A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

CASTRO ALVES

Biografia

1847-1871

Brasil Brasil

      Aos quatorze dias do mês de março, no ano de 1847, nasceu Antônio de Castro Alves, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas da vila de Curralinho, hoje cidade de Castro Alves. Era filho do Dr. Antônio José Alves e D. Clélia Brasília da Silva Castro. Passou a infância no sertão natal, e em 54 iniciou os estudos na capital baiana. 

Aos dezesseis anos foi mandado para o Recife. Ia completar os preparatórios para se habilitar à matrícula na Academia de Direito. A liberdade aos 16 anos é coisa perigosa. O poeta achou a cidade insípida.
Como ocupava os seus dias? Disse-o em carta a um amigo da Bahia: "Minha vida passo-a aqui numa rede olhando o telhado, lendo pouco fumando muito. O meu 'cinismo' passa a misantropia. Acho-me bastante afetado do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia mata-me. De vez em quando vou à Soledade." Que era a Soledade? Um bairro do Recife, onde o poeta tinha uma namorada. O resultado dessa vadiagem foi a reprovação  no exame de geometria. Mas em 64 consegue o adolescente matricular-se no Curso Jurídico. Se era tido por mau estudante, já começava a ser notado como poeta. Em 62 escrevera o poema "A Destruição de Jerusalém", em 63 "Pesadelo", "Meu Segredo", já inspirado pela atriz Eugênia Câmara, "Cansaço", "Noite de Amor", "A Canção do Africano" e outros. Tudo isso era, verdade seja, poesia muito ruim ainda. O menino atirava alto. "A poesia", dizia, "é um sacerdócio — seu Deus, o belo — seu tributário, o Poeta."
O Poeta derramando sempre uma lágrima sobre as dores do mundo. "É que", acrescentava, "para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição,  para chorar a humanidade — a poesia." Mas, no dia 9 de novembro de 1864, ao toque da meia-noite, na sotéia em que morava, o poeta, que sem dúvida se balançava na rede, fumando muito, sentiu doer-lhe o peito, e um pressentimento sinistro passou-lhe na alma. Pela primeira vez ia beber inspiração nas fontes da grande poesia: essa a importância do poema "Mocidade e Morte" na obra de Castro Alves.
Uma dor individual, dessas para as quais "Deus criou a afeição", despertou no poeta os acentos supremos, que ele depois saberá estender  às dores da humanidade, aos sofrimentos dos negros escravos (O Navio Negreiro), ao martírio de todo um continente (Vozes d'áfrica).
Não era mais o menino que brincava de poesia, era já o poeta-condor, que iniciava os seus vôos nos céus da verdadeira poesia. Naquela mesma noite escreve o poema, tema pessoal, logo alargado na antítese mocidade-morte, a mocidade borbulhante de gênio, sedenta de justiça, de amor e de glória, dolorosamente frustrada pela morte sete anos  depois.
A versão primitiva do Poema foi conservada em autógrafo, documento precioso
      porque revela duas coisas: o poeta não se contentava com a forma
      em que lhe saíam os versos no primeiro momento da inspiração;
      na tarefa de os corrigir e completar procedia com segura intuição
      e fino gosto. Cotejada a primeira versão com a que foi publicada
      pelo poeta em São Paulo, por volta de 68-69, verifica-se que todas
      as emendas foram para melhor. Baste um exemplo: o sexto verso da segunda
      oitava era na primeira versão "Adornada" com os prantos do arrebol,
      substituído na definitiva por "Que" banharam de prantos as alvoradas,
      verso que forma com o anterior um dístico de raro sortilégio
      verbal. 
Quase a meio do curso, em 67, o poeta, apaixonado pela portuguesa Eugênia 
      Câmara, parte com ela para a Bahia, onde faz representar um mau drama 
      em prosa — "Gonzaga" ou a "Revolução de Minas". Era sua intenção concluir o 
      bacharelato em São Paulo, aonde chegou no ano seguinte.
      A sua passagem pelo Rio assinalou-se pelos mesmos triunfos já alcançados
      em Pernambuco. Em São Paulo, nos fins de 68, feriu-se num pé
      com um tiro acidental por ocasião de uma caçada, do que resultou
      longa enfermidade, em que teve o poeta que se submeter a várias
      intervenções cirúrgicas e finalmente à amputação
      do pé. O depauperamento das forças conduziu-o à tuberculose
      pulmonar, a que sucumbiu em 71 no sertão de sua província
      natal. Antes de regressar a ela, publicara, em 70, o livro "Espumas Flutuantes",
      cantos por ele definidos como rebentando por vezes, ao estalar fatídico
      do látego da desgraça", refletindo por vezes "o prisma fantástico
      da ventura ou do entusiasmo".
Vulgarmente melodramático na desgraça, simples e gracioso na ventura, o que 
      constituía o genuíno clima poético de Castro Alves era o entusiasmo
      da mocidade apaixonada pelas grandes causas da liberdade e da justiça
      — as lutas da Independência na Bahia, a insurreição
      dos negros de Palmares, o papel civilizador da imprensa, e acima de todas
      a campanha contra a escravidão. Mas este último tema não
      figurava nas "Espumas Flutuantes". As composições em que
      o tratava deveriam formar o poema "Os Escravos", o qual teria como remate
      "A Cachoeira de Paulo Afonso", publicada postumamente. Deixava ainda o
      poeta outras poesias avulsas, que era seu propósito reunir em outro
      livro intitulado "Hinos do Equador".
      Ao livro "Os Escravos" pertenceriam "Vozes d'áfrica" e "O Navio Negreiro", 
      os dois poemas em que o poeta atingiu a maior altura de seu estro. O primeiro é 
      uma soberba apóstrofe do continente escravizado, a implorar justiça de Deus. 
      O que indignava o poeta era ver que o Novo Mundo, "talhado para as grandezas, 
      pra crescer, criar, subir", a América, que conquistara a liberdade com formidável
      heroísmo, se manchava no mesmo crime da Europa.
      No "O Navio Negreiro" evocava o poeta os sofrimentos dos negros na travessia da 
      África para o Brasil. Sabe-se que os infelizes vinham amontoados no porão e só
      subiam ao convés uma vez ao dia para o exercício higiênico,
      a dança forçada sob o chicote dos capatazes.
 Em Castro Alves cumpre distinguir o lírico amoroso, que se exprimia quase sempre 
      sem ênfase e às vezes com exemplar simplicidade, como no formoso quadro do
      poema "Adormecida", o poeta descritivo, pintando com admirável verdade
      e poesia a nossa paisagem, tal em "O Crepúsculo Sertanejo", cumpre
      distingui-lo do épico social desmedindo-se em violentas antíteses,
      em retumbantes onomatopéias. A este último aspecto há
      que levar em conta a intenção pragmática dos seus
      cantos, escritos para serem declamados na praça pública,
      em teatros ou grandes salas —, verdadeiros discursos de poeta-tribuno.
      E há que reconhecer nele, mau grado os excessos e o mau-gosto ocasional,
      a maior força verbal e a inspiração mais generosa
      de toda a poesia brasileira.

Poesias Eternas

A América e o Livro

Boa Noite

Mocidade e Morte

O Adeus de Teresa

O Laço de Fita

Os Três Amores

Vozes D'África

A Meu Irmão

Dedicatória

Aquela Mão

 

 

 

 


 
                 

A AMÉRICA E O LIVRO

A América e o Livro

Talhado para as grandezas,
Pra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
- Estatuários de colossos -
Cansado doutros esboços,
Disse um dia Jeová:
"Vai, Colombo, abre a cortina
Da minha eterna oficina...
Tira a América de lá".

Olhando em torno então brada:
"Tudo marcha!...Ó grande Deus!
As cataratas - pra terra,
As estrelas - para os céus
Lá, do pólo sobre as plagas,
O seu rebanho de vagas
Vai o mar apascentar...
Eu quero marchar com os ventos,
Com os mundos...c'os firmamentos!!!"
E Deus responde - "Marchai!"

Filhos do céu das luzes!
Filhos da Grande Nação!
Tereis um livro na mão:
O livro ­ esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca Ter Waterloo...
Pólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade voou!

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto ­
As almas buscam beber...
Oh, bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe ­ que faz a palma,
É chuva ­ que faz o mar.

Bravo! A quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.
Como Goeth moribundo
Brada "Luz!", o Novo Mundo,
Num brado de Briaréu...
Luz! Pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus, colhe gênios no céu!...

topo


  

                        (Castro Alves)
BOA NOITE


Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa-noite!... E tu dizes - Boa-noite.
Mas não mo digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito,
- Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu! Ouve... a calhandra.
Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti? ...Pois é mentira...
... Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se a estrela d'Alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo da alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."

É noite ainda! Brilha na cambraia
- Desmanchando o roupão, a espádua nua ­
O globo de teu peito, entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...

É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Rescende a alcova aos trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
- São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

topo


  

                        (Castro Alves)
MOCIDADE E MORTE


Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela na amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
- Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria :
Terás o sono sob a lájea fria.

Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! O seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas...
Vem! Formosa mulher ­ camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas,
Minha alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...

E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: - Impossível!

Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me : Maldito! ­
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi o fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida ­ novo Tântalo ­
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda hebraica,
O estilete de deus quebra-me a taça.

É que até minha sombra é inexorável,
Morrer! Morrer! Soluça-me implacável.

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! Amor! Anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar, fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro ­ a terra,
Por glória ­ nada, por amor - a campa.

Adeus!... arrasta-me uma voz sombria.
Já me foge a razão da noite fria!...

  

                        (Castro Alves)

topo

 
O ADEUS DE TERESA


A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos gritos seus...
E amamos juntos... E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...

E ela, corando, murmurou-me: " Adeus".

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavalheiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me : "Adeus!"

Passaram tempos ... séculos de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empírio...
Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei!... descansa!..."
Ela, chorando mais que uma criança.

Ela em soluços murmurou-me: "Adeus!"

Quando voltei...era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...

E ela arquejando murmurou-me: "Adeus!"

topo



  

                        (Castro Alves)
O LAÇO DE FITA


Não sabes, criança? Estou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me

Num laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos de moça bonita,
Fingindo a serpente que enlaça a folhagem
Formoso enroscava-se

O laço de fita.

Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual o pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente cativo, submisso
Rolar prisioneiro

Num laço de fita.

E agora enleada na tênue cadeia
Debalde minha alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,

Ó laço de fita!

topo




  

                        (Castro Alves)
OS TRÊS AMORES


I

Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora.
Sou Tasso! ... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes...
- Tu és Eleonora...

II

Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta,
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu ... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
E tu é Julieta...

III

Na volúpia das noites andalusas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan! ... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és ­ Julia, a espanhola!...

topo


  

                        (Castro Alves)
VOZES D'ÁFRICA


Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?  

Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes 

	Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito, 

Que embalde desde então corre o infinito...

	Onde estás, Senhor Deus?...





Qual Prometeu tu me amarraste um dia 

Do deserto na rubra penedia

	— Infinito: galé! ...

Por abutre — me deste o sol candente, 

E a terra de Suez — foi a corrente 

	Que me ligaste ao pé...





O cavalo estafado do Beduíno 
						 
Sob a vergasta tomba ressupino 

	E morre no areal.

Minha garupa sangra, a dor poreja, 

Quando o chicote do simoun dardeja 

	O teu braço eternal.





Minhas irmãs são belas, são ditosas... 

Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas 

Dos haréns do Sultão.

Ou no dorso dos brancos elefantes 

Embala-se coberta de brilhantes 

Nas plagas do Hindustão.





Por tenda tem os cimos do Himalaia... 
						
Ganges amoroso beija a praia 

Coberta de corais ...

A brisa de Misora o céu inflama;

E ela dorme nos templos do Deus Brama,

— Pagodes colossais...





A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...

A mulher deslumbrante e caprichosa,

Rainha e cortesã.

Artista — corta o mármor de Carrara; 

Poetisa — tange os hinos de Ferrara,

No glorioso afã! ...





Sempre a láurea lhe cabe no litígio...

Ora uma c'roa, ora o barrete frígio 

Enflora-lhe a cerviz.

Universo após ela — doudo amante 

Segue cativo o passo delirante 

Da grande meretriz.





			....................................





Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada 

Em meio das areias esgarrada,

Perdida marcho em vão!

Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 

talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!

Não descubras no chão...





E nem tenho uma sombra de floresta... 

Para cobrir-me nem um templo resta 

No solo abrasador...

Quando subo às Pirâmides do Egito 

Embalde aos quatro céus chorando grito:

"Abriga-me, Senhor!..."





Como o profeta em cinza a fronte envolve, 

Velo a cabeça no areal que volve 

O siroco feroz...

Quando eu passo no Saara amortalhada... 

Ai! dizem: "Lá vai África embuçada 

No seu branco albornoz. . . "





Nem vêem que o deserto é meu sudário, 

Que o silêncio campeia solitário 

Por sobre o peito meu.

Lá no solo onde o cardo apenas medra 

Boceja a Esfinge colossal de pedra 

Fitando o morno céu.





De Tebas nas colunas derrocadas 

As cegonhas espiam debruçadas 

O horizonte sem fim ... 

Onde branqueia a caravana errante, 

E o camelo monótono, arquejante 

Que desce de Efraim





	.......................................




Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! 

É, pois, teu peito eterno, inexaurível

De vingança e rancor?... 

E que é que fiz, Senhor? que torvo crime 

Eu cometi jamais que assim me oprime 

Teu gládio vingador?!





		........................................

Foi depois do dilúvio... um viadante, 

Negro, sombrio, pálido, arquejante,

Descia do Arará...

E eu disse ao peregrino fulminado:

"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...

— Serei tua Eloá. . . "





Desde este dia o vento da desgraça 

Por meus cabelos ululando passa 

O anátema cruel.

As tribos erram do areal nas vagas, 

E o Nômada faminto corta as plagas 

No rápido corcel.





Vi a ciência desertar do Egito... 

Vi meu povo seguir — Judeu maldito —

Trilho de perdição.

Depois vi minha prole desgraçada 

Pelas garras d'Europa — arrebatada —

Amestrado falcão! ...





Cristo! embalde morreste sobre um monte 

Teu sangue não lavou de minha fronte 

A mancha original.

Ainda hoje são, por fado adverso, 

Meus filhos — alimária do universo,

Eu — pasto universal...





Hoje em meu sangue a América se nutre 

Condor que transformara-se em abutre,

Ave da escravidão,

Ela juntou-se às mais... irmã traidora 

Qual de José os vis irmãos outrora 

Venderam seu irmão.





Basta, Senhor!  De teu potente braço 

Role através dos astros e do espaço 

Perdão p'ra os crimes meus!  

Há dois mil anos eu soluço um grito...

escuta o brado meu lá no infinito,

Meu Deus!  Senhor, meu Deus!!...

 
São Paulo, 11 de junho de 1868 (Castro Alves)

topo

 

 

 

 

A Meu Irmão

GUILHERME DE CASTRO ALVES

 

 

Na Cordilheira altíssima dos Andes

Os Chimborazos solitários, grandes

Ardem naquelas hibernais regiões.

Ruge embalde e fumega a solfatera...

É dos lábios sangrentos da cratera

Que a avalanche vacila aos furacões.

A escória rubra com os geleiros brancos

Misturados resvalam pelo francos

Dos ombros friorentos do vulcão...

 

 

 

.................................

 

 

 

Assim, Poeta, é tua vida imensa,

Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...

E são lavas lá dentro o coração.

topo

 

 

 

 

 

 

Dedicatória

 

 

A pomba d'aliança o vôo espraia

Na superfície azul do mar imenso,

Rente... rente da espuma já desmaia

Medindo a curva do horizonte extenso...

Mas um disco se avista ao longe... A praia

Rasga nitente o nevoeiro denso!...

Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!

Ninho amigo da pomba forasteira! ...

 

Assim, meu pobre livro as asas larga

Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...

O mar atira-lhe a saliva amarga,

O céu lhe atira o temporal de inverno. . .

O triste verga à tão pesada carga!

Quem abre ao triste um coração paterno?...

É tão bom ter por árvore — uns carinhos!

É tão bom de uns afetos — fazer ninhos!

 

 

 

Pobre órfão! Vagando nos espaços

Embalde às solidões mandas um grito!

Que importa? De uma cruz ao longe os braços

Vejo abrirem-se ao mísero precito...

Os túmulos dos teus dão-te regaços!

Ama-te a sombra do salgueiro aflito...

Vai, pois, meu livro! e como louro agreste

Traz-me no bico um ramo de... cipreste!

 

 

 

 

 

ESPUMAS FLUTUANTES

topo

 

 

 

 

Aquela Mão

 

 

 

 

ERA U'A MÃO de luxo... Era um brinquedo!...

Mas tão bonita que metera medo,

Se não fosse, meu Deus! tão meiga e franca!

Mão p'ra se encher de gemas e brilhantes,

De suspiros, de anelos palpitantes...

Mas p'ra estalar as jóias e os amantes...

Aquela mão tão branca!

 

 

Era u'a mão fidalga... exígua, escassa!

Mão de Duquesa! Era u'a mão de raça

De sangue azul, em veios de Carrara!

Alva, tão alva que vencia a idéia

Das neblinas, dos gelos e da garça!...

Amassada no leite de Amaltéia

Aquela mão tão rara!

 

 

Tinha um gesto de musa! — Mão que voa,

Que do piano na ideal lagoa,

As asas banha em rapidez não vista!...

Como a andorinha que se arroja à toa,

Cruzando em beijos a extensão das teclas!

Acendendo no seio a luz dos Eclas...

Aquela mão de artista!

 

 

 Mão de criança! Era u'a mão de arminhos,

Tendo essas covas, esses alvos ninhos,

De aves que a terra desconhece ainda!

Lembrando as conchas dos parcéis marinhos,

A polpa branca dos nascentes lírios...

Covas... porque se enterram mil delírios

Naquela mão tão linda!

 

 

No teatro, uma noite, casta, esquiva,

Na luva de pelica a mão cativa,

Recordava um eclipse de lua...

Mas um momento após, deixando o guante,

Vi salvar-se da espuma, rutilante,

Como Vênus despida e palpitante,

Aquela mão tão nua!

 

 

Era uma régia mão! Que largas vezes

Sonhei torneios, morriões, arneses,

Bravos ginetes de nevada crina,

Justas feridas entre mil reveses,

Da média idade a sanguinosa palma...

Só p'ra o louro atirar... e a lança e a alma...

Aquela mão tão fina!

 

 

Uma noite sonhei que, em minha vida,

Deus acendia a estrela prometida,

Que leva os Reis ao trilho da ventura;

Mas, quando, ao longo da poenta estrada,

O suor me escorria d'amargura...

Passava em meus cabelos perfumada

Aquela mão tão pura!

 

 

Era u'a mão que iluminara um cetro...

Mão que ensinava d’harmonia o metro

As esferas de luz que o dia encobres...

Tão santa que uma pérola indiscreta

Talvez toldasse esta nudez tão nobre...

Vazia Era a riqueza do Poeta

Aquela mão tão pobre!

 

 

Era u'a mão que provocava o roubo!

Era u'a mio para conter o globo!

Tinha a luz que arrebata, a luz que encanta!

Fôra o gênio de Sócrates o Grego!

Domara em Roma os cônsules e o lobo?

Mão que em trevas buscara Homero cego

Aquela mão tão santa!

 

 

POESIAS DIVERSAS

topo

Brasil Voltar para Poetas do Brasil

 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

1