesi.
Sois amigo de enforcados,
quem vo-lo pode impedir?
oxalá fôreis amigo
levar o mesmo fim.
Ora vamos a farinha,
foi pouca, cara, e ruim:
mas vós não sois sol, nem chuva,
para haver de a produzir.
Eu confesso, que houve fome,
governando vós aqui,
sois mofino, e por contágio
ficou mofino o Brasil.
Ser mofino não é culpa,
a fortuna o quer assim:
quem é mofino consigo,
cos mais há de ser feliz?
Não vos mandou governar
El-Rei farinhas aqui,
as carnes, nem os pescados,
porém a forca isso sim.
Valha o diabo a vossa alma
cabelos de colomim,
mandou-vos El-Rei acaso
desgovernar os quadris?
Mandou-vos acaso El-Rei
com as fêmeas não dormir,
senão com vosso criado,
que é bomba dos vossos rins?
No mais vos levanta falsos
todo este povo civil,
mas isto do vosso corpo
vo-lo levanta o Luís.
Mandou-vos El-Rei acaso
a Sodoma, ou ao Brasil?
Se não viveis em Judá,
quem vos meteu a Rabi?
Mandou-vos El-Rei que fosse
vosso pajem meretriz,
madrasta de vossos filhos,
como dizem por aí?
Ora ide-vos co diabo,
que ja não quero acudir
por um Tucano, um Fanchono,
um Sodoma, um vilão ruim.
Bangüê, que será de ti
em vindo o Governador,
que manda El-Rei meu Senhor
para te botar daqui?
que será de ti, maldi-
to, que assaz a ti te toca
por neto de curiboca
e porque este teu pepino
no que é vaso feminino
jamais toca, nem emboca.
Que será de ti, Bangüê,
quando o sucessor vier,
que hás de perder a mulher,
que é fêmea de cutilque?
e se teu criado é,
que o podes também levar,
não te há de sofrer o mar,
nem suas ondas sagradas,
antes por essas porradas
a porra te há de salgar.
Vá de retrato
por consoantes,
que e eu sou Timantes
de um nariz de tucano
começo a obra,
que o tempo sobra
para pintar a giba
o pêlo untado,
que de molhado
parece, que sai sempre
dos olhos baios,
que versos raios
nunca foram, senão
da sobrancelha
se me assemelha
a uma negra vassoura
com tal sacada,
que entra na escada
duas horas primeiro
longe do rosto,
pois na Sé posto
na Praça manda pôr
a guarda em ala.
Membro de olfatos,
mas tão quadrado,
que um Rei coroado
o pode ter por copa
é o tal nariz,
que por um triz
não ficou cantareira
nariz nefando,
que eu vou cortando,
e inda fica nariz,
no naso oiteiro,
tem o sendeiro,
o que boca nasceu, e é
membro do gosto
está composto
o órgão mais sutil
mas eu que intento,
se não sou vento
para poder trepar
que no horizonte
deste alto monte
foi tentar o diabo
por falar fresco
dorso burlesco,
no qual fabricaverunt
se é homem, ou fera,
se assentou, que era
um caracol, que traz
tanto se entona,
que já blasona,
que enjeitou ser canastra
quem lá subira,
para que vira,
se és Etna abrasador
sempre uma cousa,
pois onde pousa,
sempre o vêem de bastão
na bruta cinta
uma cruz pinta
a espada o pau da cruz,
para a dianteira,
que na traseira
o cu vejo açoutado
outro fracasso,
porque em tal caso
só se açouta, quem canta
que eu vi vergões?;
serão chupões,
que o bruxo do Ferreira
sigam-se embora,
porque eu por ora
não me quero embarcar
nos meus miolos
que são dous rolos
de tabaco já podre,
a mor grandeza,
por cuja empresa
tomaram tantos pés
suja figura,
na arquitetura
da popa de Nau nova
senhor Tucano,
que para o ano
vos espera a Bahia
Quando Deus redimiu da tirania
da mão do Faraó endurecido
o Povo Hebreu amado, e esclarecido.
Páscoa ficou de redenção o dia.
Páscoa de flores, dia de alegria
Àquele Povo foi tão afligido
O dia, em que por Deus foi redimido;
Ergo sois vós, Senhor, Deus da Bahia.
Pois mandado pela alta Majestade
Nos remiu de tão triste cativeiro,
Nos livrou de tão vil calamidade.
Quem pode ser senão um verdadeiro Deus,
que veio estirpar desta cidade
O Faraó do Povo Brasileiro.
Alto Príncipe, a quem a Parca bruta
Aos estragos negando-se de horrível,
Quando acredita assombro no inflexível,
Em rendimento a vossos pés tributa.
Tímida a vossa vista se reputa,
E o mostra nesta ação quase visível,
Onde em vós o pesar, sendo possível,
Reverente o rigor não executa.
Pouco faz a Bahia, se venera
Humilde, e grata a vossa presidência,
Se inda a morte convosco não é fera
Porque admirando em vós tanta excelência
Para dar-vos um golpe, astuta espera
(Por temer-vos, Senhor) a vossa ausência.
Vindes da Mina, e só trazeis a fama,
De que vosso valor fez alta empresa,
Que não consiste a glória na riqueza
No seu desprezo sim, que honra se chama.
O vosso zelo, que ambição se inflama,
Do serviço fiel de Sua Alteza
Lhe deu prudente aquela Fortaleza,
Que é padrão imortal, que vos aclama.
Quanto co'a espada, e co juízo obrastes,
Quanto na África, e Europa merecestes,
São ações, que convosco competistes.
Não vos queixeis do pouco, que alcançastes,
Pois na glória, em que a todos excedestes,
Dificultais o prêmio, ao que servistes.
Hoje é melhor ter mina, que ter fama,
Que no tesouro se acha a nobre empresa,
Porque onde se idolatra só riqueza,
A glória dos progressos nada clama.
Ambicioso e avarento mais se inflama
Pertendendo subir a nova alteza,
E fragando nos bens a fortaleza,
Quer estragar a honra, que se aclama.
Mas vós, que a acreditar-me tanto obrastes,
Fiado, no que, é certo, merecestes,
Em mérito, a que sempre competistes:
A mim me dais a glória, que alcançastes,
Que como vós em tudo me excedestes,
Té para me abonar hoje servistes.
Nos assuntos, que dais à vossa fama,
Têm as invejas mais ardente empresa,
Pois se a glória do nome é mor grandeza,
No vosso acende mais ativa a chama
A emulação, que sempre assim se inflama,
O seu incêndio exala à suma alteza,
Mas esse incêndio em rara fortaleza
Salamandra vos faz, Fênix aclama.
Quanto nas armas valeroso obrastes,
Nas invejas prudente merecestes,
Triunfando sempre nunca competistes.
Mas outra maior glória inda alcançastes;
Não há Musa, que conte, o que excedestes,
Nem grandeza, que pague, o que servistes.
Oitavas canto agora por preceito,
Sem que na oitava possa diligente
Louvar as excelências de um sujeito,
Que pode ser em tudo o melhor Lente:
Mas como em mim não pode ser perfeito
O canto, ficará menos cadente
A música de Apolo, e de Talia,
Que não há cantar bem sem melodia.
Se do tempo perfeito o meu compasso
A compasso cantara neste canto,
Não faltara à garganta agora o passo,
E em passos de garganta fora espanto:
Porém se em canto nunca da mão passo
Como posso afinar no canto tanto,
Que me atreva a cantar vossa ciência,
Sem que falte ao compasso na cadência.
Canora a voz tomara, e tão suave,
Que em passos largos, e ecos repetidos
Sonora requintasse aquela clave,
Em que fossem meus ecos esparcidos:
Porém se o vosso nome o canto grave
Eleva suspendendo os mais sentidos,
Com a voz, que formar o meu alento
Chegar posso tarnbém ao Firmamento.
Discutindo esse globo de ciências
No mapa desta esfera Americana,
Acho um todo formado de excelências
Maravilha fatal em forma humana:
De modo se une, e formam as essências
Que o natural as graças vos germana:
Mas que muito se vós no largo mundo
Sois da graça, e ciências tão fecundo.
Se emulações tiraram Luzimentos,
Que soube a natureza vincular-vos,
Apolo não perdera os pensamentos,
Temendo-se na empresa de louvar-vos:
Suspende a admiração os vãos intentos
Ao discurso, que emprende realçar-vos,
Que a Musa enfraquecida, a pena leve
Nunca diz, o que sente, no que escreve.
Deixem-se os Gregos já do seu Eliano,
Condenam a silêncio um Xenofonte,
Não louve Alexandria Herodiano,
Que na Bahia tem Timocreonte:
O qual pode ensinar Quintiliano,
Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte,
Platões, Anaximandros, e Musés,
Acusilaus, Priscianos, e a Timéus.
Nos anos climatéricos glorioso
Vosso nome será tão dilatado,
Que suba, onde o decrépito invejoso
O veja nas estrelas colocado:
Sereis novo Planeta luminoso,
E Sol em nova esfera sublimado,
Que, a quem o mundo singular aclama,
Só descansa no céu com ele a fama.
Separar vossas partes, e Louvores
Absurdo fora certo, e averiguado,
Que à grandeza dos orbes superiores
Ninguém pode pôr termo limitado:
Receba o infinito por maiores,
Quem foi por singular ao mundo dado,
Com que as partes publica deste modo,
Quem de todo admirado admira o todo.
Cesse pois em louvar-vos minha pena,
Que impossível será, que sem engano
Presuma, que fazendo esta novena
Vos possa ponderar em todo um ano:
Este novo, e felice, que hoje ordena
O Céu, lograi, Senhor, sem tanto dano,
Porque sejam em vós os mais gloriosos
Aqueles, que vos faltam de invejosos. (Gregório de Matos)
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.