A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

GREGÓRIO DE MATOS

Biografia

1623-1696

Brasil Brasil

PEQUENA BIOGRAFIA DO DR. GREGÓRIO DE MATOS E GUERRA

Gregório de Matos e Guerra, filho de fidalgo português e abastado senhor de engenho, nasceu na Cidade do Salvador, Bahia, no dia 20 de dezembro de 1623, tendo sido batizado no dia 28 do mesmo mês e ano com o nome de João; depois trocado para Gregório, como o do pai. Foi mandado para estudar em Coimbra, Portugal, ainda moço, tendo então se tornado um dos primeiros doutores brasileiros formado na famosa escola , onde formou-se Bacharel e conheceu a obra de Camões, Gôngora e Quevedo. Em Lisboa, viveu cerca de vinte anos, casou-se e foi juiz do crime e de órfãos. Tendo falecido a esposa, aceitou os cargos de Vigário-geral e de Tesoureiro mor no Arcebispado do Brasil, recém criado e retornou à Bahia, onde produziu cerca de 95% dos poemas que sobreviveram aos séculos. Aliando-se à nascente oposição ao poder colonial, faz amizade com intelectuais, políticos nativista e com senhores de engenho espoliados pelo comércio português. Em conseqüência, sua poesia nessa fase é de condenação "ao roubo, à injustiça, à tirania". Sendo a imprensa era proibida na Colônia, a poesia sai à rua e é uma festa para os marginalizados do sistema, publico para o qual GM se volta cada vez mais tornando-se um fenômeno de popularidade. Repele "o falar agongorado", "os cultos modos" e se põe a dizer coisas de estarrecer no tom das chularias, na "linguagem corriqueira", fundando, assim, a poesia brasileira. Na tentativa de cala-lo a Igreja oferece-lhe a batina. O Poeta recusa e, destituído das funções publicas, sobrevive miseravelmente da sua banca de advogado, onde a mesa de trabalho é adornada com bananas em lugar de flores.

Depois, abandona a mulher e o filho, fecha o escritório e, livre de peias, passa a viver da hospitalidade nos engenhos e nas casas de admiradores e amigos. Nessa fase, sua poesia esquece a sátira moralizante e assume os valores de uma vida libertária.

O Poder, que até então limitara-se a admoestá-lo com breves prisões e com a demissão dos cargos e funções, decide-se por punição mais severa, pois uma coisa era tolerar de um doutor de Coimbra o protesto de vate moralizador, mesmo quando atingia homens de bem, outra era, contudo, vê-lo freqüentando a ralé e os elementos da reação anticolonial. Foi então que desterraram-no para Angola de onde retornou para morrer no Brasil, em Pernambuco, no ano de 1696.

Descreve a Cidade do Salvador, "Cidade da Bahia", como era conhecida e como ainda é chamada nas cidades do Recôncavo Baiano.

 

Poesias Eternas


Crônica do Viver Baiano
Seiscentista

II - OS HOMENS BONS

1-PESSOAS MUITO PRINCIPAIS

2- SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA

3- A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA

4-AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS. A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO.

5- AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APARECIDO.

6- AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE SENDO ANTIGO HE MUYTO BELLO.

7- A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR.

8- A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA.

9- AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCASIÃO.

10-AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR

11-ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR.

12-A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS NAQUELLE TEMPO:'BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?" O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO ÀS TENTAÇÕES DIABOLICAS.

13- AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO RECOPYLADO NA FLOR DE MARACUJÁ.

14- RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO? NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS RESPOSTAS DE NOSSOS POETAS.

15- AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA COUSA MAIS QUE A PROVIDÊNCIA DIVINA.

16- NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA.

17- CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS.

18- CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E VIDA RELAXADA.

19- O DIA DO JUIZO

20- A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA.

21- A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA.

22- AO MESMO ASSUMPTO.

23- A N. SENHORA DO ROSARIO.

24- AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N. SENHORA DE MONSARRATE.

25- A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO.

26- AO GLORIOSO PORTUGUES SANTO ANTONIO.

27- AO MESMO ASSUMPTO.

28- AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR.

29-A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA.

30-SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIMO SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA, PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CRÉDITO DA VENERÁVEL RELIGIOSA. 

 

 

 

 

 

 

 

II - OS HOMENS BONS

 

Senhor, bem-vinda seja Vossa Senhoria

Eu sou aquele que os passados anos

Cantei na minha lira maldizente

Torpezas do Brasil, vícios e enganos

.
Que néscio que eu era então.
 

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 1 - PESSOAS MUITO PRINCIPAIS

 
 

... certa pessoa muito principal ...

     Manuel Pereira Rabelo, licenciado
do Céu toda a Majestade

em tão pequeno distrito.
 
 

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SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA.

 
 
 
 
 

Salve, Celeste Pombinha,

Salve, divina Beleza,

Salve, dos Anjos Princesa,

e dos céus, Salve Rainha.
 
 

Sois graça, luz, e concórdia

entre os maiores horrores,

sois guia de pecadores,

Madre de Misericórdia
 
 

Sois divina Formosura,

sois entre as sombras da morte

o mais favorável Norte,

e sois da vida Doçura
 
 

Sois a peregrina Ave,

pois minha fé vos alcança

sois pois ditosa esperança

Esperança nossa Salve
 
 

Vosso favor invocamos

como remédio mais raro,

não nos falte vosso amparo,

e vede, que a vós bradamos
 
 

Os da Pátria desterrados

viver na pátria desejam;

quereis vós, que dela sejam

deste mundo os degradados?
 
 

De Jesus tanto agrado leva

de com os homens viver,

nós somos, bem podeis ver,

os mesmos Filhos de Eva.
 
 

Humildes vos invocamos

com rogos enternecidos,

e desse amparo rendidos,

Senhora, a vós supiramos.
 
 

Se Deus nos perdoa, quando

a nossa culpa é chorada,

estamos por ser perdoada

aqui gemendo, e chorando.
 
 

Mas vós, por quem mais se vale,

Lírio do Vale, chorais,

e o vosso pranto val mais

neste de Lágrimas Vale
 
 

Já que tão piedosa sois

não tardeis com vosso rogo,

alcançai o perdão logo,

apressai-vos eia pois.
 
 

Porque desde agora possa

triunfar qualquer de nós

de inimigo tão atroz

pedi advogada nossa.
 
 

E enquanto nestes abrolhos

do mundo postos estamos,

de nós, que o caminho erramos

não tireis os vossos olhos.
 
 

Sejam sempre piedosos

para nos favorecer,

e para nos socorrer

sejam misericordiosos.
 
 

Favorecer-nos quereia,

de vossos olhos co'a guia,

gloriosa Virgem Maria

sempre eles a nós volvéi
 
 

Livrai-nos de todo erro

para que assim consigamos

graça enquanto aqui andamos

e depois deste desterro
 
 

Pois vosso Filho é a luz

e alumiar-nos quereis,

para que esta mostreis

nos amostrai a Jesus
 
 

E se como raio bruto

o fruto vemos vedado

noutro paraíso dado

veremos o bento Fruto
 
 

Em nossos corações entre

seu amor, pois é razão,

seja meu de coração,

o que foi do vosso ventre
 
 

De Jericó melhor Rosa,

puro, e cândido Jasmim,

quereis vós, que seja assim

ó clemente, ó piedosa.
 
 

Tenhamos esta alegria,

esta doçura tenhamos,

pois que tanta em vós achamos,

ó doce Virgem Maria
 
 

Pois quem mais pode, sois vós,

chegando a Deus a pedir

para melhor vos ouvir,

pedi, e rogai por nós.
 
 

Que então os favores seus

muito melhor seguramos,

pois que neles empenhamos

a Santa Madre de Deus.
 
 

Fazei-nos sempres benignos

entre deste mundo os sustos

para que sejamos justos

para que sejamos dignos
 
 

E se nos concedeis isto,

que vos pede o nosso rogo

mui dignos nos fareis logo

ser das promessas de Cristo
 
 

Seja pois, divina luz,

melhor Estrela, assim seja

para que por nós se veja

Vosso amparo. Amém Jesus
 

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A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA
 
 
 
 
 
 
 

Venho, Madre de Deus, ao Vosso monte

E reverente em vosso altar sagrado,

Vendo o Menino em berço argenteado

O sol vejo nascer desse Horizonte.
 
 

Oh quanto o verdadeiro Faetonte

Lusbel, e seu exército danado

Se irrita, de que um braço limitado

Exceda na soltura a Alcidemonte.
 
 

Quem vossa devoção não enriquece?

A virtude, Senhora. é muito rica,

E a virtude sem vós tudo empobrece.
 
 

Não me espanto, que quem vos sacrifica

Essa hóstia do altar, que vos ofrece,

Que vós o enriqueçais, se a vós a aplica.

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AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS,

A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO.
 
 
 
 
 
 
 

Entre as partes do todo a melhor parte

Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo

Se na parte do peito o quis pôr todo

O peito foi foi do todo a melhor parte.
 
 

Parta-se pois de Deus o corpo em parte,

Que a parte, em que Deus ficou o amor todo

Por mais partes, que façam deste todo

De todo fica intacta essa só parte.
 
 

O peito já foi parte entre as do todo,

Que tudo mais rasgaram parte a parte;

Hoje partem-se as partes deste todo
 
 

Sem que do peito todo rasguem parte,

Que lá quis dar por partes o amor todo,

E agora o quis dar todo nesta parte.

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AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO.
 
 
 
 
 
 
 

O todo sem a parte não é todo,

A parte sem o todo não é parte,

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga, que é parte, sendo todo.
 
 

Em todo o sacramento está Deus todo,

E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda a parte,

Em qualquer parte sempre fica o todo.
 
 

O braço de Jesus não seja parte,

Pois que feito Jesus em partes todo

Assiste cada parte em sua parte.
 
 

Não se sabendo parte deste todo,

Um braço, que lhe acharam, sendo parte,

Nos disse as partes todas deste todo.
 

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AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE

SENDO ANTIGO HE MUYTO BELLO.
 
 
 
 
 

Oh, quanta divindade, oh quanra graça,

Menino, em vosso vulto sacro, e belo

Infunde a mão de tal gentil modelo,

Inspira o Autor de tão divina traça!
 
 
 

Se o tempo aos mais vultos desengraça

Na vossa Imagem não deslustra um pêlo:

Reverente o tratou com tal desvelo,

Que o que eleva menino, velho embaça.
 
 
 

Quanto a idade usurpa de beleza

Nos que somos mortais, paga em respeito,

Venerações, que atrai a antiguidade.
 
 
 

Mas de vossa escultura a gentileza

Tem trocado do tempo o edaz efeito

Venera-se a beleza, ama-se a idade.

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A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO

E SUSPIROS DE AMOR.
 
 
 
 
 
 

Ofendi-vos, Meu Deus, bem  é verdade,

É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,

Delinqüido vos tenho, e ofendido,

Ofendido vos tem minha maldade.
 
 
 

Maldade, que encaminha à vaidade,

Vaidade, que todo me há vencido;

Vencido quero ver-me, e arrependido,

Arrependido a tanta enormidade.
 
 
 

Arrependido estou de coração,

De coração vos busco, dai-me os braços,

Abraços, que me rendem vossa luz.
 
 
 

Luz, que claro me mostra a salvação,

A salvação pertendo em tais abraços,

Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.
 

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A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA

ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA
 
 
 
 
 

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,

Em cuja lei protesto viver,

Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme, e inteiro.
 
 
 

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minh vida anoitecer,

É, meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai manso Cordeiro.
 
 
 

Mui grande é vosso amor, e meu delito,

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.
 
 
 

Esta razão me obriga a confiar,

Que por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

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AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO.
 
 
 
 
 

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa piedade me despido,

Porque quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.
 
 
 

Se basta a vos irar tanto um pecado,

A abrandar-nos sobeja um só gemido,

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.
 
 
 

Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal, e prazer tão repentino

vos deu, como afirmais na Sacra História:
 
 
 

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada

Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

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 AO SANCTISSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR.
 
 
 
 
 

Tremendo chego, meu Deus

Ante vossa divindade,

que a fé é muito animosa,

mas a culpa mui cobarde.

À vossa mesa divina

como poderei chegar-me,

se é triaga da virtude

e veneno da maldade?

Como comerei de um pão,

que me dais, porque me salve?

um pão, que a todos dá vida,

e a mim temo, que me mate.

Como não hei de ter medo

de um pão, que tão formidável

vendo, que estais todo em tudo,

e estais todo em qualquer parte?

Quanto a que o sangue vos beba,

isso não, e perdoai-me:

como quem tanto vos ama,

há de beber-vos o sangue?

Beber o sangue do amigo

é sinal de inimizade;

pois como quereis, que o beba,

para confirmarmos pazes?

Senhor, eu não vos entendo;

vossos preceitos são graves,

vossos juízos são fundos,

vossa idéia inescrutável.

Eu confuso neste caso

entre tais perplexidades

de salvar-me, ou de perder-me,

só sei, que importa salvar-me.

Oh se me déreis tal graça,

que tenho culpas a mares,

me virá salvar na tábua

de auxílios tão eficazes!

E pois já à mesa cheguei,

onde  é força alimentar-me

deste manjar, de que os Anjos

fazem seus prórios manjares:

Os Anjos, meu Deus, vos louvem,

que os vossos arcanos sabem,

e os Santos todos da glória,

que, o que vos devem, vos paguem.

Louve-vos minha rudeza,

por mais que sois inefável,

porque se os brutos vos louvam,

será a rudeza bastante.

Todos os brutos vos louvam,

troncos, penhas, montes, vales,

e pois vos louva o sensível,

louve-vos o vegetável.

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ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR.
 
 
 
 
 

Meu amado Redentor,

Jesu Cristo soberano

Divino Homem, Deus Humano,

da terra, Deus criador:

por seres, quem sois, Senhor,

e porque muito vos quero,

me pesa com rigor fero

de vos haver ofendido,

do que agora arrependido,

meu Deus, o perdão espero.
 
 
 

Bem sei, meu Pai soberano,

que na obstinação sobejo

corri sem temor, nem pejo

pelos caminhos do engano:

bem sei também, que o meu dano

muito vos tem agravado,

porém venho confiado

em vossa graça, e amor,

que também sei, é maior,

Senhor, do que meu pecado.
 
 
 

Bem não vos amo, confesso,

várias juras cometi,

missa inteira nunca ouvi,

a meus Pais não obedeço:

matar alguns apeteço,

luxurioso pequei,

bens do próximo furtei,

falsos levantei às claras,

desejei mulheres raras,

cousas de outrem cobicei.
 
 
 

Para lavar culpas tantas,

e ofensas, Senhor,tão feias

são fortes de graça cheias

essas chagas sacrossantas:

sobre mim venham as santas

correntes do vosso lado;

para que fique lavado,

e limpo nessas correntes,

comunica-me as enchentes

da graça, meu Deus amado.
 
 
 

Assim, meu Pai, há de ser,

e proponho, meu Senhor,

com vossa graça, e amor

nunca mais vos ofender:

prometo permanecer

em vosso amor firmemente,

para que mais nunca intente

ofensas contra meu Deus,

a quem os sentidos meus

ofereço humildemente.
 
 
 

Humilhado desta sorte,

meu Deus do meu coração,

vos peço ansioso o perdão

por vossa paixão, e morte:

à minha alma em ânsia forte

perdão vossas chagas dêem,

e com o perdão também

espero o prêmio dos Céus,

não pelos méritos meus,

mas do vosso sangue: amém.
 

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A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS

NAQUELLE TEMPO:'BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS

MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?"

O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO

ÀS TENTAÇÕES DIABOLICAS.

 
 
 
MOTE
                                  
 

Meu Deus, que será de mim?
Bangüê, que será de ti?
 
 

Alma                     Se o descuido do futuro,

                            e a lembrança do presente

                            é em mim tão continente,

                            como do mundo murmuro?

                            Será, porque não procuro

                            temer do princípio o fim?

                            Será, porque sigo assim

                            cegamente o meu pecado?

                            mas se me vir condenado,

                            Meu Deus, que será de mim?
 
 

Demônio               Se não segues meus enganos,

                            e meus deleites não segues,

                            temo, que nunca sossegues

                            no florido dos teus anos:

                            vê, como vivem ufanos

                            os descuidados de si;

                            canta, baila, folga, e ri,

                            pois os que não se alegraram.

                            dous infernos militaram.

                            Bangüê, que será de ti?
 
 

Alma                    Se para o céu me criastes,

                            Meu Deus, à imagem vossa,

                            como é possível, que possa

                            fugir-vos, pois me buscastes:

                            e se para mim tratastes

                            o melhor remédio, e fim,

                            eu como ingrato Caim

                            deste bem tão esquecido

                            tenho-vos tão ofendido:

                            Meu Deus, que será de mim?
 
 

Demônio                Todo o cantar alivia,

                             e todo o folgar alegra

                             toda a branca, parda e negra

                             tem sua hora de folia:

                             só tu na melancolia

                             tens alívio? canta aqui,

                             e torna a cantar ali,

                             que desse modo o praticam,

                             os que alegres pronosticam,

                             Bangüê, que será de ti?
 
 

Alma                      Eu para vós ofensor,

                              vós para mim ofendido?

                              eu já de vós esquecido,

                              e vós de mim redentor?

                              ai como sinto, Senhor,

                              de tão mau princípio o fim:

                              se não me valeis assim,

                              como àquele, que na cruz

                              feristes com vossa luz,

                              Meu Deus, que será de mim?
 
 

Demônio                 Como assim na flor dos anos

                              colhes o fruto amargoso?

                              não vês, que todo o penoso

                              é causa de muitos danos?

                              deixa, deixa desenganos,

                              segue os deleites, que aqui

                              te ofereço: porque ali

                              os mais, que cantando vão,

                              dizem na triste canção,

                              Bangüê que será de ti?
 
 

Alma                       Quem vos ofendeu, Senhor?

                               Uma criatura vossa?

                               como é possível, que eu possa

                               ofender meu Criador?

                               triste de mim pecador,

                               se a glória, que dais sem fim

                               perdida num serafim

                               se perder em mim também!

                               Se eu perder tamanho bem,

                               Meu Deus, que será de mim?
 
 

Demônio                  Se a tua culpa merece

                               do teu Deus a esquivança

                               a folga no mundo, e descansa,

                               que o arrepender aborrece:

                               se o pecado te entristece,

                               como já em outros vi,

                               te prometo desde aqui,

                               que os mais da tua facção,

                               e tu no inferno dirão,

                               Bangüê, que será de ti?
 

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AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO

RECOPILADO NA FLOR DO MARACUJÁ.
 
 
 
 
 

Divina flor, se en essa pompa vana

Los martirios ostentas reverente,

Corona con los clavos a tu frente,

Pues brillas con las llagas tan losana.
 
 
 

Venera essa corona altiva, y ufana,

Y en tus garbos te ostenta floreciente:

Los clavos enarbola eternamente,

Pues Dios com sus heridas se te hermana.
 
 
 

Si flor nasciste para mas pomposa

Desvanecer floridos crescimientos

Ya, flor, te reconocen mas dichosa.
 
 
 

Que el cielo te ha gravado en dos tormentos

En clavos la corona mas gloriosa,

Y en llagas sublimados luzimientos.

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RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO?

NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR

DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS

RESPOSTAS DO NOSSO POETA.
 
 
 
 
 

Ya rendida, y prostrada mas que vana

A vuestros pies mi Musa reverente

Por coronar com ellos a su frente

Del suelo sube al cielo mas losana.
 
 
 

Por convencido ostenta gloria ufana,

Que tiene por corona floreciente

El quedar-se rendida eternamente,

Porque humilhada al triumpho se germana.
 
 
 

Rendimiento fiel haze pomposa,

Que en beber los castalios crescimientos

Se adquire la ventura mas dichosa.
 
 
 

A que Phenix nos causa mil tormentos

Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa

Por ser rendida a vuestro luzimiento.
 

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AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA

COUSA MAIS QUE A PROVIDENCIA DIVINA.
 
 
 

Isto, que ouço chamar por todo o mundo

Fortuna, de uns cruel, d'outros impia,

É no rigor da boa teologia

Providência de Deus alto, e profundo.
 
 
 

Vai-se com temporal a Nau ao fundo

carregada de rica mercancia,

Queixa-se da Fortuna, que a envia,

E eu sei, que a submergiu Deus iracundo.
 
 
 

Mas se faz tudo a alta Providência

De Deus, como reparte justamente

À culpa bens, e males à inocência?
 
 
 

Não sou tão perspicaz, nem tão ciente,

Que explique arcanos d'alta Inteligência,

Só vos lembro, que é Deus o providente.

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NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO

DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA.
 
 
 
 
 

Na oração, que desaterra....................................................aterra

Quer Deus, que, a quem está o cuidado...............................dado

Pregue, que a vida é emprestado.........................................estado

Mistérios mil, que desenterra...............................................enterra.
 
 
 

Quem não cuida de si, que é terra........................................erra

Que o alto Rei por afamado..................................................amado,

E quem lhe assiste ao desvelado .........................................lado

Da morte ao ar não desaferra................................................aferra.
 
 
 

Quem do mundo a mortal loucura..........................................cura,

A vontade de Deus sagrada..................................................agrada,

Firmar-lhe a vida em atadura.................................................dura.
 
 
 

Ó voz zelosa, que dobrada....................................................brada,

Já sei, que a flor da formosura...............................................usura

Será no fim desta jornada......................................................nada.

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CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS.
 
 
 
 
 

Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,

Te lembra hoje Deus por sua Igreja,

De pó te faz espelho, em que se veja

A vil matéria, de que quis formar-te.
 
 
 

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,

E como o teu baixel sempre fraqueja

Nos mares da vaidade, onde peleja,

Te põe à vista a terra, onde salvar-te.
 
 
 

Alerta, alerta pois, que o vento berra,

E se assopra a vaidade, e incha o pano,

Na proa a terra tens, amaina, e ferra.
 
 
 

Todo o lenho mortal, baixel humano

Se busca a salvação, tome hoje terra,

Que a terra de hoje é porto soberano.

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CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA

CONTA, E VIDA RELAXADA.
 
 
 
 
 

Ai de mim! Se neste intento,

e costume de pecar

a morte me embaraçar

o salvar-me, como intento?

que mau caminho freqüento

para tão estreita conta;

oh que pena, e oh que afronta

será, quando ouvir dizer:

vai, maldito, a padecer,

onde Lucifer te aponta.
 
 
 

Valha-me Deus, que será

desta minha triste vida,

que assim mal logro perdida,

onde, Senhor, parará?

que conta se me fará

lá no fim, onde se apura

o mal, que sempre em mim dura,

o bem, que nunca abracei,

os gozos, que desprezei,

por uma eterna amargura.
 
 
 

Que desculpa posso dar,

quando ao tremendo juízo

for levado de improviso,

e o demônio me acusar?

Como me hei de desculpar

sem remédio, e sem ventura,

se for para aonde dura

o tormento eternamente,

ao que morre impenitente

sem confissão, nem fé pura.
 
 
 

Nome tenho de cristão,

e vivo brutualmente,

comunico a tanta gente

sem ter, quem me dê a mão:

Deus me chama co perdão

por auxílios, e conselhos,

eu ponho-me de joelhos

e mostro-me arrependido;

mas como tudo é fingido,

não me valem aparelhos.
 
 
 

Sempre que vou confessar-me,

digo, que deixo o pecado;

porém torno ao mau estado,

em que é certo o condenar-me:

mas lá está quem há de dar-me

o pago do proceder:

pagarei num vivo arder

de tormentos repetidos

sacrilégios cometidos

contra quem me deu o ser.

Mas se tenho tempo agora,

e Deus me quer perdoar,

que lhe hei de mais esperar,

para quando? ou em qual hora?

que será, quando traidora

a morte me acometer,

e então lugar não tiver

de deixar a ocasião,

na extrema condenação

me hei de vir a subverter.

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AO DIA DO JUIZO.
 
 
 

O alegre do dia entristecido,

O silêncio da noite perturbado

O resplandor do sol todo eclipsado,

E o luzente da lua desmentido!
 
 
 

Rompa todo o criado em um gemido,

Que é de ti mundo? onde tens parado?

Se tudo neste instante está acabado,

Tanto importa o não ser, como haver sido.
 
 
 

Soa a trombeta da maior altura,

A que a vivos, e mortos traz o aviso

Da desventura de uns, d'outros ventura.
 
 
 

Acabe o mundo, porque é já preciso,

Erga-se o morto, deixe a sepultura,

Porque é chegado o dia do juízo.
 

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A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA.
 
 
 
 
 

Para Mãe, para Esposa, Templo, e Filha

Decretou a Santíssima Trindade

Lá da sua profunda eternidade

A Maria, a quem fez com maravilha.
 
 
 

E como esta na graça tanto brilha,

No cristal de tão pura claridade

A segunda Pessoa humanidade

Pela culpa de Adão tomar se humilha
 
 
 

Para que foi aceita a tal Menina?

Para emblema do Amor, obra piedosa

Do Padre, Filho, e Pomba essência trina:
 
 
 

É logo conseqüência esta forçosa,

Que Estrela, que fez Deus tão cristalina

Nem por sombras da sombra a mancha goza.
 

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A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA
 
 
 
 

Como na cova tenebrosa, e escura,

A quem abriu o Original pecado,

Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;

Podíeis vós cair, ó virgem pura?
 
 
 

Nem Deus, que o bem das almas só procura,

De todo vendo o mundo arruinado,

Permitira a desgraça haver entrado,

Donde havia sair nova ventura.
 
 
 

Nasce a rosa de espinhos coroada

Mas se é pelos espinhos assistida,

Não é pelos espinhos magoada.
 
 
 

Bela Rosa, ó virgem esclarecida!

Se entre a culpa se vê, fostes criada,

Pela culpa não fosse ofendida.
 

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AO MESMO ASSUMPTO.
 
 
 
 
 

Antes de ser fabricada

do mundo a máquina digna,

já lá na mente divina,

Senhora, estáveis formada:

com que sendo vós criada

então, e depois nascida

(como é cousa bem sabida)

não podíeis, (se esta sois)

na culpa, que foi depois,

nascer, Virgem, comprendida
 
 
 

Entre os nascidos só vós

por privilégio na vida

fostes, Senhora, nascida

isenta da culpa atroz:

mas se Deus (sabemos nós)

que pode tudo, o que quer,

e vos chegou a eleger

para Mãe sua tão alta,

impureza, mancha, ou falta

nunca em vós podia haver.
 
 
 

Louvem-vos os serafins,

que nessa Glória vos vêem,

e todo o mundo também

por todos os fins dos fins:

Potestades, querubins,

e enfim toda a criatura,

que em louvar-vos mais se apura,

confessem, como é razão,

que foi vossa conceição

sacra, rara, limpa, e pura.
 
 
 

0 Céu para coroar-vos

estrelas vos oferece,

o sol de luzes vos tece

a gala, com que trajar-vos:

a lua para calçar-vos

dedica o seu arrebol,

e consagra o seu farol,

porque veja o mundo todo,

que brilham mais deste modo

Céu. estrelas, lua, e sol.

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A N. SENHORA DO ROSARIO.
 
 
 
 
 

A Rainha celestial,

venceu o seu contrário,

nosso pobre cabedal

hoje do Santo Rosário

lhe faz um arco triunfal.
 
 
 

O arco é de paz, e guerra,

com que sempre há de triunfar,

e tal virtude em si encerra,

que por ele hei de chegar

ao alto céu desde a terra.
 
 
 

Este é o arco dos céus,

que sobre as nuvens se vê,

dado para nós por Deus,

por cujo meio com fé

teremos grandes troféus.
 
 
 

Porque o rosário rezado

quando a alma em graça está,

é sinal, que Deus tem dado,

de que não me afogará

no dilúvio do pecado.
 
 
 

Este é o arco triunfal,

por onde a alma gloriosa

livre do corpo mortal

vai aos céus a ser esposa

do Príncipe celestial.
 
 
 

Tem o homem seu contrário

dentro em sua mesma terra,

que lhe vence de Ordinário,

e a Virgem por esta guerra

dá-lhes as contas do Rosário.
 
 
 

Esta é boa artilharia

para o justo, e pecador,

tirai a alma em pontaria

co fogo do vosso amor,

e co'as balas de Maria.
 
 
 

Toda alma, que fizer conta

de si, e sua salvação,

ouça, o que a Virgem lhe aponta:

suba, que em sua oração

será degrau cada conta.

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AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N. SENHORA DE MONSARRATE.
 
 
 
 

Temor de um dano, de uma oferta indício

Pronta em divina Origem desatado,

Que tendo por horrível ao pecado

Sois a Deus agradável sacrifício.
 
 
 

Esperança da fé, terror do vício,

Enigma em dois assuntos decifrado,

Que pareceis castigo ameaçado

E sois executado benefício.
 
 
 

Duas cousas qualquer delas possível

Tendes, ó pranto, para ser forçoso,

e envolveis o prodígio para crível.
 
 
 

Tendo um motivo ingrato, outro piedoso,

Um na minha dureza aborrecível,

Outro no vosso amparo generoso.

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A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO.
 
 
 
 
 

Ó magno serafim, que a Deus voaste

Com asas de humildade, e paciência,

E absorto já nessa divina essência

Logras o eterno bem, a que aspiraste:
 
 
 

Pois o caminho aberto nos deixaste,

Para alcançar de Deus também clemência

Na ordem singular de penitência

Destes Filhos Terceiros, que criaste.
 
 
 

A Filhos, como Pai, olha queridos,

E intercede por nós, Francisco Santo,

Para que te sigamos, e imitemos.
 
 
 

E assim desse teu hábito vestidos

Na terra blasonemos de bem tanto,

E depois para o Céu juntos voemos.

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AO GLORIOSO PORTUGUEZ SANTO ANTONIO
 
 

MOTE                                                                               
 

 
Deus, que é vosso amigo d'alma,
na palma se vos vem pôr,
para mostrar, que de amor
só vós levastes a palma.
 
 
 

Quando o livrinho perdestes

lá na mata do botão,

Antônio, grande aflição

dentro em vossa alma tivestes:

e se da dor, que vencestes

levastes vitória, e palma,

bem se colhe, que em tal calma

tal dor, e tal agonia

só aliviar-vos podia

Deus, que é vosso amigo d'alma.
 
 
 

Fez-vos Deus nessa ocasião

visita bem lisonjeira,

e por não puxar cadeira,

se sentou na vossa mão:

foi larga a conversação,

que o assunto foi de amor,

e porque um Frade menor,

(sendo menor que o Menino)

era de tal palma digno,

Na palma se vos vem pôr.
 
 
 

Convosco o Menino então

um jogo, Antônio, jogou:

ele a palma vos ganhou,

mas vós ganhastes por mão:

não jogou entonces não

com o seu Servo o Senhor

para mostrar, que o favor

nasceu da ociosidade,

senão por mais majestade

Para mostrar, que de amor.
 
 
 

Mostrou, que em quererdes bem

a um Deus, a quem imitastes,

não só premissas pagastes,

mas os dízimos também:

e por deixar em refém

deste amor a mais pura alma,

pois todas deixais em calma,

cantam os coros celestes,

que porque a palma a Deus destes

Só vos levastes a palma.

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AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

MOTE

                                                
 

Qual dos dois terá mor gosto,

Antônio em braços com Cristo,

ou Cristo em seus braços posto?  
 
 

Gosta Cristo de mostrar

que é de Antônio amante fino,

por isso se faz menino,

para em seus braços estar:

mas quem poderá falar,

quando está de rosto a rosto

Cristo com Antônio posto,

Antônio com Cristo em braços

em tão amorosos laços

Qual dos dois terá mor gosto?
 
 
 

Mas sendo Cristo o que vem

para em seus braços se ver,

com razão se há de dizer,

que Cristo mor gosto tem:

mas se ainda houver alguém,

que duvide assim ser isto,

em seus braços bem se há visto

Cristo, porque quis mostrar,

que somente pode estar

Antônio em braços com Cristo.
 
 
 

Foi tão raro, e peregrino

este Santo Lusitano,

que mereceu, sendo humano,

adorações de divino:

finalmente foi tão digno

de excelências, que em seu rosto

realça de Cristo o gosto:

pois onde Cristo estiver,

logo Antônio se há de ver,

Ou Cristo em seus braços posto.

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AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR.

 
 
 

MOTE

Bêbado está Santo Antônio

 
 
 

Entrou um bêbado um dia

pelo templo sacrossanto

do nosso Português Santo,

e para o Santo investia:

a gente, que ali assistia,

cuidando, tinha o demônio,

lhe acudiu a tempo idôneo,

gritando-lhe todos, tá,

tem mão, olha, que acolá,

Bêbado, está Santo Antônio.

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A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA.
 
 
 
 
 

Na conceição o sangue esclarecido,

No nascimento a graça, consumada,

Na vida a perfeição mais regulada,

E na morte o triunfo mais devido.
 
 
 

O sangue mal na Europa competido,

A graça nas ações sempre admirada,

A profissão no breve confirmada,

O triunfo no eterno merecido.
 
 
 

Tudo se vincula ao ser profundo

De Estanislau, que a glória do seu norte

Foi ser portento ao céu, prodígio ao mundo.
 
 
 

Por isso teve a fama de tal sorte,

Que o fazem nela unidos sem segundo

Conceição, Nascimento, Vida, e Morte.

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SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIMO

SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA,

PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CREDITO

DA VENERAVEL RELIGIOSA.
 
 
MOTE
 
 

Soberano Rei da Glória,
que nesse doce sustento
sendo todo entendimento
quisestes ficar memória.  
 
 

Numa cruz vos exaltastes,

meu Deus, para padecer,

e nas ânsias de morrer

ao Eterno Pai clamastes:

sangue com água brotastes

do lado para memória,

e como consta da História,

quisestes morrer constante

por serdes tão fino amante,

Soberano Rei da Glória.
 
 
 

Se na glória, em que reinais,

amante vos concedeis

bem mostrais, no que fazeis,

que extremosamente amais:

mas se em pão vos disfarçais,

dando-vos por alimento,

pergunta o entendimento,

onde assistis com mais luz?

mas direis, doce Jesus

Que nesse doce sustento.
 
 
 

Sabendo enfim, que morríeis,

amante vos entregastes,

e no Horto, quando orastes

ânsias de morte sentíeis:

já, divino Amor, sabíeis,

da vossa morte o tormento,

e já desde o nascimento

todo o saber comprendestes,

porque, Senhor, já nascestes

Sendo todo entendimento.
 
 
 

Vivas lembranças deixastes

da vossa morte, Senhor,

e para maior amor

mesmo em lembrança ficastes:

numa ceia apresentastes

vosso corpo em tanta glória,

que para contar a história

da vossa morte, e tormento,

no divino Sacramento

Quisestes ficar memória.

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MOTE
 
Sol, que estando abreviado
nesse cândido Oriente,
abonais o mais ardente,
ostentando o mais nevado.  
 

Sendo Sol, que dominais

dos céus a máquina fera,

em tão limitada esfera,

como esse Sol ostentais?

creio, que a entender nos dais,

meu Redentor extremado,

que em lugar tão limitado

só o amor caber se atreve

como num círculo breve

Sol, que estando abreviado
 
 
 

Bem nesse lugar tão breve

vemos com tanto arrebol

abrasar-se tanto sol

nos epiciclos da neve:

muito a vosso amor se deve,

pois como Sol no nascente

pelo cristal transparente

divinamente ilustrais,

e todo vos abrasais

Nesse cândido Oriente.
 
 
 

Todo neve na brancura,

todo sol, no que brilhais,

como sol nos abrasais,

sendo neve na frescura:

mas tanto o divino apura

no cristal o transparente,

que ali fazendo patente

o quanto estais empenhado,

de fino amor abrasado

Abonais o mais ardente.
 
 
 

Nascem desempenhos tais

desses divinos primores,

que em requintados amores

todo a nós nos dedicais:

mas bem que vos empenhais,

vejo-vos mui bem trajado

nessa gala de encarnado,

que tomastes de Maria,

agora por bizarria

Ostentando o mais nevado.

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MOTE

                        
Emblema de amor mais puro,
enigna de amor mais raro,
que sendo à vista tão claro,
sois também à vista escuro.

 
 
 

Depois de crucificado

vos admirei, bom Senhor,

fino retrato do amor,

quando vos vi retratado:

então de um iluminado

sanguinosamente escuro,

se bem que estou mui seguro

das finezas do Calvário,

vos contemplei no sudário

Emblema de amor mais puro
 
 
 

E suposto o pensamento

se pasma do escuro enigma,

mais o mistério sublima

vendo-vos no Sacramento:

ali meu entendimento

conhecendo-vos tão claro,

melhor esforça o reparo

de que estais tão luzido,

quando melhor comprendido

Enigma de amor mais raro
 
 
 

Que no Sacramento estais

todo, e toda a divindade,

conheço com realidade,

suposto que o disfarçais:

para que vos ocultais

nesse mistério tão raro,

se a maravilha reparo,

penetrando-vos atento,

mais claroao entendimento,

Que sendo à vista tão claro?
 
 
 
 

Que se de neve coberto

fica o divino admirado,

bem se pode um disfarçado

conhecer melhor ao perto:

porém vós andais tão certo,

e tanto em recatos puro,

que se ver-vos me asseguro

nesse disfarce, em que andais,

inda que patente estais,

Sois também à vista escuro.

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MOTE

 
Agora que entre candores
a vosso amor dais a palma,
escutai, Senhor, uma alma,
que por vós morre de amores.  
 
 

Todo amante, e todo digno

vos veio estar neste trono,

prestando ao amor de abono

quilates do ardor mais fino:

porém, Senhor, se contino

abrasado estais de amores,

entre tantos resplandores,

que por fineza ocultais,

vede, que nos abrasais

Agora, que entre candores.
 
 
 
 

De amor tão qualificado

digo, ó cordeiro bendito,

que vos aclame infinito

tanto espírito elevado:

que eu vos não louvo ajustado,

bem que supra afetos d'alma,

pois meu amor nesta calma,

sendo do vosso vencido,

reconheço, que subido

A vosso amor dais a palma.
 
 
 
 

Mas por amor tão subido

ouvi, como tenro amante,

este pecador constante,

que se chega arrependido:

seja de vós admitido

o pranto, em que se desalma

para crédito da palma,

que dais a vossos amores,

dos humildes pecadores

Escutai, Senhor, uma alma.
 
 
 
 

Ouvi desta alma humilhada,

Senhor, um fraco conceito,

e é, que entreis em meu peito

a fazer vossa morada:

achareis de boa entrada

tormentos, ânsias, e dores,

que deram os malfeitores

em toda a vossa paixão,

e vereis um coração,

Que por vós morre de amores.

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MOTE

Escutai vossos efeitos
em grosseiras humildades
que para vós as verdades
têm mais valor, que os conceitos.

 
 
 

Já sei, meu Senhor, que vivo

depois que em meu peito entrastes,

porque logo me deixastes

ardendo em um fogo ativo:

agora tenho motivo

para melhorar conceitos,

quando dos vossos respeitos

palpita meu peito o ardor,

e para ver vosso amor

Escutai vossos efeitos
 
 
 

Mas se o infinito ardor

pode atalhar, quanto diga,

sempre o meu termo periga

nas eloqüências de amor:

cale-se a língua melhor

em tantas dificuldades,

vos intenta ponderar,

mil erros lhe haveis de achar

Em grosseiras humildades.
 
 
 
 

Quem, Senhor, na confissão

andara tão acertado,

que do mais leve pecado

soubera ter contrição:

que de todo o coração

com assaz de realidades

sentira essas propriedades

confessando, o que mandais,

pois sei, que não quereis mais

Que para vós as verdades.
 
 
 
 

Bem advertido, Senhor,

estou, que sois lince vós,

e que penetrais em nós

os movimentos de amor:

tanto conheceis a dor,

que temos em nossos peitos,

que sendo de amor efeitos

os verdadeiros sinais,

convosco verdades tais

Têm mais valor, que os conceitos.

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MOTE
 

Exercite os mais subidos,
quem busca humanos agrados,
que sempre são levantados,
os que são de vós ouvidos.

 
 
 

Oh quem tivera empregados

em vós, meu Amor divino,

cuidados, que de contino

se multiplicam cuidados:

fazei, que a vós levantados

se acreditem de luzidos

pensamentos, que abatidos

seguem do mundo os enganos,

e que deixando os humanos,

Exercite os mais subidos.
 
 
 

Quem conquistando, Senhor,

vosso amor, perdera a vida,

porque a dá por bem perdida

quem a perde em vosso amor!

Se eu, terníssimo Pastor,

acudira a vossos brados,

então sim, que os meus cuidados

coroara de alta dita,

já que fino se acredita

Quem busca humanos agrados.
 
 
 

Porque aqueles, que vos amam,

e em tais delícias se enlevam,

o prêmio consigo levam,

e filhos vossos se aclamam:

que como no amor se inflamam,

os que são vossos amados,

sendo já purificados

por filhos do vosso amor,

quem há de negar, Senhor,

Que sempre são levantados?
 
 
 

Quem de contino a bradar

por vós no maior rigor

nas enchentes desse amor

não acha de graça um mar?

quero com ânsias mostrar

a dor, a pena, os gemidos;

pois sendo a vós repetidos,

serão de vós bem lembrados,

que são bem-aventurados

Os que são de vós ouvidos.

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MOTE
 
 

Ai Senhor, quem alcançara
um bem tão alto, e divino,
que de meus ais o contino
a tais ouvidos chegara!
 

Ai meu Deus, quem merecera

trazer-vos tão dentro d'alma,

que abrasado em viva calma

do vosso amor falecera!

Ai Senhor, quem padecera

por vós, e só vos amara!

ai quem por vós desprezara

tanta enganosa ruína,

e vossa graça divina

Ai Senhor, quem alcançara.
 
 
 

Ai quem fora tão ditoso,

que soubera bem amar-vos,

e na ação de conquistar-vos

rejeitara o mais custoso!

quem, Senhor, tão sequioso

todo amante, e todo fino

elevara o seu destino

a beber da fonte clara,

que desta sorte lograra,

Um bem tão alto, e divino.
 
 
 

Quem disposto a padecer

por vós buscara os retiros.

onde com ais, e suspiros

soubera por vós morrer!

quem sabendo comprender

desse vosso amor o fino

se elevara peregrino

por um amor de tal porte,

que me dera a melhor sorte,

Que de meus ais o contino!
 
 
 

Só então fora feliz,

e fora então venturoso,

se conhecera ditoso,

que meus suspiros ouvis:

se minha dor admitis,

ditoso então me chamara;

oh se de uma dor tão rara

ouvísseis um só gernido,

e se um ai enternecido

A tais ouvidos chegara!         

topo

                                                                             
 

MOTE

Porém justamente espera
cada qual chegar-vos logo,
porque a suspiros de fogo
nunca nos negais esfera.  
 
 

Esta alma, meu Redentor,

que vos busca peregrina,

por vossa grasa divina

suspira em contlnua dor:

diz, e protesta, Senhor,

que se mil vidas tivera,

todas por vós as perdera,

e não só não se embaraça

no pedir da vossa graça,

Porém justamente espera.
 
 
 

Espera, e não estranheis

o confiar de um preverso,

que pertende já converso,

que a todos, Senhor, salveis:

peço-vos, que nos livreis

desse dilúvio de fogo;

ouvi por todos meu rogo,

inda que vos não compete,

que todos juntos, promete

Cada qual chegar-vos logo.
 
 
 

Porque se abrasado o peito

vosso amor está chamando,

não é muito, que chorando

seja cada qual desfeito:

bem posso formar conceito

desta causa, Senhor, logo,

pois vós ouvistes meu rogo,

e atendeis à minha mágoa,

porque vós venceis com água

Porque a suspiros de fogo.
 
 
 

Arde meu peito em calor,

se bem estou anelando,

quando me estou abrasando

em tanto fogo de amor:

se se realça o ardor,

que um peito amante verbera

quem o favor não espera

de tanto carinho ao rogo,

se a chamas de ativo fogo

Nunca vos negais esfera?                

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MOTE
 

Ai meu bem! ai meu Esposo!
ai Senhor Sacramentado!
que mal pode o disfarçado
ocultar o poderoso.

 
 
 

Ai meu Deus, que já não sei

vendo, que vos ausentais,

dizer, como me deixais

neste abismo, em que fiquei

ai Senhor! e que farei

para alcançar venturoso,

o que por menos ditoso

perdi, ou talvez de indigno:

ai meu Redentor divino!
 
 
 
 

Ai meu bem! ai meu Esposo

Ai Senhor, que me deixais

nesta dura soledade

morto na realidade,

bem que vivo me vejais:

mistérios de amor guardais,

porque estais inda encerrado

em dar-me a vida empenhado,

e do vosso amor a palma:

ai amante da minha alma!

Ai Senhor Sacramentado!
 
 
 
 

Se nos disfarces metido

roubar as almas quereis,

que importa, vos disfarceis,

ficando à vista o vestido?

mas de que (já conhecido

pelo vestido encarnado)

vos importa o rebuçado:

pois conhecido o poder,

tanta luz escurecer

Que mal pode o disfarçado.
 
 
 
 

Diáfano, e transparente

esse cristal puro, e fino

com resguardar o divino

declara o onipotente:

tanto nele permanente

está sempre o majestoso,

que então brilha mais lustroso

pelas veias do cristal,

e oculta instrumento tal

Ocultar o poderoso.

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MOTE

Ai que bem se deixa ver
nessa Hóstia, Rei Supremo,
que quanto é maior o extremo,
tanto é maior o poder.

 
 
 

Cuidei que não permitisse

vosso poder sublimado,

que estando assim disfarçado,

tão claramente vos visse:

mas porque bem arguísse,

qual seja o vosso poder,

breve cheguei a colher

pelo cristal transparente,

o que em vós como acidente

Ai que bem se deixa ver!
 
 
 

Bendito seja, e louvado,

pelo que tem de amoroso,

um Deus, que é tão poderoso,

um Senhor tão sublimado:

deixar de ser exaltado

poder tão grande, não temo,

pois se vê de extremo a extremo,

que a grandeza, que se sabe

cabendo em vós, toda cabe

Nessa Hóstia, Rei Supremo.
 
 
 

Exaltada a Majestade

seja de um Rei tão divino,

e louvada de contino

tão suprema divindade:

porque, Senhor, na verdade

dessas profundezas temo,

quando a razão, Rei Supremo,

responde à minha rudeza

(sobre o subir da grandeza)

Que quanto é maior o extremo.
 
 
 
 

E colhida a admiração

no Sacramento está visto

quando Pão, ser todo Cristo

quando Cristo, todo Pão

unido na Encarnação

ao divino e humano ser

e sendo imortal morrer

um Deus, que tanto se humilha

sendo grande a maravilha

Tanto é maior o poder

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MOTE
Porque, quem em pão se encerra
Ser divino, e Ser humano,
que muito que soberano
fabricasse o céu, e a terra.
 
 
 

Se no pão vos disfarçais,

por cobrir vossa grandeza,

já do pão na natureza

toda a grandeza expressais.

melhor no pão publicais

o poder a toda a terra,

pasme o mar, e trema a serra,

e reconheça o percito,

que o Pão é Deus infinito;

Porque quem em pão se encerra?
 
 
 

Neste Pão sacramentado,

que dos Anjos é sustento,

têm as almas grande alento

por meio de um só bocado:

perdoa a todo o pecado

por mais torpe, e desumano,

e eu me confesso tirano,

porque me não arrependo

se estou no Pão conhecendo

Ser divino, e ser humano.
 
 
 

Na Ceia se apresentou

o Senhor com realidade,

neste Pão da divindade,

que a todos sacramentou:

se a cada um transformou,

passando a divino o humano

que muito, que o desumano

pecador já convertido

seja aos Anjos preferido?

Que muito, que soberano?
 
 
 

Quem assim o permitiu

com tão alta onipotência,

que o pó da suma indigência

sobre as esferas subiu:

quem este pó preferiu

à luz, que luzes desterra,

que muito a contrária guerra

pacifique aos elementos?

que muito, que a seus intentos

Fabricasse o Céu, e a terra?

topo


 
MOTE
 

Que muito, que vivo alento
desse a um barro insensível
um Deus, que lhe foi possível
dar-se a si mesmo em sustento.

 
 

De um barro frágil, e vil,

Senhor, o homem formastes,

cuja obra exagerastes

por engenhosa, e sutil:

graças vos dou mil a mil,

pois em conhecido aumento

tem meu ser o fundamento

na razão, em que se estriba,

se lhe infundis alma viva,

Que muito, que vivo alento.
 
 
 
 

Depois de feita a escultura,

e por um Deus acabada,

obra não houve extremada

como a humana criatura:

ali para mais ventura

(sendo o barro assaz terrível)

alma lhe deu infalível,

e me admira ver, que aquela

alma, que ali fez tão bela

Desse a um barro insensível.
 
 
 

Possível lhe foi fazer

este Arquiteto divino

participando do Trino

aquela alma a seu prazer:

para mais se engrandecer

engrandeceu o insensível,

desatando-se passível

daquele sagrado nó,

que apertava três, e só

Um Deus, que lhe foi possível.
 
 
 

Foi grandeza do poder

aquele querer mostrar

sendo divino encarnar

para humano vir nascer:

e foi grandeza o morrer

um Deus, que é todo portento;

e se bem no Sacramento

se adverte grande fineza,

de seu poder foi grandeza

Dar-se a si mesmo em sustento.

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MOTE

 

Ó divina Onipotência!
Ó divina Majestade! 
que sendo Deus na verdade
sois também Pão na aparência.

 
 

Já requintada a fineza

Nesse Pão sacramentado

temos, Senhor, ponderado

vossa inaudita grandeza:

mas o que apura a pureza

da vossa magnificência

é, quererdes, que uma ausência

não padeça, quem deixais,

pois que partindo ficais,

Ó divina Onipotência.
 
 
 

Permiti por vossa cruz,

por vossa morte, e paixão,

que entrem no meu coração

os raios da vossa luz:

clementíssimo Jesus

sol de imensa claridade,

sem vós a mesma verdade,

com que vos amo, periga;

guiai-me, porque vos siga,

Ó divina Majestade.
 
 
 

Na verdade esclarecida

do vosso trono celeste

toda a potência terrestre

de comprender-vos duvida:

porém na forma rendida

de um cordeiro a Majestade

aos olhos da humanidade

melhor a potência informa,

sendo cordeiro na forma,

Que sendo Deus na verdade.
 
 
 
 

Cá neste trono de neve,

onde humanado vos vejo,

melhor aspira o desejo,

melhor a vista se atreve:

aqui sabe, o que vos deve

(vencendo a maior ciência)

amor, cuja alta potência

adverte nesse distrito,

que sendo Deus infinito,

Sois também Pão na aparência.

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MOTE
Ó Soberana Comida!
Ó maravilha excelente!
pois em vós é acidente,
o que em mim eterna vida.
 
 

À mesa do Sacramento

cheguei, e vendo a grandeza

admirei tanta beleza,

dei graças de tal portento:

com santo conhecimento

só então folguci ter vida,

pois vendo-a convosco unida

na flama de tanta calma

disse (recebendo-a n'alma)

Ó Soberana Comida!
 
 
 
 

Naquela mesa admirando

anda a graça tanto a rodo,

que dando-se a todos, todo

vos estais comunicando:

e de tal modo exaltando

vosso ser onipotente,

que quando estais tão patente

nessa nevada pastilha,

vos louvam por maravilha,

Ó maravilha excelente!
 
 
 
 

Como num excelso trono

realmente verdadeiro,

na Hóstia estais todo inteiro,

Senhor, por maior abono:

se por ser das almas dono

vos empenhais tão patente,

hei de apelidar contente

com a voz ao céu subida,

que esse Pão me seja vida,

Pois em vós é acidente.
 
 
 
 

Neste excesso do poder

só podia o majestoso

obrar ali de amoroso,

o que chegou a emprender:

eu, que venho a merecer

lograr a Deus por comida,

tenho por cousa sabida

neste excesso do Senhor

serem delíquios do amor,

O que em mim eterna vida.

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MOTE
 
Ó poder sempre infinito,
que o céu admira suspenso,
pois se encerra um Deus imenso
em tão pequeno distrito.
 
 

Três vezes grande, Senhor,

o mesmo céu nos publica,

e este louvor multiplica

com repetido clamor:

não cessa o santo louvor,

porque não cessando o grito

de tanto elevado esprito,

isso mesmo é propriedade,

que defende a majestade

O poder sempre infinito.
 
 
 

Quem chegar a compreender

essa grande imensidade,

há de pasmar na verdade

reconhecido o poder:

porém eu hei de dizer,

que nesse globo in extenso

vejo aquele sol imenso,

que tantos pasmos conduz,

vejo aquela imensa luz,

que o Céu admira suspenso.
 
 
 

Tal a meus olhos exposto

vos vejo no Sacramento.

que supre esse entendimento

os delírios do meu gosto:

porém se encobris o rosto,

já desanimo suspenso,

e vós sabeis por extenso

da águia, que se vos aplica,

qual se desmaia, e qual fica,

Pois se encerra um Deus imenso.
 
 
 

Quando em partes dividido

vos creio nas partes todo,

e vos vejo em raro modo

todo nas partes unido:

e de empenho tão subido

a inteligência repito,

pois me informa o infinito,

que estar pode na verdade

do Céu toda a majestade

Em tão pequeno distrito.    

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MOTE
 

Com razão, divina neve,
a vós se prostram coroas,
pois inclue três pessoas
a partícula mais breve.

Sol de justiça divino

sois, Amor onipotente,

porque estais continuamente

no luzimento mais fino:

porém, Senhor, se o contino

resplandecer se vos deve,

fazendo um reparo breve

desse sol no luzimento,

sois sol, mas no Sacramento

Com razão divina neve.
 
 
 

Só em vós, meu Redentor,

S tanta grandeza se encerra:

porque dos céus, e da terra

sois absoluto Senhor:

da terra o poder maior

um tempo em ardentes loas

humilharam três pessoas,

prostrando-se ao vosso pé

bem advertidos, de que

A vós se prostram coroas.
 
 
 
 

Mas porém se o disfarçado

não diminui o valor,

como ocupais, meu Senhor,

um lugar tão limitado?

de maior porém penhado

nos dais advertências boas;

mas convencendo as coroas,

mostrais ao peito arrogante

que esse lugar é bastante,

Pois inclue três pessoas.
 
 
 
 

A maravilha maior,

que causa o vosso portento,

é, que estais no Sacramento

todo em partes por amor:

porém se o maior valor

ao mais humilde se deve,

e so quem menos se atreve,

esse voz goza, e vos prende,

com razão vos compreende

A partícula mais breve.

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MOTE
 

Ora quereis doce Esposo,
quereis, luz dos meus sentidos,
que fiquemos sempre unidos
em um vínculo amoroso?

 
 
 

Agora, Senhor, espero,

que consintais, no que digo;

quereis vós ficar comigo,

que eu partir convosco quero?

que o permitais considero

fazendo-me a mim ditoso,

pois vos prezais de amoroso:

já quero as entranhas dar-vos,

e vede se assim tratar-vos,

Ora quereis, doce Esposo.
 
 
 
 

Já, Senhor, seguir-vos posso,

pois vosso amor me rendeu,

ser todo vosso, e não meu,

nada meu, e todo vosso:

permiti como Pai nosso,

não andemos divididos,

mas antes que muito unidos

estejamos entre nós,

porque eu já quero, o que vós

Quereis, luz dos meus sentidos.
 
 
 
 

Façamos, Senhor, um laço

entre nós tão apertado,

que de vós mais apartado

não possa mudar um passo:

porque com este embaraço

andemos tão prevenidos,

que não ousem meus sentidos

sair de vossos cuidados,

e de tal sorte ajustados,

Que fiquemos sempre unidos.
 
 
 
 

Seja pois este querer-nos

de tal sorte requintado,

que fique todo admirado,

quem assim chegar a ver-nos:

onde possa conhecer-nos

o mundo de curioso

me inveje pelo ditoso,

vendo, que comigo amante

vos ajustais mui constante

em um vínculo amoroso

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MOTE
Levantai minha humildade
humilhai vossa grandeza,
porque em vós seja fineza,
o que em mim felicidade.
 
 
 

Não é minha voz ousada

a pedir-vos mas prossigo,

que quoirais estar comigo,

inda que, Senhor, sou nada:

e se minha alma ilustrada

quereis, que fique em verdade,

pois que sem dificuldade

me podeis engrandecer,

ao auge do vosso ser

Levantai minha humildade.
 
 
 
 

Tenho, Senhor, no sentido

para duvidar de ousado,

que mal pode o desairado

pertender o esclarecido:

de minhas culpas tolhido

na abominável torpeza,

vendo em vós tanta beleza,

mal posso, Senhor, chegar-vos,

e para poder lograr-vos

Humilhai vossa grandeza.
 
 
 
 

Fazei por mim, meu Senhor,

tudo quanto possa ser,

e pois tendes tal poder

me podeis dar vosso amor:

uni o vosso valor

com a minha singeleza,

e fique a vossa grandeza

unida, Senhor, comigo;

fazei isto, que vos digo,

Porque em vós seja fineza.
 
 
 
 

Vosso corpo por inteiro

introduzi no meu peito,

porque assim ficarei feito

um sacrário verdadeiro:

ostentai, manso cordeiro,

com a minha indignidade

vossa grande Majestade,

suposto que o não mereça,

porque traça em vós pareça

O que em mim felicidade.

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MOTE
Uni meu sujeito indigno
a esse objeto soberano,
fareis do divino humano,
fareis do humano divino.
 
 
 

Mostrai, Senhor, a grandeza

de tão imenso poder,

unindo este baixo ser

a tão suprema beleza:

uni, Senhor, com firmeza

a este barro nada fino

o vosso ser tão divino,

ligai-vos comigo amante,

convosco em laço constante

Uni meu sujeito indigno.
 
 
 
 

Fazei, Senhor, com que fique

desta união tal memória,

que tão peregrina história

a vosso amor se dedique:

justo será, que publique

em seu pergaminho lhano

vossa glória o peito humano,

e que o mundo suspendido

vejo um pecador unido

A esse objeto soberano.
 
 
 
 

Como da vossa grandeza

não há mais onde subir,

será realce o vestir as túnicas da vileza:

muito o vosso amor se preza

de abater o soberano;

serei eu o Publicano

indigno do vosso amor:

vinde a meu peito, Senhor,

Fareis do divino humano.
 
 
 
 

Fareis humanado em mim

créditos à divindade,

porque o vosso incêndio há de

transformar-me em serafim:

fareis deste barro enfim

frágua de incêndio mais digno,

fareis do grosseiro o fino,

que isso é glória do saber

e por timbre do poder

Fareis do humano divino.

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MOTE
 

Ai quem tal bem merecera!
que de vós não se apartara!
ai quem melhor vos amara!
ai quem só em vós vivera!

 

Ai quem bem considerara

na glória só de vos ver,

que abrasado em seu querer

salamandra vos buscara!

ai quem tanto vos amara,

que tudo por vós perdera!

ai quem por vós padecera!

ai quem já pudera ver-vos!

ai quem soubera queter-vos!

Ai quem tal bem merecera!
 
 
 
 

Quem bem convosco se unira,

meu Senhor, e por tal arte,

que juntos em qualquer parte

um, e outro amor se vira!

quem tanto bem conseguira,

e quem tanto vos amara,

que um instante não deixara

de assistir-vos cuidadoso!

e quem fora tão ditoso

Que de vós não se apartara!
 
 
 
 

Ai quem soubera adorar-vos

de tal sorte, meu Senhor,

que deixara o próprio amor

nas pertendências de amar-vos!

quem, a alma querendo dar-vos,

o coração não deixara,

que desse modo lograra

a glória, Senhor, de ver-vos!

ai quem soubera querer-vos!

Ai quem melhor vos amara!
 
 
 
 

Quem morto se imaginara

nas glórias da humana vida!

vida em bonanças perdida,

vida, que a morte prepara:

ai quem tão só vos buscara,

que para o mundo morrera!

quem por ganhar-vos perdera

todas as glórias do mundo!

ai quem morrera ao imundo!

Ai quem só em vós vivera!

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MOTE

Ai quem soubera querer-vos!
ai quem soubera agradar-vos!
ai quem soubera explicar-vos!
quanto anela o bem de ver-vos.

 
 
 

Quem fora tão fino amante,

que mostrara a seu objeto

bem nas entranhas do afeto

prendas do amor palpitante:

quem nessa pira flamante

purificara o temer-vos!

ai quem temera ofender-vos

só por amor de agradar-vos!

ai quem soubera pagar-vos!

Ai quem soubera querer-vos!
 
 
 
 

Quem submergido na pena

prantos a mares vertera,

que outro Pedro parecera,

ou qual outra Madalena!

mas se contudo é pequena

para em justiça obrigar-vos

ai quem no rumo de amar-vos,

que de outro amor me desterra,

fora cos olhos na terra!

Ai quem soubera agradar-vos!
 
 
 
 

Se a vossa divina mão,

amantíssimo Pai nosso,

(como a de Tomé o vosso)

palpara o meu coração:

ai que delícias então

sentira a razão de amar-vos!

ai quem pudera mostrar-vos

o fino do meu amor!

e as circunstâncias da dor

Ai quem soubera explicar-vos!
 
 
 
 

Entrai, Senhor, no meu peito,

onde ao ver-vos retratado

causa sereis, meu amado,

inseparável do efeito:

entrai, que sois bem aceito,

pelo que sei já querer-vos,

e se dentro chego a ter-vos

desta minha indignidade

haveis de ver na verdade,

Quanto anela o bem de ver-vos.

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MOTE
 

Mas se sois lince divino,
que o mais oculto estais vendo:
se estais, luz minha, sabendo
o mesmo, que eu imagino.

 
 
 

Bem sei, meu amado objeto,

fazendo um breve conceito,

que penetrais do meu peito

o mais oculto, e secreto:

bem vê meu constante afeto

da vossa potência o fino,

porque neste vidro indigno

raiando desse Oriente,

se sois sol, não só persente,

Mas se sois lince divino.
 
 
 
 

Deixo à parte haver gerado

vosso justo entendimento

os astros, o firmamento,

e todo o demais criado:

e fico como elevado

no poder, a que me rendo,

admirando: porém vendo

vossa grandeza, e poder,

quando chego a comprender,

Que o mais oculto estais vendo.
 
 
 
 

Quando isento o pensamento

de toda a minha maldade,

vós lá dessa imensidade

vedes também meu intento:

se um oculto movimento

patente, e claro estais vendo,

fico por fé conhecendo

desse poder penetrante,

que não obsta estar distante,

Se estais, luz minha, sabendo.
 
 
 
 

E posto encubrais o rosto

no acidental Sacramento,

mui bem vedes meu intento,

pois a tudo estais exposto:

muda a língua, e fixo o gosto

em vós, meu lince divino,

já reconheço, que o fino

deste arnor penetrareis,

porque, Senhor, bem sabeis

O mesmo, que eu imagino.

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MOTE
 
Que importa, que meus cuidados
não sejam bem referidos,
se para serem sabidos
não dependem de explicados.
 
Se todo a vós me dedico,

quando todo a mim vos dais,

porque vós em mim ficais,

eu também em vós me fico:

vosso querer justifico,

tendo em vós assegurados

afetos tão requintados;

e se amor é compaixão,

a culpa, meu coração,

que importa? que? meus cuidados.
 
 
 
 

Deus amado, e Deus amante,

oh quem trouxera ajustados

seus amorosos cuidados,

que sem vós nem um instante!

mas pois que o mundo inconstante

perturba amantes sentidos,

valham ardentes gemidos

de afetos interiores

pelo instante, em que os amores

não sejam bem referidos.
 
 
 
 

Fazei, que eu logre a vitória

de uns atrevidos cuidados,

que quando quero explicados

perturbam minha memória:

oh se me alcançara a glória

de ter estes atrevidos

na confissão oprimidos,

onde não posso explicar,

se os conduzo a castigar,

Se para serem sabidos.
 
 
 
 

Sempre nesta explicação

de meus cuidados secretos

quero mostrar uns afetos

de anelante coração:

vaidosa demonstração

de amores mal informados

que repetir meus cuidados

é nescedade de amor,

quando convosco, Senhor,

Não dependem de explicados.            

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MOTE

Assim pois vós sabeis tudo
ó diviníssimo objeto,
valha-se só meu afeto
de estilo, que fala mudo.
 

Nada, meu Senhor, vos digo,

nada quisera dizer-vos,

porque os atos de querer-vos,

têm pelas vozes perigo:

tanto, Senhor, que comigo

hei de acabar de ser mudo,

e de tal maneira rudo,

que quando me perguntares

responderei (se escutares)

Assim, pois vós sabeis tudo.
 
 
 
 

Porém calar-me não quero,

quero convosco explicar-me,

vede, se quereis levar-me,

onde louvar-vos espero:

porque se bem considero

distante o golpe secreto,

levando-me vós o afeto,

de que servem meus sentidos

prostrados, e desunidos,

Ó diviníssimo objeto
 
 
 
 

Convosco meu ser se abraça,

e não pareçam delírios

procurar cândidos lírios

da vossa divina graça:

pois neles a alma se enlaça,

e convosco, amado objeto,

diz, que quer ir em secreto

purificar seu valor:

aqui do vosso favor

Valha-se só meu afeto.
 
 
 
 

Finalmente os meus cuidados

ordenai, Amor, de sorte,

que aos círculos de seu norte

correspondam empenhados:

meus sentidos desvelados

com excesso sobreagudo

vos venerem mais que tudo

em finíssimos extremos:

porém, meu Senhor, mudemos

De estilo, que fala mudo. (Gregório de Matos)

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Soneto

 

A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar cabana, e vinha,

Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.

 

Em cada porta um freqüentado olheiro,

Que a vida do vizinho, e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,

Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

 

Muitos Mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.

 

Estupendas usuras nos mercados,

Todos, os que não furtam, muito pobres,

E eis aqui a cidade da Bahia.

 

 

 

 

Descreve a vida escolástica

 

 

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,

Medíocre o vestido, bom sapato,

Meias velhas, calção de esfola-gato,

Cabelo penteado, bom topete.

 

Presumir de dançar, cantar falsete,

Jogo de fidalguia, bom barato,

Tirar falsídia ao Moço do seu trato,

Furtar a carne à ama, que promete.

 

A putinha aldeã achada em feira,

Eterno murmurar de alheias famas,

Soneto infame, sátira elegante.

 

Cartinhas de trocado para a Freira,

Comer boi, ser Quixote com as Damas,

Pouco estudo, isto é ser estudante

 

 

 

 

A Cristo, estando o poeta agonizante

 

 

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Soneto

 

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,

Em cuja lei protesto de viver,

Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme, e inteiro.

 

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minha vida anoitecer,

É, meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai manso Cordeiro.

 

Mui grande é vosso amor, e meu delito,

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.

 

Esta razão me obriga a confiar,

Que por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

 

 

 

 

Ao glorioso português Santo Antônio

 

MOTE : Bêbado está Santo Antônio

 

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Glosa

 

Entrou um bêbado um dia

pelo templo sacrossanto

do nosso Português Santo,

e para o Santo investia :

a gente, que ali assistia,

cuidando, tinha o demônio,

lhe acudiu a tempo idôneo,

gritando-lhe todos, tá,

tem mão, olha, que acolá,

Bêbado, está Santo Antônio.

 

 

 

 

Ao Conde de Ericeyra D. Luiz de Menezes pedindo louvores ao poeta, não lhe achando ele préstimo algum.

 

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Soneto

 

Um soneto começo em vosso gabo;

Contemos esta regra por primeira,

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo.

 

Na quinta torce agora a porca o rabo:

A sexta vá também desta maneira,

na sétima entro já com grã canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.

 

Agora nos tercetos que direi?

Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,

Gabando-se a vós, e eu fico um Rei.

 

Nesta vida um soneto já ditei,

Se desta agora escapo, nunca mais;

Louvado seja Deus, que o acabei.

 

 

 

 

Na despedida do mau governo que fez o governador Antão de Souza Meneses

 

Soneto

 

Senhor Antão de Souza de Meneses,

Quem sobe a alto lugar, que não merece,

Homem sobe, asno vai, burro parece,

Que o subir é desgraça muitas vezes.

 

A fortunilha autora de entremezes

Transpõe em burro o Herói, que indigno cresce:

Desanda a roda, e logo o homem desce,

Que é discreta a fortuna em seus reveses.

 

Homem (sei eu) que foi Vossenhoria,

Quando o pisava da fortuna a Roda,

Burro foi ao subir tão alto clima.

 

Pois vá descendo do alto, onde jazia,

Verá, quanto melhor se lhe acomoda

Ser home em baixo, do que burro em cima.

 

 

 

 

 

Ao governador Antônio Luiz Ferreira de Noronha

 

 

Sal, cal, e alho

caiam no teu maldito caralho. Amém.

O fogo de Sodoma e Gomorra

em cinza te reduzam essa porra. Amém.

Tudo em fogo arda,

Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.

 

 

 

 

Aos capitulares do seu tempo

 

Décima

 

A nossa Sé da Bahia,

com ser um mapa de festas,

é um presépio de bestas,

se não for estrebaria :

várias bestas cada dia

vemos, que o sino congrega,

Caveira mula galega,

o Deão burrinha parda,

Pereira besta de albarda,

tudo para a Sé se agrega.

 

 

 

 

Na chegada do Il.mo. Sr. D. João Franco de Oliveyra que houvera sido Bispo em Angola.

 

Soneto

 

Hoje os Matos incultos da Bahia

Se não suavemente for, ruidosamente

Cantem a boa vinda do Eminente

Príncipe desta Sacra Monarquia.

 

Hoje em Roma de Pedro se lhe fia

Segunda vez a Barca, e o Tridente,

Porque a pesca, que fez já no Oriente,

A destinou para a do meio-dia.

 

Oh! se quisera Deus, que sendo ouvida

A Musa bronca dos incultos Matos

Ficasse a vossa púrpura atraída!

 

Oh! se como Arion, que a doces tratos

Uma pedra atraiu endurecida,

Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!

 

 

 

 

Ao Capitão Domingos Ferreyra, fretando-lhe a amasia certo homem chamado Surucucu

 

Décimas

 

Passou o surucucu,

e como andava no cio,

com um e outro assobio,

pediu a Luisa o cu :

Jesu nome de Jesu,

disse a Mulata assustada,

se você é cobra mandada

que me quer ferir da escolta

dê uma volta, e na volta

poderá dar-me a dentada.

 

Apenas isto escutou,

quando a boa cobra solta

deu a volta, mas a volta

não foi, a que a namorou :

porque o bom Adão achou

no Paraíso, ao entrar,

sem poder a Eva falar,

jurando o seu nome em vão,

pecou no segundo então,

por no sexto não pecar.

 

O seu Santo nome disse

em vão: mas o capitão

perguntou a Luisa então

a causa da parvoíce :

ela; porque ele ouvisse,

toda de risinhos morta,

este mandu (disse absorta)

não repara, que se implica

marchar eu com outra pica,

tendo o Capitão à porta?

 

Saiba, Senhor Capitão,

que se Luisa, se fornica,

antes com homem de pica,

que com homem de bastão :

porém se este toleirão,

quiser vomitar peçonha,

livrar-me-ei dessa erronha,

pois na sua cara vejo,

que terá muito de pejo,

mas tem mui pouca vergonha

 

Prometeu vir do passeio

veio como um corrupio,

eu não vi homem tão frio,

que tão depressa se veio:

sobre ser frio é mui feio;

sobre ser feio é mui tolo:

porém se o meu portacolo

não erra, tem o magano

nos culhões muito tutano,

na testa pouco miolo.

 

 

.

 

 

Descreve a confusão do festejo do entrudo (o carnaval da época)

 

Soneto

 

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,

Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,

Os perus em poder do Pasteleiro,

Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.

 

Enfarinhar, por rabos, dar risadas,

Gastar para comer muito dinheiro,

Não ter mãos a medir o Taverneiro,

Com réstias de cebolas das pancadas.

 

Das janelas com tanhos dar nas gentes,

A buzina tanger, quebrar panelas,

Querer em um só dia comer tudo.

 

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,

Despejar pratos, e alimpar tigelas,

Estas as festas são do Santo Entrudo.

 

 

 

 

À sua mulher, antes de casar

 

Os dias se vão,

os tempos se esgotam,

para todos trotam,

só para mim não :

tanta dilação

quem há de curtir?

O tempo a não vir,

e eu por meu pesar

sempre a esperar,

o que tanto foge;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

 

O tempo sagrado

vem com tal vagar,

que deve de andar

manco, ou aleijado :

eu com meu cuidado

morto por vos ver,

e o tempo a deter

a dita, que espero,

da qual eu não quero,

que ele me despoje;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

 

Por uma hora mera,

que Píramo andara,

e à Fonte chegara,

onde Tisbe o espera,

nunca acontecera

colar-se de emboque

no seu mesmo estoque,

deixando uma ponta,

onde a Moça tonta

a morrer se arroje;

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

 

Por um hora avara,

por um breve instante,

que Leandro amante

no mar se arrojara,

nunca se afogara,

e Ero de tão alto

não dera tal salto;

porque quis o fado,

que ela, e o afogado

a praia os aloje :

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

 

Hoje poderei

convosco casar,

e hoje consumar,

amanhã não sei :

porque perderei

a minha saúde,

e em mim um ataúde

me podem levar

o corpo a enterrar,

porque vos enoje :

casemo-nos hoje,

que amanhã vem longe.

 

 

 

GM parodia famoso soneto de Camões, em razão de uma donzela nobre e rica que vindo da Índia era cortejada pelos "melhores da terra" mas que acabou entregando-se a Fr. Tomás.

 

Soneto

 

Sete anos a Nobreza da Bahia

Serviu a uma Pastora Indiana, e bela,

Porém serviu a Índia, e não a ela,

Que à Índia só por prêmio pretendia.

 

Mil dias na esperança de um só dia

Passava contentando-se com vê-la :

Mas Fr. Tomás usando de cautela,

Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.

 

Vendo o Brasil, que por tão sujos modos

Se lhe usurpara a sua Dona Elvira,

Quase a golpes de um maço, e de uma goiva :

 

Logo se arrependeram de ama todos,

E qualquer mais amara, se não fora

Para tão limpo amor tão suja Noiva.

Gregório de Matos
PESSOAS DE BEM




PESSOAS BENEMÉRITAS

A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA.

A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.

A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS.

NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.

CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.

SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.

GLOSA

AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.

CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.

AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.

ESTRIBILHO

A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER MULUM ABNER."

EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV.

AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES

AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR 



HOMENS DE BEM

A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA.

AO MESMO ASSUMPTO.

AO MESMO ASSUMPTO.

DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.

SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR.

A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE.

A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR.

SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES.

A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE TEVE PARA SE RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO.

AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS.

A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA LISBOA.

AO MESMO ASSUMPTO.

AO MESMO ASSUMPTO.

AO MESMO ASSUMPTO.

AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO EM DIA DE REYS OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA.
 

EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO.
 

A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR, IMPETRANDO LICENÇA PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO ALARDE.

OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA DE SOLDADO.

AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDAR-SE DE SUA HONRADASUPPLICA SOBRE A MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDICULOCHAMADO O FARIA, POR QUEM NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA".

TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA.

ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA.E NO DIA, EM QUE O GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO.

A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO.

A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA.

AO MESMO ASSUMPTO.

GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE SER DELLE FAVORECIDO NA MERCÉ ORDINARIA.

CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ FERREYRA DE NORONHA.

AOS MESMOS AMO, E CRIADO.

PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO.

REPETE A MESMA SATYRA.

AO MESMO ASSUMPTO.

DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO:

DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO GOVERNADOR SATYRIZADO.

APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ.

DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZER-SE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.

RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA.

A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO.

AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO DEPOIS.

LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO.

RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO.

CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS CONSOANTES.

AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO DE HUMA GRAVE DOENÇA.

 

2
— PESSOAS BENEMÉRITAS
...pessoas beneméritas...

...pessoas beneméritas...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADOAO RENASCIDO MONARCA.   
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei

 

 

Este, Senhor, que fiz leve instrumento

Para pesar o sol a qualquer hora,

Dedico a aquele Sol, a cuja aurora

Já destinam dous mundos rendimento.
 
 

Desta minha humildade, e desalento,

Que a sua quarta esfera não ignora,

subindo a oitavo céu, pertende agora

A estrela achar no vosso firmamento.
 
 

Eu, que outro sol no seu zenith pondero

Aos do Nascido Soberanos Raios,

Pesando-me eu a mim me desespero.
 
 

Mas vós, Águia Real, esses ensaios

Entre os vossos levai, pois considero,

Que nunca em tanta sombra houve desmaios.
 

A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA,
IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.
 
 

Hoje pó, ontem Deidade soberana,

Ontem sol, hoje sombra, ó Senadores,

Lises imperiais enfim são flores,

Quem outra cousa crê, muito se engana.
 
 

Nas cinzas, que essa urna guarda ufana,

Vejo, que os aromáticos licores

são de seu mortal ser descobridores,

Porque, o que a arte esconde, o juízo alhana.
 
 

A Real Capitânia submergida!

Olhos à gávea, ó tu Naveta ousada,

Que ao mar te engolfas de ambição vencida:
 
 

Pois em terra a Real está encalhada,

Alerta, altos Baixéis, porque anda a vida

Da mortal tempestade ameaçada.

 

A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA,
JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS.

 

Nasces, Infanta bela, e com ventura

Tão desigual a toda a gentileza,

Que vencendo o poder da natureza,

Venturosa fizeste à formosura.
 
 

Com tal estrela sobe a tal altura

A formosura posta em tanta alteza,

Que por nasceres pasmo da beleza,

Da pensão de formosa estás segura.
 
 

Nasceste Filha enfim da bela Aurora

Com graça singular, ventura clara,

Com estrela nasceste, ó feliz hora!
 
 

Nascer bela, e feliz é cousa rara:

Mas em ti Portugal venera agora

Uma estrela na dita, um sol na cara.
 

NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS,
QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.

 

Bem disse eu logo, que éreis venturosa

Quando nascestes, com nascer tão bela,

E me lembra dizer já com cautela,

Cousa rara é ser bela, e ser ditosa.
 
 

O nascer com estrela, e ser formosa

Raro prodígio é, que mais se anela;

Mas ser na terra flor, nos céus estrela,

Só em vós foi ventura prodigiosa.
 
 

Fostes, e sois estrela enfim do Norte,

Do céu girando o Norte mui segura,

Girando sempre a tão felice corte.
 
 

Hoje lograis mais bela formosura,

Possuindo na glória dita, e sorte,

Que em ser do Céu consiste o ter ventura.
 

CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS
POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.
 
 

Nascestes bela, e fostes entendida

Uniu-se em vós saber, e formosura:

Não se pode lograr tanta ventura,

Em quem com tal estrela foi nascida.
 
 

Quem viu co'a formosura a sorte unida,

Que julgasse essa vida por segura?

Muito esperou por vós a sepultura,

Que, em quem é tão feliz, não dura a vida.
 
 

Quem dissera no vosso nascimento,

Que em tal estrela haviam tais enganos,

Para ser maior hoje o sentimento!
 
 

Porém nestes prodígios soberanos,

Tendo dos Magos vós o entendimento,

Não podiam ser muitos vossos anos.

 
SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA
SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.
 
 

Se a dar-te vida a minha dor bastara,

Filha Isabel, de minha dor morrera,

E porque minha dor tudo excedera,

Gêneros novos de sentir buscara.
 
 

Se uma vida se dera, ou se emprestara,

A metade da minha te ofrecera,

Ou toda, porque inveja não tivera

Outra a metade, que órfã me ficara.
 
 

E se a minha alma enfim tua agonia

Substituir pudera com a sua,

Tua vida animando a cinza fria:
 
 

Inda que a arrojo o mundo o atribua,

Não só a vida, a alma te daria

Por melhorá-la com fazê-la tua.
 
 
GLOSA
 
 
Filha minha Isabel, alma ditosa,

Que do corpo as prisões desemparaste,

E qual cândida flor, ou fresca rosa

De teus anos a flor em flor cortaste:

De minha dor a mágoa saudosa,

Que por herança d'alma me deixaste,

Deves crer, que até agora não durara,

Se a dar-te vida a minha dor bastara.
 
 

Não durara até agora a minha mágoa,

Se fora ela bastante a dar-te vida,

Porque, vivendo tu, dos olhos a água

Se enxugara em dous rostos reprimida:

E sendo o peito humano a própria frágua,

Onde a dor em licores derretida

Corre a desafogar: se não correra,

Filha Isabel, de minha dor morrera.
 
 

Morrera, Filha minha, e acabara

De um doce mal, formosa enfermidade:

Todo o poder do mundo me invejara,

Pois falta a seu poder esta verdade:

Com minha morte a vida se trocara,

Da maior, e mais alta majestade

Enjeitara tudo, porque nada era,

E porque a minha dor tudo excedera.
 
 

Ficara tão ufano de seguir-te,

Vivo por te chorar, morto por ver-te,

Que se pudera crer, que por senir-te

A ocasião estimara de perder-te:

E se nesta estranheza de sentir-te

Não chegara um aplauso a merecer-te,

De uma a outra estranheza me passara,

Gêneros novos de sentir buscara.
 
 

Sangue ondeara a margem deste rio,

A rosa adoecera em suas cores,

Da Aurora carmesirn fora o rocio,

Não recendera o ambar entre as flores:

Fora da natureza um desvario

A ordem natural de seus primores:

Mas nada a minha dor necessitara,

Se uma vida se dera, ou se emprestara.
 
 

Se pudera emprestar-te a minha vida,

Se escusara então meu sentimento:

Mas ai! que nem o dá-la por perdida

Remédio pode ser do meu tormento:

E já, que não é cousa permitida

Celebrar um contrato tão violento,

E dar a vida enfim se não tolera,

A metade da minha te ofrecera.
 
 

E pois a natureza é tão escassa,

Que na esfera da sua potestade

Não cabe por indulto, nem por graça

Uma vida partir pela metade:

E inda que o vença amor, indústria, ou traça,

Me resta outra maior dificuldade,

De que se hão de invejar, metade dera,

Ou toda, porque inveja não tivera.
 
 

Se a metade da vida, que te ofreço,

Inveja há de causar, à com que fico,

E sobre dar-lhe inveja à que despeço,

Que saudades Ihe dê me certifico:

Para livrar-me de um, e outro tropeço,

Com que nesta partida me complico,

Sobre a tua metade te largara

A outra metade, que órfã me ficara.
 
 

Dera-te enfim a minha vida toda,

Que o mais fora desdouro da firmeza,

Que sempre, quem bem ama, se acomoda

Fazer a vida altar de uma fineza:

Dar tudo nunca a amor desacomoda,

Dera-te a vida, e alma nesta empresa,

Se a minha vida a morte te alivia,

E se a minha alma enfim tua agonia.
 
 

Ásia filha maior do mar profundo,

A África do mar soberania,

Europa exemplar luz de todo o mundo

E a América do ouro monarquia,

veriam, com quão ledo, e quão jucundo

Rosto por ti minha alma despedia,

Se o calor da minha alma à vida tua

Substituir pudera com a sua.
 
 

O Rouxinol, que canta docemente

À vista da consorte, que o namora,

A Rola triste, que ao esposo ausente

De dia busca, se de noite o chora:

No ar sutil, na fonte transparente,

Vendo o fino de uma alma, que te adora,

Pasmariam de ver, como supria

Tua vida, animando a cinza fria.
 
 

A inveja, que do ódio se alimenta,

A detração, que como espada corta,

A calúnia, que a todos ensangüenta,

E a aversão, que os áspides aborta:

Todos a iníquia mão, língua cruenta

Mostrariam pasmada, obtusa, absorta;

Eu só perdera a vida pela tua,

Inda que a arrojo o mundo o atribua.
 
 

Pasme de assombro, ou da fineza a terra,

Trema do caso, ou da estranheza o monte,

De invejosas as aves se dêem guerra

De corrido se mude o Horizonte:

Co'as nuvens indignadas choque a serra,

Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte,

Que eu firme nesta minha fantesia

Não só a vida, a alma te daria.
 
 

Dá-la-ia não só por imitar-te,

Se cabe em minha dor tão alta sorte,

Senão por despojar-me, e despojar-te

A mim do sentimento, a ti da morte:

Não só daria a alma por mostrar-te,

Que não tenho outro alívio em mal tão forte:

Senão (pois perde tanto em ser tão sua)

Por melhorá-la com fazê-la tua.
 

AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES
AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.
 

 

Um soneto começo em vosso gabo;

Contemos esta regra por primeira,

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo.
 
 

Na quinta torce agora a porca o rabo:

A sexta vá também desta maneira,

na sétima entro já com grã canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?

Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,

Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,

Se desta agora escapo, nunca mais;

Louvado seja Deus, que o acabei.
 

CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA
MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU
MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.

 
 

Tanta virtude excelente

de animoso, e de alentado,

de valeroso soldado,

e de cortesão valente,

viu o mundo, e soube a gente,

que inda que em santo podia

transformar-se a Senhoria,

o Conde o não conseguiu,

porque de noite caiu,

e o Santo cai no seu dia.
 

Se o Conde caiu de noite,

como o teremos por Santo,

quando a queda um tanto, ou quanto,

teve do divino açoite:

quis Deus, que o Conde se afoite,

porque visse o bom Soldado,

que o Conde de puro honrado

quis, que o visse a própria terra,

quanto arrojado na guerra,

na paz tão precipitado.
 

Ícaro da nossa guerra

ares corta o Conde só,

Ícaro caiu no Pó,

e o Conde caiu na terra:

se, porque o rio o enterra,

o nome lhe ficou dado

de Ícaro ter sepultado:

assim porque a terra dura

deu ao Conde sepultura,

ficou a terra um condado.
 

De cera, e pluma se val

Ícaro para viver,

e o Conde para morrer

valeu-se do natural:

quanto a força artificial

da natureza é sobrada

fica a do Conde adiantada,

porque Ícaro quando bóia

faz tragédia de tramóia,

e o Conde de capa, e espada.
 

Tinha o Conde de morrer;

todo o mortal nisto pára,

e se ele se não matara,

quem lho havia de fazer?

fez bem o Conde a meu ver,

quando ao jardim se arrojou,

e entre as flores expirou:

vento é a vida em rigor,

e como o Conde era flor,

entre as flores acabou.
 

Se ignorou alguns sentidos,

porque tanto mal se urdiu,

era valido, e caiu,

que o cair é dos validos:

tão certos são, e sabidos

no monte, no lar, na praça

estes reveses da graça,

que é já dos Palácios lei,

que quem da graça d'EI-Rei

cai, cai da sua desgraça.

 
AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.

 

Nesse precipício, Conde,

fostes Ícaro segundo,

bem que a Dédalo no mundo

vossa fama corresponde:

em parte caístes, onde

como Ícaro morrestes,

mas a Dédalo excedestes

nesses labirintos tristes,

em fazer no que caístes,

e em cair, no que fizestes.
 

Caiu o Conde, e se diz,

que foi por um caso atroz,

porém já corre outra voz,

que a esta se contradiz:

que foram uns frenesis

do juízo descortês:

mas eu digo desta vez

ouvindo do baque o truz,

que o juízo ao Conde induz

ter caído, no que fez.

 
ESTRIBILHO

 

Aqui jaz, em que lhe pes,

quem tudo fez com má sorte,

e só na hora da morte

caiu naquilo, que fez.

 

A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL
DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA
"PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT
DAVID SUPER TUMULUM ABNER."
 
 

Quando a morte de Abner David sentia,

Mandou a seus vassalos, que chorassem,

E que em lágrimas todos publicassem

Quanto o Reino Ihe deve, e o Rei devia.
 

Cada qual seu tormento repetia,

Sem querer, que os dos outros o igualassem

E todos procuravam, que mostrassem

As lágrimas dilúvio, a dor porfia.
 

Pois se a morte de Abner se sente tanto,

Só por ser General valente, e forte,

Que move o Reino, e Rei a tanto pranto:
 

Lamente Portugal, e sinta a Corte

A morte de Marialva, porque espanto

Foi do mundo, e o pudera ser da Morte.

 
 

EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO
AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV.
 
 

Aqui jaz o coração

do mais valente Anibal,

que restaurou Portugal com a espada de co'a razão:

aos pés do Rei quarto João

lhe mandaram dar jazigo,

para que a todo o perigo

os dous unidos por lei

achasse o vassalo ao Rei,

e tivesse o Rei o amigo.

 

 
 AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES
 
 

Aqui jaz o coração

do vassalo mais leal,

a quem deve Portugal

o quarto Rei Dom João:

e assim com justa razão

lhe dão a seus pés jazigo,

porque a todo o perigo

unidos os dous por lei

achasse a lealdade o Rei,

tivesse o vassalo amigo.

 

AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES.
O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE
DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR.
 
 

Em três partes enterrado

está o corpo do Marquês

de Marialva: porque em dez

mil seu nome é venerado:

e foi destino acertado,

que em tanta parte estivesse,

para que o mundo soubesse,

que este valeroso Marte

morto assiste em qualquer parte,

como se ainda vivesse.

 
3 - HOMENS DE BEM

... homem de bem...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado
o roubo, a injustiça, a tirania.  A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA.  
o roubo, a injustiça, a tirania.
 
 

 
 

Ó caso o mais fatal da triste sorte!

Ó terrível pesar! ó dor imensa!

Quem viu, que em breves dias de doença

Acabasse valor, que era tão forte!
 

Quem viu prostrar-se a gala de Mavorte,

Que hoje em cinza se ve à morte apensa!

Que como se prostrou, logo a licença

Concedeu livremente ousada à morte.
 

Já se vê o valor, que esclarecido

Foi, em urnas de pedra sepultado

Do sujeito mais grave, e entendido.
 

À Parca rigorosa sujeitado,

Acabado já, e em cinzas consumido

o esforço, que se viu mais alentado.

 

AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

Teu alto esforço, e valentia forte

Tanto a outro nenhum valor iguala,

Que teve o céu cobiça de lográ-lo,

Que teve inveja de vencê-la a morte.
 

O céu veio a lográ-la, mas por sorte,

Que por poder não pôde conquistá-la;

A morte por haver de contrastá-la

Vigor de lei tomou, e deu-lhe o corte.
 

Prêmios, que mereceste, e nunca viste,

Todos com teu valor os desprezaste,

E com os merecer lhe resististe.
 

O cargo, que na vida não lograste,

Esse o mofino é, órfão, e triste,

Pois te não falta a ti, tu lhe faltaste.
 

AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

Quem há de alimentar de luz ao dia?

Quem de esplendor ilustrará a Nobreza?

Quem há de dar lições de gentileza

A toda a gentileza da Bahia?
 

Já feneceu do mundo a galhardia,

Melancólica jaz a natureza,

Vendo em pó reduzida a fortaleza,

E em cinzas desatada a fidalguia.
 

O Marte (digo), que ao combate expunha

O peito sem temor, que ao mundo assombra,

Sendo da paz terror, da guerra espanto.
 

Foi este o Senhor Matias da Cunha,

Que hoje nos dá tornado em fria sombra

Ao discurso pesar, aos olhos pranto.

 

DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA
ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.
 
 

Oh não te espantes não, Dom Antonio,

Que se atreva a Bahia

Com oprimida voz, com plectro esguio

Cantar ao mundo teu rico feitio,

Que é já velho em Poetas elegantes

O cair em torpezas semelhantes.
 

Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito,

Lucano do Mosquito,

Das Rãs Homero, e destes não desprezo,

Que escreveram matérias de mais peso

Do que eu, que canto cousa mais delgada

Mais chata, mais sutil, mais esmagada.
 

Quando desembarcaste da fragata,

Meu Dom Braço de Prata,

Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua

Mandava a Inquisição alguma estátua

Vendo tão espremida salvajola

Visão de palha sobre um Mariola.
 

O rosto de azarcão afogueado,

E em partes mal untado,

Tão cheio o corpanzil de godolhões,

Que o julguei por um saco de melões;

Vi-te o braço pendente da garganta,

E nunca prata vi com liga tanta.
 

O bigode fanado feito ao ferro

Está ali num desterro,

E cada pêlo em solidão tão rara,

Que parece ermitão da sua cara:

Da cabeleira pois afirmam cegos,

Que a mandaste comprar no arco dos pregos.
 

Olhos cagões, que cagam sempre à porta,

Me tem esta alma torta,

Principalmente vendo-lhe as vidraças

No grosseiro caixilho das couraças:

Cangalhas, que formaram luminosas

Sobre arcos de pipa duas ventosas.
 

De muito cego, e não de malquerer

A ninguém podes ver;

Tão cego és, que não vês teu prejuízo

Sendo cousa, que se olha com juízo:

Tu és mais cego, que eu, que te sussurro,

Que em te olhando, não vejo mais que um burro.
 

Chato o nariz de cocras sempre posto:

Te cobre todo o rosto,

De gatinhas buscando algum jazigo

Adonde o desconheçam por embigo:

Até que se esconde, onde mal o vejo

Por fugir do fedor do teu bocejo.
 

Faz-lhe tal vizinhança a tua boca,

Que com razão não pouca

O nariz se recolhe para o centro

Mudado para os baixos lá de dentro:

Surge outra vez, e vendo a bafarada

Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.
 

Pernas, e pés defendem tua cara:

Valha-te; e quem cuidara,

Tomando-te a medida das cavernas

Se movesse tal corpo com tais pernas!

Cuidei, que eras rocim das alpujarras,

E já frisão te digo pelas garras.
 

Um casaquim trazias sobre o couro,

Qual odre, a quem o Touro

Uma, e outra cornada deu traidora,

E lhe deitou de todo o vento fora;

Tal vinha o teu vestido de enrugado,

Que o tive por um odre esfuracado.
 

O que te vir ser todo rabadilha

Dirá que te perfilha

Uma quaresma (chato percevejo)

Por Arenque de fumo, ou por Badejo:

Sem carne, e osso, quem há ali, que creia,

Senão que és descendente de Lampreia.
 

Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre,

Que te temo um desastre,

E é, que por sovela, ou por agulha

Arme sobre levar-te alguma bulha:

Porque depositando-te à justiça

Será num agulheiro, ou em cortiça.
 

Na esquerda mão trazias a bengala

ou por força, ou por gala:

No sovaco por vezes a metias,

Só por fazer enfim descortesias,

Tirando ao povo, quando te destapas,

Entonces o chapéu, agora as capas.
 

Fundia-se a cidade em carcajadas,

Vendo as duas entradas,

Que fizeste do Mar a Santo Inácio,

E depois do colégio a teu palácio:

O Rabo erguido em cortesias mudas,

Como quem pelo cu tomava ajudas.
 

Ao teu palácio te acolheste, e logo

Casa armaste de jogo,

Ordenando as merendas por tal jeito,

Que a cada jogador cabe um confeito:

Dos Tafuis um confeito era um bocado,

Sendo tu pela cara o enforcado.
 

Depois deste em fazer tanta parvoíce,

Que inda que o povo risse

Ao princípio, cresceu depois a tanto,

Que chegou a chorar com triste pranto:

Chora-te o nu de um roubador de falso,

E vendo-te eu direito, me descalço.
 

Xinga-te o negro, o branco te pragueja,

E a ti nada te aleija,

E por teu sensabor, e pouca graça

És fábula do lar, riso da praça,

Té que a bala, que o braço te levara,

Venha segunda vez levar-te a cara.

 

SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR.

 

Tempo, que tudo trasfegas,

fazendo aos peludos calvos,

e pelos tornar mais alvos

até os bigodes esfregas:

todas as caras congregas,

e a cada uma pões mudas,

tudo acabas, nada ajudas,

ao rico pões em pobreza,

ao pobre dás a riqueza,

só para mim te não mudas.
 

Tu tens dado em mal querer-me,

pois vejo, que dá em faltar-te

tempo só para mudar-te, s

e é para favorecer-me:

por conservar-me, e manter-me

no meu infeliz estado,

até em mudar-te hás faltado,

e estás tão constante agora,

que para minha melhora

de mudanças te hás mudado.
 

Tu, que esmaltas, e prateias

tanta gadelha dourada,

e tanta face encarnada

descoras, turbas, e afeias:

que sejas pincel, não creias,

senão dias já passados;

mas se esmaltes prateados

branqueiam tantos cabelos,

como, branqueando pêlos,

não me branqueias cruzados?
 

Se corres tão apressado,

como paraste comigo?

corre outra vez, inimigo,

que o teu curso é meu sagrado:

corre para vir mudado,

não pares por mal de um triste:

porque, se pobre me viste,

paraste há tantas auroras,

bem de tão infaustas horas

o teu relógio consiste.
 

O certo é, seres um caco,

um ladrão da mocidade,

por isso nesta cidade

corre um tempo tão velhaco:

farinha, açúcar, tabaco

no teu tempo não se alcança,

e por tua intemperança

te culpa o Brasil inteiro,

porque sempre és o primeiro

móvel de qualquer mudança.
 

Não há já, quem te suporte;

e quem armado te vê

de fouce, e relógio, crê,

que és o percussor da morte:

vens adiante de sorte,

e com tão fino artifício,

que à morte forras o ofício;

pois ao tempo de morrer,

não tendo já que fazer,

perde a morte o exercício.
 

Se o tempo consta de dias,

que revolve o céu opaco,

como tu, tempo velhaco,

constas de velhacarias?

não temas, que as carestias,

que de ti se hão de escrever,

te darão a aborrecer

tanto as futuras idades,

que, ouvindo as tuas maldades,

a cara te hão de torcer.
 

Se, porque penas me dês,

paras cruel, e inumano,

o céu santo, e soberano

te fará mover os pés:

esse azul móvel, que vês,

te fará ser tão corrente,

que não parando entre a gente,

preveja a Bahia inteira,

que há de correr a carreira

com pregão de delinqüente.

 
A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU
CREADO O BRAÇO FORTE.
 
 

Preso entre quatro paredes

me tem Sua Senhoria

por golotão de despachos,

por fundidor de mentiras.

Dizem, que sou um velhaco,

e mentem por vida minha,

que o velhaco era o Governo,

e eu sou a velhacaria.

Quem pensara, e quem dissera,

quem cuidara, e quem diria,

que um braço de prata velha

pouca prata, e muita liga!

Tanto mais que o Braço Forte

fosse forte, que poria

um cabo de calabouço,

e um soldado de golilha!

Porém eu de que me espanto,

se nesta terra maldita

pode uma onça de prata

mais que dez onças de alquímia.

Quem me chama de ladrão,

erra o trincho à minha vida,

fui assassino de furtos,

mandavam-me, obedecia.

Despachavam-me a furtar;

eu furtava, e abrangia,

e são boas testemunhas

inventários, e partilhas.

Eu era o ninho de guincho,

que sustentava, e mantinha

com suor das minhas unhas

mais de dez aves rapinhas.

O Povo era, quem comprava,

o General, quem vendia,

eu triste era o corretor

de tão torpes mercancias.

Vim depois a enfadar,

que sempre no mundo fica

aborrecido o traidor,

e a traição muito bem vista.

Plantar de fora o ladrão,

quando a ladroíce fica,

será limpeza de mãos,

mas de mãos mui pouco limpas.

Eles cobraram o seu

dinheiro, açúcar, farinha,

até a mim me embolsaram

nesta hedionda enxovia.

Se foi bem feito, ou mal feito,

o sabe toda a Bahia,

mas se a traição ma fizeram,

com eles a traição fica.

Eu sou sempre o Braço Forte,

e nesta prisão me anima,

que se é casa de pecados,

os meus foram ninharias.

Todo este mundo é prisão,

todo penas, e agonias,

até o dinheiro está preso

em um saco, que o oprima.

A pipa é prisão do vinho,

e da água fugitiva

(sendo tão leve, ligeira)

é prisão qualquer quartinha.

Os muros de pedra, e cal

são prisão de qualquer vila,

d'alma é prisão o corpo,

do corpo é qualquer almilha.

A casca é prisão das fruitas,

da rosa é prisão a espinha,

o mar é prisão da terra,

a terra é prisão das minas.

É cárcere do ar um odre,

do fogo é qualquer pedrinha,

e até um céu de outro céu

é uma prisão cristalina.

Na formosura, e donaire

de uma muchacha divina

está presa a liberdade,

e na paz a valentia.

Pois se todos estão presos,

que me cansa, ou me fadiga,

vendo-me em casa d'EI-Rei

junto à Sua Senhoria?

Chovam prisões sobre mim,

pois foi tal minha mofina,

que, a quem dei cadeias d'ouro,

de ferro mas gratifica.

 

A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR.
 
 

Senhor Antão de Sousa de Meneses,

Quem sobe a alto lugar, que não merece,

Homem sobe, asno vai, burro parece,

Que o subir é desgraça muitas vezes.
 

A fortunilha autora de entremezes

Transpõe em burro o Herói, que indigno cresce

Desanda a roda, e logo o homem desce,

Que é discreta a fortuna em seus reveses.
 

Homem (sei eu) que foi Vossenhoria,

Quando o pisava da fortuna a Roda,

Burro foi ao subir tão alto clima.
 

Pois vá descendo do alto, onde jazia,

Verá, quanto melhor se lhe acomoda

Ser home em baixo, do que burro em cima.

 

SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS
COM SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS
AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS PRINCIPAES DA BAHIA
DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE OUTROS
DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES.
 

 
MOTE
 
De flores, e pedras finas

floresce, e enriquece o Estado,

floresce sim pelo Prado,

e enriquece pelas Minas:

As Aves, que peregrinas

aos montes se retiraram,

nesta manhã já cantaram

com tão doce melodia,

que a noite se tornou dia,

porque as penas se acabaram.

 
  Já da Primavera entrou

a alegre serenidade,

com que toda a tempestade

do triste inverno acabou:

já Saturno declinou

nas operações malignas,

com influências benignas

Júpiter predominante

nos promete ano abundante

De flores, e pedras finas.
 

Se destes aspectos tais

bem se calcula a figura,

teremos grande fartura,

não há de haver fome mais:

mostras temos, e sinais

de um tempo muito abastado:

porque bem considerado

dele tem o próprio efeito;

já vemos, que a seu respeito

Floresce, e enriquece o Estado.
 

Para ser enriquecido

este Estado, e florescente,

temos a causa patente

no Planeta referido:

nem se equivoca o sentido

no efeito aqui declarado:

porque sendo bem notado

o estado, como parece,

se pelo mais não floresce,

Floresce sim pelo Prado.
 

Pelo Prado flor a flor

se vai a terra esmaltando,

com que o clima está mostrando

temperamento melhor:

do Luminar superior

por tais influências dignas

sendo as pedras, e boninas

da terra únicos primores

pois se esmalta pelas flores,

E enriquece pelas Minas.
 

Na terra já se exprimentam

virações tão temperadas,

que as aves determinadas

tornar aos ninhos intentam:

já não sentem, nem lamentam

tempestuosas ruínas,

pois com salvas matutinas

se mostram tão prazenteiras,

que mais parecem caseiras

As aves, que peregrinas.
 

Sua peregrinação

influxo foi de Saturno,

Planeta sempre noturno,

e muito importuno então:

todas nessa conjunção

seus doces ninhos deixaram,

e tanto se recearam

do nocivo temporal,

que escolhendo o menor mal,

Aos montes se retiraram.
 

Porém tanto que sentiram

haver no tempo mudança,

sem receio, e sem tardança

aos ninhos se reduziram:

outros ares advertiram,

outra clemência notaram,

com que alegres publicaram

dos astros os movimentos,

e com festivos acentos

Nesta manhã já cantaram.
 

Cantaram para mostrar

com repetidas cadências

singulares excelências

de um Planeta singular:

tal doçura no cantar

não se ouviu nesta Bahia,

ouvindo-se na harmonia

modulações tão suaves,

que nunca cantaram aves

com tão doce melodia.
 

Cada qual com voz sonora

nos mutetes, que cantavam,

por mil modos explicavam

de todo estado a melhora:

cada instante, e cada hora

a música mais se ouvia;

no Prado resplandecia

por modo maravilhoso

um lustre tão luminoso

que a noite se tornou dia.
 

Entre as aves modulantes,

que este nosso País tem

todas cantavam o bem,

de que são participantes:

dos males, que foram dantes,

todas também se queixaram;

assim que todas mostraram

com alegrias notórias,

que começaram as glórias,

Porque as penas se acabaram.

 

A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA
BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE
DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE TEVE PARA SE RETIRAR DA
CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO.
 
 

Daqui desta Praia grande,

Onde à cidade fugindo,

conventual das areias

entre os mariscos habito:

A vós, meu Conde do Prado,

a vós, meu Príncipe invicto,

Ilustríssimo Mecenas

de um Poeta tão indigno.

Enfermo de vossa ausência

quero curar por escrito

sentimentos, e saudades,

lágrimas, penas, suspiros.

Quero curar-me convosco,

porque é discreto aforismo,

que a causa das saudades

se empenhe para os alívios.

Ausentei-me da Cidade,

porque esse Povo maldito

me pôs em guerra com todos,

e aqui vivo em paz comigo.

Aqui os dias me não passam,

porque o tempo fugitivo,

por ver minha solidão,

pára em meio do caminho.

Graças a Deus, que não vejo

neste tão doce retiro

hipócritas embusteiros,

velhacos entremetidos.

Não me entram nesta palhoça

visitadores prolixos,

políticos enfadonhos,

cerimoniosos vadios.

Uns néscios, que não dão nada,

senão enfado infinito,

e querem tirar-me o tempo,

que me outorga Jesu Cristo.

Visita-me o lavrador

sincero, simples, e liso,

que entra co'a boca fechada,

e sai co queixo caído.

En amanhecendo Deus,

acordo, e dou de focinhos

co sol sacristão dos céus

toca aqui, toca ali signos.

Dou na varanda um passeio,

ouço cantar passarinhos

docemente, ao que eu entendo,

exceto a letra, e o tonilho.

Vou-me logo para a praia,

e vendo os alvos seixinhos,

de quem as ondas murmuram

por mui brancos, e mui limpos:

os tomo em minha desgraça

por exemplo expresso, e vivo,

pois ou por limpo, ou por branco

fui na Bahia mofino.

Queimada veja eu a terra,

onde o torpe idiotismo

chama aos entendidos néscios,

aos néscios chama entendidos.

Queimada veja eu a terra

onde em casa, e nos corrilhos

os asnos me chamam d'asno,

parece cousa de riso.

eu sei um clérigo zote

parente em grau conhecido

destes, que não sabem musa,

mau grego, e pior latino:

Famoso em cartas, e dados

mais que um ladrão de caminhos,

regatão de piaçavas,

e grande atravessa-milhos:

Ambicioso, avarento,

das próprias negras arnigo

só por fazer a gaudere,

o que aos outros custa jimbo.

Que se acaso em mim lhe falam,

torcendo logo o focinho,

ninguém me fale nesse asno,

responde com todo o siso.

Pois agora (pergunto eu)

se Job fora ainda vivo

sofrera tanto ao diabo,

como eu sofro este percito?

Também sei, que um certo Beca

no pretório presidindo,

onde é salvage em cadeira,

me pôs asno de banquinho.

Por sinal que eu respondi,

a quem me trouxe este aviso,

se fosse asno, como eu sou,

que mal fora a esse Ministro.

Eu era lá em Portugal

sábio, discreto, e entendido,

Poeta melhor, que alguns,

douto como os meus vizinhos.

Chegando a esta cidade,

logo não fui nada disto:

porque o direito entre o torto

parece, que anda torcido.

Sou um herege, um asnote,

mau cristão, pior ministro,

mal entendido entre todos,

de nenhum bem entendido.

Tudo consiste em ventura,

que eu sei de muitos delitos

mais graves que os meus alguns,

porém todos sem castigo.

Mas não consiste em ventura,

e se o disse, eu me desdigo;

pois consiste na ignorância

de Idiotas tão supinos.

De noite vou tomar fresco,

e vejo em seu epiciclo

a lua desfeita em quartos

como ladrão de caminhos.

O que passo as mais das noites,

não sei, e somente afirmo,

que a noite mais negra, escura

em claro a passo dormindo.

Faço versos mal limados

a uma Moça como um brinco,

que ontem foi alvo dos olhos,

hoje é negro dos sentidos.

Esta é a vida, que passo,

e no descanso, em que vivo,

me rio dos Reis de Espanha

em seu célebre retiro.

Se, a quem vive em solidão,

chamou beato um gentio,

espero em Deus, que hei de ser

por beato inda benquisto.

Mas aqui, e em toda a parte

estou tão oferecido

às cousas do vosso gosto,

como de vosso serviço.

 

AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL
EM COMPANHIA DE SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO
O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS
 
 

Generoso Dom Francisco,

mais que Conde Rei do prado,

porque se a Rosa é Rainha,

rei sois vóis, pois sois o Cravo.

Majestoso ramilhete

por cuja causa logramos

trinta e seis meses de flores,

que um mês fizeram de Maio.

Luminar esclarecido,

em quem tanto estão brilhando

as luzidas excelências

desses ascendentes Astros.

Ouvi de meus sentimentos

a voz, inda que o reparo

note, que para a matéria

o instrumento é mui baixo.

Ouvi meus saudosos tonos,

que é bem, Senhor Soberano,

que, quem deu assunto à solfa,

se digne de ouvir os cantos.

Neste papel ponde os olhos,

pois já quisestes dignar-vos

de verdes da minha Musa

noutro tempo outro traslado.

Naquele tempo, então digo,

quando escapei são, e salvo

por vosso bom patrocínio

de mil testemunhos falsos.

Quando viu toda a Bahia

no decurso de três anos

sempre em flor vosso carinho,

nunca murcho o vosso agrado

Aqui mil órgãos quisera,

para que com mil meatos

sempre ferisse os encômios,

onde soam os aplausos.

Mas inda assim não podiam

entender-se os vôos tanto,

que não ficassem sucintos

para elogios tão altos.

Aquele ligeiro monstro,

que nas presunções de alado

pelas plumas marca os vôos,

pelos vôos mede os passos.

Só pode com nova tuba

referir em pregões altos

os timbres da vossa pompa,

as prendas do vosso garbo.

Referirá, Senhor Conde,

que sempre os feitos preclaros

têm por doação dos tempos

da Fama os maiores brados.

Esta vai com grande empenho

desta Praça, para dar-vos

sobre as aras do meu trono

da memória os holocaustos.

Digo, que vai desta Praça,

onde em público teatro

vemos do melhor governo

os mais heróicos ensaios.

Do Mestre as prerrogativas

toquei em hino mais amplo

por ver-se nas lições suas

da pena o primeiro aparo.

Aqui dos seus documentos

nada digo, nada trato,

que pois o assunto é só vosso,

só convosco agora falo.

Só convosco, porque o gênio,

que é para pouco trabalho,

mal pode ser juntamente

Jardineiro, e Lapidário.

Tanto que vos embarcastes,

logo então fiquei notando,

que na falta do presente

se conhece o bem passado.

Por vossa ausência às escuras

fica a terra, e não me espanto,

de que quando o sol se ausenta,

se ausente da Luz os raios.

A vista dos nossos olhos

éreis; com que fica claro,

pois, meu Senhor, vos perdemos,

que sem vós cegos ficamos.

A vossa falta sentimos

geralmente neste estado,

que sentir-se a grande perda

efeito é muito ordinário.

Sente o grande, que não tem

o Prado alegre em Palácio,

o gentil Cravo na rua,

a Flor brilhante no Campo.

Sente igualmente o pequeno

não ter em seus desamparos

abrigo para a tormenta

e tábua para o naufrágio.

Eu sinto, e sentimos todos,

que fosse tão breve o prazo

dos objetos para a vista,

da vista para os regalos.

Mas não podia o triênio,

sendo um bem dos bens humanos,

deixar de incluir o logro

nos termos de momentâneo.

Nesta suposição nossa

concorrem motivos vários

uns por parte dos alívios,

outros em favor dos prazos.

Mas prevalecem as penas,

que os corações magoados,

quando a dor mais dissimulam,

então estão mais penando.

Não permita vossa ausência,

no sentimento intervalos,

que no mal sempre contino

nunca desconsolos faltam.

Vossa saudade gememos

nossa solidão choramos

se na solidão chorosos,

na saudade solitários.

Nesta assistência tão breve

nos mostrou o desengano

não ser para pecadores

o comércio de tal Anjo.

 

A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO
SE RETIRAVA PARA LISBOA.
 
 

Do Prado mais ameno a flor mais pura,

Que em fragrâncias o alento há desatado,

Hoje a fortuna insípida há roubado

A pompa, o ser, a gala, a formosura.
 

Flor foste, ó Conde, a quem a desventura

Por decreto fatal do iníquio fado

Quis dar-te como flor do melhor Prado

Tumba no mar, nas águas sepultura.
 

Porque menos decente o monumento

Poderias achar no infeliz caso

De ver extinto tanto luzimento.
 

Por magnânimo herói no final prazo

Somente na extensão desse elemento

Terias como sol decente ocaso.

 

AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

Em essa de cristal campanha errante

Da morte um peito ilustre foi vencido,

Mágoa, que o mar chorava fementido

Com lágrimas de neve, ou de diamante.
 

Neste teatro horrível, e inconstante

Aos rigores do tempo pôs rendido

A sua pompa o Prado mais florido,

Fim a seu curso o sol mais rutilante.
 

Como Prado em tormentas inundado,

Como sol, que apressado a esfera corre,

Teve o seu fim nas águas destinado.
 

Por que se bem se adverte, ou se discorre,

Se o mar inunda, se sepulta o prado,

E se fenece o sol, nas ondas morre.
 

AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

No Reino de Netuno submergido

Nos campos de Anfitrite sepultado

Tem a Sorte a mais bela Flor, que o Prado

Em sua amenidade há produzido.
 

Os realces ilustres tem perdido,

porque a Parca os alentos lhe há roubado,

cuja memória os mares têm chorado,

cuja lembrança as águas têm sentido.
 

Mas se de flor, ó Conde a preminência

Gozavas em teu florido viver,

Que muito não tivesses existência!
 

Pois a flor, que mais pompa vem a ter

Se pondera em uma hora sem falência

Sujeita à pensão fera de morrer.

 

AO MESMO ASSUMPTO.

 

Nasce el sol de los astros presidente

Principe en las espheras conocido,

Y aunque el dia le mira el mas luzido,

La noche se le atreve irreverente.
 

Sirve le de sepulchro transparente

El mar, pension fatal de haver nascido,

Pues el que en todo un ciclo nó ha cabido,

Le viene a ser el mar urna decente.
 

Sol fuiste, Conde ilustre, en la nobleza,

A quien la triste noche se le atreve,

Pues es el morir del sol naturaleza.
 

Hallaste como el sol tumba de nieve,

Pues siendo corto el sol à tu grandeza,

Solo à tal sol tal urna se le deve.

topo


 

AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO
EM DIA DE REYS OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME
DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS ESMOLLAS,
QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM ANNO
PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA.
 
 

Num dia próprio a liberalidades,

No qual o Rei dos Reis aos Reis aceita,

Não é muito, que quem Rei vos respeita,

Vos troque a Senhoria em majestades.
 

Obriga-me a pedir calamidades

A que o meu fado triste me sujeita,

Obriga-vos a dar a mão perfeita,

Com que sabeis matar necessidades.
 

Chegaram hoje os Reis do diversório

A tributar incenso, mirra, e ouro,

Fazendo do presépio um oratório:
 

Se guiou aos três Reis Planeta Louro,

Guie-me a minha estrela o peditório,

Com que na vossa mão ache um tesouro.

topo

 

 
EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA
GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO.
 
 

Senhor: se quem vem, não tarda,

vim eu em boa ocasião,

pois da Guarda o capitão

é Anjo da minha guarda:

vossa presença galharda,

vossa dócil natureza

bem mostram, que sois na empresa

da minha fortuna imensa

capitão pela defensa

Anjo pela gentileza.
 

Obrigado a tão bom trato,

que em mim é lance infalível,

o desempenho impossível

temo, que me faça ingrato:

mas como já me precato

de tão previsto desar,

que eu não basto a desviar,

sirva de escusa, ou perdão,

que não falta à gratidão,

quem se peja de faltar.
 
 

Na Corte em era oportuna

vistes a minha abastança,

hoje vereis a mudança

da minha infausta fortuna:

de estrela tão importuna

dera uma justa querela,

porque hajais de corrige-la:

mas no mundo é já patente,

que como sábio, e prudente

dominastes minha estrela.
 

Mudei-me de ponto a ponto

de Portugal ao Brasil,

lá deixo infortúnios mil,

acho cá ditas sem conto:

co'as ditas é, que de ponto

a desgraça lá passada,

e a graça considerada

está em vós, meu capitão,

que a dita está na eleição

da sombra, a que está chegada.

topo

 

 

A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO
FEZ O POETA O SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR,
IMPETRANDO LICENÇA PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO
MILITAR, A QUE CHAMAVÃO ALARDE.
 
 

Senhor: Os Negros Juízes

da Senhora do Rosário

fazem por uso ordinário

alarde nestes Países:

como são tão infelizes,

que por seus negros pecados

andam sempre emascarados

contra a lei da policia,

ante Vossa Senhoria

pedem licença prostrados.
 

A um General Capitão

suplica a Irmandade preta,

que não irão de careta,

mas descarados irão:

todo o negregado Irmão

desta Irmandade bendita

pede, que se lhe permita

ir ao alarde enfrascados,

não de pólvora atacados,

calcados de jeribita.

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OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA
SENTAR PRAÇA DE SOLDADO.
 
 

Senhor: deste meu Sobrinho

afirmou um Padre tolo,

que é furado do miolo,

sendo o tal Padre o tolinho:

não é doudo, nem doudinho,

falando na realidade,

mas se hei de dizer verdade,

e nada hei de encobrir,

anda morto por servir

aqui Sua Majestade.
 

Pode Vossa Senhoria,

se nisto acertar deseja,

permitir, que o Moço seja

soldado de Infantaria:

e se alcançar algum dia,

que falei afeiçoado,

eu me dou por condenado,

e sem recurso nenhum

a servir sem soldo algum

em lugar deste Soldado.

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AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA
AO DESCUIDAR-SE DE SUA HONRADA SUPPLICA SOBRE A
MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM
SOLDADO RIDICULO CHAMADO O FARIA, POR QUEM NAQUELLE TEMPO
CANTAVÃO OS CHULOS
"A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA".
 
 

Sei eu, Senhor, que Vossa Senhoria

Mandou dar ao Faria um bom vestido,

Sendo, que mais o tinha merecido

A mulher do mesmíssimo Faria
 

Provo: todo o prazer, gosto, e alegria,

Que se tem do Faria deduzido,

O deu sempre a Mulher, nunca o Marido.

Que ela ia pra Angola, e ele não ia.
 

Assim que se a Mulher vai para Angola,

E ele fica na infame lupanária,

Sua ausência cruel pondo à viola:
 

Tiro por conseqüência temerária,

Que à Mulher se lhe deve dar a esmola,

Que em crítico se diz mercê ordinária.

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TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
 
 

Se da Guarda pareceis

Anjo sobre capitão,

não é novidade não,

que de males nos livreis:

dobrado ofício fazeis

em qualquer nossa aflição,

pois com nobre coração

nos livrais amante interno,

se como Anjo do inferno,

do mais como capitão.

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ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA.
E NO DIA, EM QUE O GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU
O SEGUINTE SONETO.
 
 

Quem, Senhor, celebrando a vossa idade,

Os anos com prazer vos vai contando,

Parece, que vos vai aproximando

Para lograr tal dia a vossa herdade.
 

Se a conta vos chegara a eternidade,

Contente vo-la iria numerando,

Mas dá-me desprazer a conta, quando

Temo a raia tocar da mortandade.
 

Com olhos sempre postos na Ordinária

Vos dou os parabéns sem falso engano

De ver-vos contrastando a sorte vária.
 

Mas se por fim me dais o desengano

(que em vós seria cousa extraordinária)

Direi, que em tal dia fará um ano.

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A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA,
ASSISTINDO NO MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O
POETA O NÃO VISITASSE, E PEDINDOLHE HUMA
SATYRA POR OBSEQUIO.
 
 

A quem não dá aos fiéis

perdão, se lhe há de outorgar,

eu hoje vos hei de dar,

pedindo me perdoeis:

dou-vos, o que mais quereis,

e o que pedis por favor,

que quando chega um Senhor

a pedir, por não mandar,

mal lhe podia eu faltar

cuma sátira em louvor.
 

Não fui beijar-vos a mão,

e dar-vos a bem chegada,

porque nessa alta morada

nunca tive introdução:

até agora a indignação

não quis tão altivo trato,

mas hoje é quase distrato,

porque em todo mundo inteiro

de fidalgo, e de escudeiro

são brincos de cão com gato.
 

Os Fidalgos, e os Senhores

faltos de jurisdição

fazem tudo, e tudo dão

a amigos, e servidores:

os que jogam de maiores

por sangue, e não por poder

fazem jogo de entreter:

porque o sangue desigual

sempre brota ao natural,

e o mando bota a perder.
 

Perdoai a digressão,

porque esta prolixidade

é boa luz da verdade,

e escusa a sátira então:

quando se ofreça ocasião,

meu Senhor, de que eu vos veja

(na Igreja, ou na rua seja)

hei de prender-vos os pés,

e estai certo, que essa vez

vos não valerá a Igreja.
 

Estou na minha quintinha,

que é chácara soberana,

ora comendo a banana,

jogando ora a laranjinha:

nem vizinho, nem vizinha

tenho, porque sempre cansa

quem vê tudo, e nada alcança,

e na cidade são raros

os olhos, que não são claros,

se olhos são de vizinhança.
 

Mas inda que desterrado

me tem o fado, e a sorte

por um Juiz de má morte,

de quem não tenho apelado:

é hoje, que sois chegado,

Senhor, o tempo, em que apele;

fazei, que El-Rei o desvele

pagar o serviço meu,

pois é bizarro, e só

eu não vim muito pago dele.

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A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR
TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO
BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO
DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA.
 
 

No culto, que a terra dava,

equivocava-se a vista,

se celebrava o Batista,

se ao Coutinho festejava:

um e outro João estava

arrojando à sua planta

tanto aplauso, e festa tanta:

mas viu-se, que ao mesmo dia,

em que o Batista caía,

o Coutinho se levanta.
 

Viu-se, que um João Batista

na terça-feira caíra,

e que outro João subira

a imperar esta conquista:

mas não se enganou a vista

por desacerto, ou desgraça,

antes com divina traça

se notou, e se advertiu,

que se um com graça caiu,

outro nos caiu em graça.
 

Braba ocorrência se achou

no martirológio então,

o dia era de um João,

e outro João lhe levou:

toda a cidade assentou

por razão, se por carinho

ser mais acerto, e alinho

preferir entre dous grandes

como um Silva a um Fernandes

a um Batista um Coutinho.
 

Mais ocorrências se leram,

porque pasmasse a Bahia,

dous num dia há cada dia,

mas três nunca concorreram:

três de um nome então vieram,

e qual mais para aplaudido,

e assim confuso, e sentido

ficou com tão nova traça

restaurada a nossa Praça

e o Calendário aturdido.
 

Se de um só João no dia

se abalava a cristandade,

por três de tal qualidade

quem se não abalaria!

tudo quanto então se via,

se via com grande abalo,

um mar de fogo a cavalo,

a pé um Etna de flores,

e por ver tantos primores

o Céu dava tanto estalo.
 

A ver o grande Alencastro

quem não fez do aperto graça:

se saiu o sol à praça

fazer praça a tanto Astro?

o bronze pois, e alabastro

por solenizar a glória

consentirão, que esta história

fique por mais segurança

nos arquivos da lembrança

nos volumes da memória.

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AO MESMO ASSUMPTO.
 
 

Entre aplausos gentis com luz preclara

Resplandece do sol a monarquia,

E o Príncipe da Luz, que o céu regia

Estático a carroça ardente pára.
 

E com razão: pois vê, se bem repara,

outro novo Faetonte neste dia,

E sente arder o mundo, como ardia,

Quando ao filho o governo delegara.
 

Pare pois, e repare, que o decreta

Astréia, porque aprenda no alto pólo

Ditames de luzir deste Planeta.
 

Sua fama andará de pólo a pólo,

Pois o Jove, que empunha uma gineta,

Faetonte é na luz, no garbo Apolo.

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GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ
DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA
NA ESPERANÇA DE SER DELLE FAVORECIDO
NA MERCÉ ORDINARIA.
 
 

Veio ao Espírito Santo

da Ilha da Madeira Alz.

um Escudeiro Gonçalves

mais pobretão, que outro tanto:

e topando a cada canto

as Tapuias do lugar

havendo uma de tomar

para a bainha da espada,

tomou Vitória agradada,

que então lhe soube agradar.
 

A tal era uma Tapuia

grossa como uma jibóia,

que roncava de tipóia,

e manducava de cuia:

tocando ela a Aleluia,

tirava ele a culumbrina

com tal estrago, e ruína,

que chegando a conjuncão

lhe encaixou a opilação

por entre as vias da urina.
 

Pariu a seu tempo um cuco,

um monstro (digo) inumano,

que no bico era tucano

e no sangue mamaluco:

mas não tendo bazaruco,

com que faça o batizado

lhe assistiu sem ser rogado

um troço de fidalguia

pedestre cavalaria

toda de beiço furado.
 

O Cura, que não curou

de buscar no Calendário

nome de Santo ordinário,

por Antônio o batizou:

tanto o colonim mamou,

e tais forças tomou, que

antes de se pôr de pé,

e antes de estar já de vez,

não falava o português,

mas dizia o seu cobé.
 

Cansado de ver a Avoa

co'as cuias à dependura,

tratou de buscar ventura,

e embarcou numa canoa:

vindo aportar a Lisboa,

presumiu de fidalguia,

cuidou, que era outra Bahia,

onde basta a presunção

para fazer-se a um cristão

muchíssima cortesia.
 

Casou com uma rascoa,

que por ele ardia em chamas,

e era criada das Damas

da Rainha de Lisboa:

era uma grande pessoa,

porque tinha um cartapácio,

onde estudava de espácio

todo o primor cortesão,

que até um sujo esfregão

cheira a primor em Palácio.
 

Nasceu deste matrimônio

um Anjo, digo, um Marmanjo,

que era no simples um Anjo,

e no maligno um demônio:

deram-lhe por nome Antônio;

oh se o Santo tal cuidara!

creio eu, que se irritara

o grande Português tanto,

que deixara de ser Santo,

e o nome lhe não sujara.
 

Este pois por exaltar-se

veio reger a Bahia:

que bom governo faria,

quem não sabe governar-se!

se ele quisera enforcar-se

pelos que enforcar fazia,

que bom dia nos daria!

mas ele tão mal se salva,

que quando dava a mão alva

então tomava o bom dia.
 

O Ministro há de ser são,

justo, e não desobrigado,

há de ter ódio ao pecado,

e ao pecador compaixão:

que se tem má propensão,

faz justiça, mas com vício,

e se maior malefício

tem, e pode condenar-me,

livre-me Deus de julgar-me

oficial do meu ofício.
 

Que, porque furto, o que coma,

me enforquem, pode passar,

mas que me mande enforcar

a bengala de um Sodoma!

quem sofrerá, que Mafoma

me queime por mau cristão,

vendo, que Mafoma é cão,

velhaco, e de suja alparca,

e o mais torpe heresiarca,

que houve entre os filhos de Adão.
 

Quem na terra sofreria,

que o fedor de um ataúde

com bioco de virtude

disfarçasse a Sodomia?

e de feito em cada dia

desse ao povo um enforcado,

e que de puro malvado

desse esse dia um banquete,

e alegrasse o seu bofete

com bom vinho, e bom bocado?
 

O bem, que os mais bens encerra,

e as glórias todas contém,

é reinar, quem reina bem,

pois figura a Deus na terra:

eu cuido, que o mundo erra

nesta alta reputação,

que se o Rei erra uma ação,

paga a seu alto atributo

um tristíssimo tributo,

e misérrima pensão.
 

O Príncipe soberano

bom cristão temente a Deus,

se o não socorrem aos céus,

pensões paga ao ser humano:

está sujeito ao tirano,

que adulando ambicioso

é áspide venenoso,

que achacando-lhe os sentidos,

turbado o deixa de ouvidos,

de olhos o deixa ludoso.
 

Se fosse El-Rei informado,

de quem o Tucano era,

nunca à Bahia viera

governar um povo honrado:

mas foi El-Rei enganado,

e eu com o povo o paguei,

que é já costume, e já lei

dos reinos sem intervalo,

que pague o triste vassalo

os desacertos de um Rei.
 

Pagamos, que um figurilha

corcova de canastrão

com nariz de rebecão

em cara de bandurrilha,

descompusesse a quadrilha

dos homens mais bem nascidos,

e que dos mal procedidos

tal estimação fizesse,

que honras, e postos lhes desse

por lhe encherem os ouvidos.
 

Pagamos ver esta Hiena,

que com a voz nos engana,

pois fala como putana,

e como fera condena:

que uma terra tão amena,

tão fértil, e fão fecunda

a tornasse tão imunda

falta de saúde, e pão;

mas foi força, que tal mão peste,

e fome nos infunda.
 

Pagamos que um homem bronco

racional como um calhau,

mamaluco em quarto grau,

e maligno desde o tronco:

apenas se dá um ronco,

em briga apenas se fala,

quando os sargentos a escala

prendem com descortesia

aos honrados na enxovia,

todo o patifão na sala.
 

Pagamos, que um Sodomita,

porque o seu vício dissesse,

todo o homem aborrecesse,

que com mulheres coabita:

e porque ninguém lhe quita

ser um vigário-geral

com pretexto paternal,

aos filhos, e aos criados

tenha sempre aferrolhados

para o pecado mortal.
 

Pagamos, que o tal jumento

isento de mãos guadunhas

não furtasse pelas unhas,

senão por consentimento:

e que os quatro vezes cento,

que se vieram trazer

ao seu capitão mulher,

porque o pão suba mais dez,

não foi furto, que ele fez,

mas deu jeito a se fazer.
 

Pagamos ver o Prelado,

que se peca, é de prudente,

dos serventes de um agente

descortesmente ultrajado:

o sobrinho amortalhado

com tão fidalgos brasões

pela Puta dos calções,

que fiado em ser valido

fez do sangue esclarecido

tão lastimosos borrões.
 

Pagamos com dor interna,

que nos passos da Paixão

tão devoto é da prisão,

que quer levar a lenterna:

se entende, que a glória eterna

prendendo há de merecer,

fora melhor entender,

que o céu lhe dá mais ganhado,

não dormir-se co criado,

que desvelar-se em prender.
 

Pagamos vê-lo esperar,

e estar com expectativas

de ser Conde das Maldivas

por serviços de enforcar:

e como mandou tirar

um rol dos quatro maraus,

que enforcou por vaganaus,

cuidei (assim Deus me valha)

que entre os Condes da baralha

fosse ele o Conde de paus.
 

Porém Sua Majestade,

Qual Príncipe Soberano,

que não se indigna de humano

sem dano da dignidade:

conhecida esta verdade,

que é verdade conhecida,

fará justiça cumprida,

para que se lhe agradeça,

que o mau na própria cabeça

traga a justiça aprendida.
 

E porque nós de antemão

a seus favores mostremos,

quanto lhos agradecemos,

lhe agradecemos D. João:

era justo, era razão,

conforme o direito e lei,

quando o Rei dá Juiz a Grei,

outro em seu lugar dispor,

que seja o Governador

tão fidalgo como El-Rei.

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CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO
LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
 
 

Estas as novas são de Antônio Luí=

No que passa sobre um gato de algá=,

Que algália tira com colher de Itá= .

que coze e corcoja em fonte Rabi= .
 

Se lhe escalda ou não a serventi=

Isto tem já provado o mesmo ga=

Porque passando os rios de cuá=

O caso tocou logo a Inquisi=
 

Há cousa mais tremenda e mais atró=,

Que em terra, onde há tanta fartu=,

E haja que por um cu enjeite um có= ?
 

E que por mau gosto seja um pu= ?

Eu me benzo, e arrenego do demô=

E do pecado, que é contra a natu= .

topo

 

AOS MESMOS AMO, E CRIADO.
 
 

Que aguarde Luís Ferreira de Norô=

Tão grande pespegar pelo besbê=!

Para o Puto, que aguarda tal pespê=,

E faz servir seu cu de cocó= .
 

Subverteu-se a cidade de Sodô=

Pelo muito, que andou de caranguê=:

A Palácio também cteio, sucé=

O mesmo, que à cidade de Gomô=.
 

Que desse em pescador Antônio Luí= ?

Nefando gosto tem o seu cará=,

Em não querer topar ponta de cri= .
 

Pois tanto se narnora do pescá=,

A cuama se vá pescar lombri=,

E em castigo de Deus morra queimá=.

topo

 

PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO.
 
 

No beco do cagalhão,

no de espera-me rapaz,

no de cata que farás

e em quebra-cus o acharam,

que tirando ao come-em-vão

que era esperador de cus,

lhe arrebentou o arcabuz

no beco de lava-rabos,

onde lhe cantam diabos

três ofícios de catruz.
 

Tomem pois exemplo aqui

o Tucano e o Ferreira,

pois lhos diz esta caveira,

aprended, flores, de mi:

mais aqui, ou mais ali

sempre os demônios são artos

sempre bichos, e lagartos,

e dar-lhe-ão sobre beijus,

a comer sempre cuscuz,

a ver se se dão por fartos.

topo

 

 

REPETE A MESMA SATYRA.

 

Quem aguarda a luxúria do Tucano

Também pode esperar a do Lagarto,

Se acaso conceber, verá no parto

A substância que leva do tutano.
 

Estes, que se debreiam mano a mano,

Disciplinar-se-ão de quarto em quarto,

E o que de mais sustância estiver farto,

A via busque, que o negócio é cano.
 

Conheça a Inquisição estas verdades,

E como é certo, o que o soneto diz,

Paguem-se em vivo fogo estas maldades,
 

Ardendo morram já como Solis,

E como arderam já duas cidades,

Ardam Luís Ferreira, e Antônio Luís.

topo

 

 

AO MESMO ASSUMPTO.

 
 
MOTE
 
Quem sai a mijar de Beja
por fora de Vidigueira
Dá c'o piçalho em Ferreira.
 
 
Senhora velha roupeira

pois todo Alentejo andou

não me dirá, quanto achou,

que vai de Beja a Ferreira:

porque outra velha embusteira,

com profia, e com inveja,

não quer que uma légua seja,

e por palmos de cará

diz, que só um palmo achará

quem sai a mijar de Beja.
 

Isto a velha quer, que seja,

e do seu querer colijo,

que vai a beber do mijo,

quem sai a mijar de Beja:

porém quem saber deseja

a conclusão verdadeira,

deste caminho, ou carreira,

pelos passos do pismão

quer saber, que passos vão

por fora da Vidigueira.
 

Porque parvoíce fora

não ver entre boca, e centro,

que uma cousa é mijar dentro

outra cousa andar por fora:

e assim vós, minha Senhora

velha, que nesta carreira

já sois useira, e vezeira

desmenti da velha a inveja,

pois diz, que quem sai de Beja,

dá co piçalho em Ferreira.

topo


 

DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO:
 
 

Sal, cal, e alho

caiam no teu maldito caralho. Amém.

O fogo de Sodoma e de Gomorra

em cinza te reduzam essa porra. Amém

Tudo em fogo arda,

Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.

topo


 

DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS
AO MESMO GOVERNADOR SATYRIZADO.

 

Desta vez acabo a obra,

porque é este o quarto

tomo das ações de um Sodomita,

dos progressos de um fanchono.

Esta é a dedicatória,

e bem que preverto o modo,

a ordem preposterando

dos prólogos, os prológios.

Não vai esta na dianteira,

antes no traseiro a ponho,

por ser traseiro o Senhor,

a quem dedico os meus tomos.

A vós, meu Antônio Luís,

a vós, meu Nausau ausônio,

assinalado do naso

pela natura do rosto:

A vós, merda dos fidalgos,

a vós, escória dos Godos,

Filho do Espírito Santo,

E bisneto de um caboclo:

A vós, fanchono beato,

Sodomita com bioco,

e finíssimo rabi

sem nascerdes cristão-novo:

A vós, cabra dos colchões,

que estoqueando-lhe os lombos,

sois fisgador de lombrigas

nas alagoas do olho:

A vós, vaca sempiterna

cosida, assada, e de molho,

Boi sempre, Galinha nunca

in secula seculorum:

A vós, ó perfumador

do vosso pagem cheiroso,

para vós algália sempre,

para vós sempre mondongo:

A vós, ó enforcador,

e por testemunhas tomo

os Irmãos da Santa Casa,

que lhes carregam os ossos:

Pois no dia dos Finados,

quando desenterram mortos

também murmuram de vós

pela grã carga dos ombros:

A vós, ilustre Tucano,

mal direito, e bem giboso,

pernas de rolo de pau,

antes de o levar ao torno:

A vós: basta tanto vós,

porque este insensato Povo

vendo, que por vós vos trato,

cuidará, que sois meu moço:

A vós dedico, e consagro

os meus volumes, e tomos,

defendei-os, se quiserdes,

e se não, vai nisso pouco.

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APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ.
 
 

Agora saio eu a campo

por vós, meu Antônio Luís,

que já fede tanto verso,

e enfada tanto pasquim!

Que vos quer esta canalha

tropel de vilões ruins,

tanto Poeta sendeiro,

tanto trovador rocim?

Se fizestes mau governo,

que é certo, que foi ruim,

eles, que o façam pior,

que eu lhe dou das quatro mil.

Entorcastes muita gente?

mente, quem tal coisa diz:

Gabriel os enforcava,

que eu com estes olhos vi.

É verdade, que gostáveis

vós muito de vê-los ir,

sois amigo de enforcados,

ter-lhes ódio, isso fora ruim.

Cada qual gosta, o que gosta,

uns carneiro outros perdiz,

vós um quarto de enforcado,

e eu de um quarto do pernil.

Em gostos não há disputa

dai ao demo o povo vil,

que até nos gostos se mete

a ser dos gostos juiz.

O querer não tem razão,

que a vontade é mui sutil,

e assim por onde quer entra,

e talvez não quer sair.

Cada um quer, o que quer,

não há nisto, que arguir,

fez Deus as vontades livres,

prendê-las é frenesi.

Sois amigo de enforcados,

quem vo-lo pode impedir?

oxalá fôreis amigo

levar o mesmo fim.

Ora vamos a farinha,

foi pouca, cara, e ruim:

mas vós não sois sol, nem chuva,

para haver de a produzir.

Eu confesso, que houve fome,

governando vós aqui,

sois mofino, e por contágio

ficou mofino o Brasil.

Ser mofino não é culpa,

a fortuna o quer assim:

quem é mofino consigo,

cos mais há de ser feliz?

Não vos mandou governar

El-Rei farinhas aqui,

as carnes, nem os pescados,

porém a forca isso sim.

Valha o diabo a vossa alma

cabelos de colomim,

mandou-vos El-Rei acaso

desgovernar os quadris?

Mandou-vos acaso El-Rei

com as fêmeas não dormir,

senão com vosso criado,

que é bomba dos vossos rins?

No mais vos levanta falsos

todo este povo civil,

mas isto do vosso corpo

vo-lo levanta o Luís.

Mandou-vos El-Rei acaso

a Sodoma, ou ao Brasil?

Se não viveis em Judá,

quem vos meteu a Rabi?

Mandou-vos El-Rei que fosse

vosso pajem meretriz,

madrasta de vossos filhos,

como dizem por aí?

Ora ide-vos co diabo,

que ja não quero acudir

por um Tucano, um Fanchono,

um Sodoma, um vilão ruim.

topo

 

 

DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR
EM METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO.
POR DIZER-SE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.
 
 

Bangüê, que será de ti

em vindo o Governador,

que manda El-Rei meu Senhor

para te botar daqui?

que será de ti, maldi-

to, que assaz a ti te toca

por neto de curiboca

e porque este teu pepino

no que é vaso feminino

jamais toca, nem emboca.
 

Que será de ti, Bangüê,

quando o sucessor vier,

que hás de perder a mulher,

que é fêmea de cutilque?

e se teu criado é,

que o podes também levar,

não te há de sofrer o mar,

nem suas ondas sagradas,

antes por essas porradas

a porra te há de salgar.

topo


 

RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO
GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA.
 
 

Vá de retrato

por consoantes,

que e eu sou Timantes

de um nariz de tucano pés de Pato.
Pelo cabelo

começo a obra,

que o tempo sobra

para pintar a giba do camelo.
Causa-me engulho

o pêlo untado,

que de molhado

parece, que sai sempre de mergulho.
Não pinto as faltas

dos olhos baios,

que versos raios

nunca foram, senão a cousas altas.
Mas a fachada

da sobrancelha

se me assemelha

a uma negra vassoura esparramada.
Nariz de embono

com tal sacada,

que entra na escada

duas horas primeiro que seu dono.
Nariz, que fala

longe do rosto,

pois na Sé posto

na Praça manda pôr
 
a guarda em ala.

Membro de olfatos,

mas tão quadrado,

que um Rei coroado

o pode ter por copa de cem pratos.
Tão temerário

é o tal nariz,

que por um triz

não ficou cantareira de um armário.
Você perdoe,

nariz nefando,

que eu vou cortando,

e inda fica nariz, em que se assoe.
Ao pé da altura

no naso oiteiro,

tem o sendeiro,

o que boca nasceu, e é rasgadura.
Na gargantona

membro do gosto

está composto

o órgão mais sutil da voz fanchona.
Vamos à giba:

mas eu que intento,

se não sou vento

para poder trepar lá tanto arriba?
Sempre eu insisto,

que no horizonte

deste alto monte

foi tentar o diabo A Jesu Cristo.
Chamam-lhe autores,

por falar fresco

dorso burlesco,

no qual fabricaverunt peccatores.
E havendo apostas,

se é homem, ou fera,

se assentou, que era

um caracol, que traz a casa às costas.
De grande a riba,

tanto se entona,

que já blasona,

que enjeitou ser canastra por ser giba.
Ó pico alçado,

quem lá subira,

para que vira,

se és Etna abrasador se Alpe nevado!
Cousa pintada

sempre uma cousa,

pois onde pousa,

sempre o vêem de bastão sempre de espada.
Dos santos passos

na bruta cinta

uma cruz pinta

a espada o pau da cruz, e eles os braços.
Vamos voltando

para a dianteira,

que na traseira

o cu vejo açoutado por nefando.
Se bem se infere

outro fracasso,

porque em tal caso

só se açouta, quem canta o miserere.
Pois que seria,

que eu vi vergões?;

serão chupões,

que o bruxo do Ferreira lhe daria.
Seguem-se as pernas,

sigam-se embora,

porque eu por ora

não me quero embarcar em tais cavernas.
Se bem, que assento

nos meus miolos

que são dous rolos

de tabaco já podre, e fedorento.
Os pés são figas

a mor grandeza,

por cuja empresa

tomaram tantos pés  tantas cantigas.
Velha coitada

suja figura,

na arquitetura

da popa de Nau nova está entalhada.
Boa viagem

senhor Tucano,

que para o ano

vos espera a Bahia entre a bagagem.

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A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA OPOETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO.  


 

Quando Deus redimiu da tirania

da mão do Faraó endurecido

o Povo Hebreu amado, e esclarecido.

Páscoa ficou de redenção o dia.
 

Páscoa de flores, dia de alegria

Àquele Povo foi tão afligido

O dia, em que por Deus foi redimido;

Ergo sois vós, Senhor, Deus da Bahia.
 

Pois mandado pela alta Majestade

Nos remiu de tão triste cativeiro,

Nos livrou de tão vil calamidade.
 

Quem pode ser senão um verdadeiro Deus,

que veio estirpar desta cidade

O Faraó do Povo Brasileiro.

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AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE
SUA SOGRA, A QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE,
DE QUE MORREO DEPOIS.
 
 

Alto Príncipe, a quem a Parca bruta

Aos estragos negando-se de horrível,

Quando acredita assombro no inflexível,

Em rendimento a vossos pés tributa.
 

Tímida a vossa vista se reputa,

E o mostra nesta ação quase visível,

Onde em vós o pesar, sendo possível,

Reverente o rigor não executa.
 

Pouco faz a Bahia, se venera

Humilde, e grata a vossa presidência,

Se inda a morte convosco não é fera
 

Porque admirando em vós tanta excelência

Para dar-vos um golpe, astuta espera

(Por temer-vos, Senhor) a vossa ausência.

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LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM
SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO.
 
 

Vindes da Mina, e só trazeis a fama,

De que vosso valor fez alta empresa,

Que não consiste a glória na riqueza

No seu desprezo sim, que honra se chama.
 

O vosso zelo, que ambição se inflama,

Do serviço fiel de Sua Alteza

Lhe deu prudente aquela Fortaleza,

Que é padrão imortal, que vos aclama.
 

Quanto co'a espada, e co juízo obrastes,

Quanto na África, e Europa merecestes,

São ações, que convosco competistes.
 

Não vos queixeis do pouco, que alcançastes,

Pois na glória, em que a todos excedestes,

Dificultais o prêmio, ao que servistes.

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RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS
CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO.
 
 

Hoje é melhor ter mina, que ter fama,

Que no tesouro se acha a nobre empresa,

Porque onde se idolatra só riqueza,

A glória dos progressos nada clama.
 

Ambicioso e avarento mais se inflama

Pertendendo subir a nova alteza,

E fragando nos bens a fortaleza,

Quer estragar a honra, que se aclama.
 

Mas vós, que a acreditar-me tanto obrastes,

Fiado, no que, é certo, merecestes,

Em mérito, a que sempre competistes:
 

A mim me dais a glória, que alcançastes,

Que como vós em tudo me excedestes,

Té para me abonar hoje servistes.

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CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO
PELOS MESMOS CONSOANTES.

 

Nos assuntos, que dais à vossa fama,

Têm as invejas mais ardente empresa,

Pois se a glória do nome é mor grandeza,

No vosso acende mais ativa a chama
 

A emulação, que sempre assim se inflama,

O seu incêndio exala à suma alteza,

Mas esse incêndio em rara fortaleza

Salamandra vos faz, Fênix aclama.
 

Quanto nas armas valeroso obrastes,

Nas invejas prudente merecestes,

Triunfando sempre nunca competistes.
 

Mas outra maior glória inda alcançastes;

Não há Musa, que conte, o que excedestes,

Nem grandeza, que pague, o que servistes.

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 AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS
OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO
DE HUMA GRAVE DOENÇA.
 

 

Oitavas canto agora por preceito,

Sem que na oitava possa diligente

Louvar as excelências de um sujeito,

Que pode ser em tudo o melhor Lente:

Mas como em mim não pode ser perfeito

O canto, ficará menos cadente

A música de Apolo, e de Talia,

Que não há cantar bem sem melodia.
 

Se do tempo perfeito o meu compasso

A compasso cantara neste canto,

Não faltara à garganta agora o passo,

E em passos de garganta fora espanto:

Porém se em canto nunca da mão passo

Como posso afinar no canto tanto,

Que me atreva a cantar vossa ciência,

Sem que falte ao compasso na cadência.
 

Canora a voz tomara, e tão suave,

Que em passos largos, e ecos repetidos

Sonora requintasse aquela clave,

Em que fossem meus ecos esparcidos:

Porém se o vosso nome o canto grave

Eleva suspendendo os mais sentidos,

Com a voz, que formar o meu alento

Chegar posso tarnbém ao Firmamento.
 

Discutindo esse globo de ciências

No mapa desta esfera Americana,

Acho um todo formado de excelências

Maravilha fatal em forma humana:

De modo se une, e formam as essências

Que o natural as graças vos germana:

Mas que muito se vós no largo mundo

Sois da graça, e ciências tão fecundo.
 

Se emulações tiraram Luzimentos,

Que soube a natureza vincular-vos,

Apolo não perdera os pensamentos,

Temendo-se na empresa de louvar-vos:

Suspende a admiração os vãos intentos

Ao discurso, que emprende realçar-vos,

Que a Musa enfraquecida, a pena leve

Nunca diz, o que sente, no que escreve.
 

Deixem-se os Gregos já do seu Eliano,

Condenam a silêncio um Xenofonte,

Não louve Alexandria Herodiano,

Que na Bahia tem Timocreonte:

O qual pode ensinar Quintiliano,

Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte,

Platões, Anaximandros, e Musés,

Acusilaus, Priscianos, e a Timéus.
 

Nos anos climatéricos glorioso

Vosso nome será tão dilatado,

Que suba, onde o decrépito invejoso

O veja nas estrelas colocado:

Sereis novo Planeta luminoso,

E Sol em nova esfera sublimado,

Que, a quem o mundo singular aclama,

Só descansa no céu com ele a fama.
 

Separar vossas partes, e Louvores

Absurdo fora certo, e averiguado,

Que à grandeza dos orbes superiores

Ninguém pode pôr termo limitado:

Receba o infinito por maiores,

Quem foi por singular ao mundo dado,

Com que as partes publica deste modo,

Quem de todo admirado admira o todo.
 

Cesse pois em louvar-vos minha pena,

Que impossível será, que sem engano

Presuma, que fazendo esta novena

Vos possa ponderar em todo um ano:

Este novo, e felice, que hoje ordena

O Céu, lograi, Senhor, sem tanto dano,

Porque sejam em vós os mais gloriosos

Aqueles, que vos faltam de invejosos. (Gregório de Matos)  

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