CORA CORALINA
Biografia 1889-1985 Cora Coralina nasceu em Goiás em 20/08/1889 e morreu em 10/04/1985. Sua obra se caracteriza pela espontaneidade e pelo retrato que traça do povo do seu Estado, seus costumes e seus sentimentos. Utilizando-se de ricos jogos de palavras, comenta a própria vida (ou vidas) e sua terra natal, abordando temas profundos, mas com simplicidade.
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Poesias Eternas
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Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
O débito universal
jamais quitado.
Perseguidos. Espoliados. Rejeitados.
Discriminados.Escravizados, Gaseados Redivivos.
Povo Heróico.
De tua crença indômita veio o Deus único.
De teu povo veio o Cristo.
Veio a Virgem Maria.
Vieram os Profetas.
Os evangelistas.
E os grandes ensinamentos dos Evangelhos.
No Decálogo orienta-se
toda a Civilização do Ocidente.
Ainda não existiam os códigos
dos povos civilizados e já os princípios imutáveis
da Lei e da Justiça estavam inseridos
nas páginas remotas do Pentateuco
e deles serve-se o Direito Contemporâneo.
Judeu, meu irmão.
Morta... serei árvore
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira
Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.
Alguns perguntam pela minha vida, pelo embrião primário,
de como veio e se encontrou comigo a minha poesia,
a presença primeira do meu primeiro verso, eu respondo:
Ela cascateia há milênios.
Minha Poesia... Já era viva e eu, sequer nascida.
Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho.
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos:
pedras quebradas no rolar e bater de tantas pedras.
Dura foi a vida que me fez assim. Dura, sem ternura.
Dolorida sem sentir a dor.
Ausente sem sentir a ausência.
Distante tateando na distância.
Tudo cruel. Todos cruéis.
Impiedosos.
Em torno, o abandono.
Aninha, a menina boba da casa.
Foi uma ex-escrava que me amamentou no seu seio fecundo.
Eram os seus braços prazenteiros e generosos
que me erguiam, ainda rastejante, e
Aninha adormedia, ouvindo
estórias de encantamento.
Minha madrinha Fada...
Eu era Aninha Borralheira.
Era ela que me tirava da cinza
e me calçava sapatinhos de cristal.
Me vestia. Me carregava na Procissão.
Eu dormia na cadeirinha de seus braços.
E sonhava que era um anjo de verdade
aconchegada na nuvem macia do seu xaile.
Toda a melhor lembrança da minha puerícia distante
está ligada a essa antiga escrava.
No tarde da minha vida assento o seu nome na pedra rude
do meu verso: Mãe Didi.
Para você, Mãe Didi, esta página sem brilho
do Meu Livro de Cordel.
Eu sou a velha
mais bonita de Goiás.
Namoro a lua.
Namoro as estrelas.
Me dou bem
com o rio Vermelho.
Tenho segredo
como os morros
que não é de adivinhá.
Sou do beco do Mingu,
sou do larguinho
do Rintintim.
Tenho um amor
que me espera
na rua da Machorra,
outro no Campo da Forca.
Gosto dessa rua
desde o tempo do bioco
e do batuque.
Já andei no Chupa Osso.
Saí lá no Zé Mole.
Procuro enterro de ouro.
Vou subir o Canta Galo
com dez roteiros na mão.
Se você quiser, moço,
vem comigo:
Vamos caçar esse ouro,
vamos fazer água --- loucos
no Poço da Carioca,
sair debaixo das pontes,
dar que falar
às bocas de Goiás.
Já bebi água do rio
na concha da minha mão.
Fui velha quando era moça.
Tenho a idade de meus versos.
Acho que assim fica bem.
Sou velha namoradeira.
Lancei a rede na lua,
ando catando as estrelas.
Meu companheiro de vida será um homem corajoso
de trabalho,
servidor do póximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.
Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvorede Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas
portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.
Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente ao trablaho e à terra
que os ensinarei a amar.
E eu morrerei tranqüilamente dentro de um campo
de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei...
Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d'água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira. - Enxerto de terra, Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos, Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida - a vida mera das obscuras.!
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.