ANÍBAL BEÇA
Biografia 1946 Anibal Beça é amazonense de Manaus, onde nasceu a 13 de setembro de 1946. É poeta, compositor popular e jornalista. Desde muito cedo colabora em suplementos literários e em publicações similares nacionais e internacionais. Especialista em Tecnologia Educacional na área de Comunicação Social (UFRJ), foi diretor de produção da TVE - Televisão Educativa do Amazonas. Atualmente é consultor da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos e editor do jornal literário "O Muhra", da mesma secretaria. Livros publicados: Convite Frugal (1966); Filhos da Várzea (1984); Hora Nua (1984); Itinerário Poético (1987); Noite Desmedida (1987); Mínima Fratura (1987); Quem foi ao vento, perdeu o assento (Teatro infantil, 1987); Marupiara - Antologia de novos poetas amazoneneses (organizador, 1989); Suíte para os habitantes da noite (1995); Banda da Asa - poemas reunidos. Abrigando também o livro inédito Ter/na Colheita (1998) e Gomos do Silêncio (1999) Em 1994 foi distinguido com o prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, na sua sexta versão, com o livro "Suíte para os Habitantes da Noite". É membro da UBE União Brasileira de Escritores. |
Poesias Eternas |
É
preciso urgente cortar os excedentes.Nada de adiposidades.
Estamos em crise.
Os adjetivos que me perdoem,
os substantivos são mais esbeltos,
e a Nova Era recomenda que sejamos seletos.
Há uma pena de andorinha voando à toa.
Há um redemoinho que nos afunda a proa.
Há uma onda marejada que não se escoa.
É preciso pôr um bêbado no timão do barco.
Que saiba das marés pelo trago das estrelas,
que saiba afundar levantando um brinde,
e mesmo nos destroços saber-se príncipe
salvo do rescaldo para o cetro da palavra:
La parole est mort. Vive la parole!
Há uma paixão em cada esquina torta.
Há um resto de angústia celebrando a morta.
Há um boi no labirinto procurando a porta.
É preciso correr atrás da utopia que se fez distante,
para que ela volte a habitar os dias mais comuns,
e faça que o sonho se pareça ao sonho,
mesmo sob o manto pessimista da névoa,
afiando o sabre na pedra que restou da cachoeira.
Ah, nuvens vermelhas, derramai vossa chuva de fogo!
Há um canto entravado na garganta.
Há um sufoco que já não me espanta.
Há um espelho que já não me encanta.
É preciso fugir do tempo perdido.
O que ficou pra trás encantou-se com a serpente,
e todos os dias buscamos novos corredores:
aléias renovadas para as pegadas recentes.
Salvemos aqui a parelha dos pés que suporta a canga
nesse itinerário do agora recolhendo ontens.
Há um solitário na mesa de um bar.
Há um suicida na voragem do mar.
Há um reclamante do verbo amar.
É preciso, finalmente, se apaixonar todos os dias.
Experimentar o gesto no corpo da amada.
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para que fique perene quando for saudade:
A vida se amplia num flash de coisas pequeninas,
e o que ficar são ecos de melodia transitória.
Há um desejo que me faz cantor.
Há uma paixão saída da sua cor.
Há um amor na contramão da dor.
Por isso anuncio o canto do meu tempo.
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que muito
lume de simples lamparina
num raio de curto-circuito
impresso numa chuva fina
nem sempre de ventos fortuitos
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais comum
como essa bigorna batida
forjando a ferradura em U
essa letra de idas e vindas
pisadas num chão de sussurros
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que um vão
olho d’água em funda cacimba
lavas de um antigo vulcão
que abriga na sua barriga
o enigma dessa explosão
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que um fio
mais que um estuário de eventos
lavados nas águas de um rio
tecido na palha do feno
é mais que um novelo macio
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que um meio
e não tem fim essa medida
e cada um vive o rateio
uma dúvida dividida
numa dádiva sem receios
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que menos
menos até que uma ferida
dos muitos amigos serenos
vaidades vãs ressentidas
caídas no barro terreno
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que nada
um solto cavalo sem brida
uma égua fogosa adestrada
as queixas de um falso suicida
são ternas canções dessa estrada
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que sorte
na sua alegria bem-vinda
nas suas fraquezas de porte
não há amor que se maldiga
nem há paixão que se comporte
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que nada
um solto cavalo sem brida
uma égua fogosa adestrada
as queixas de um falso suicida
são ternas canções dessa estrada
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que um pífaro
um sopro de som desabrido
nos pés desse sonho tão ínfimo
uma imagem só dissolvida
na breve balada sem ritmo
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que engano
um trocar de pé na descida
um passo a mais sendo paisano
é bala de guerra perdida
nesse mapa cotidiano
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais que acerto
inclusive o erro e a decaída
que são como frutos de enxertos
plantados nas curvas perdidas
colhidos no mesmo contexto
Uma vida é só uma vida
e tudo mais é mais valia
lucros & perdas perdas - dor mais doída
na conta melhor que se avia
flor da ganância desmedida
tão do Homem nessa porfia
Vida pra que te quero vida?
Uma vida é só uma vida
só uma vida é vivida
melhor se for dividida
e tudo mais é só
e tudo mais é
e tudo mais
e tudo
e
Começo pelo começo
bem calmo nesse arremesso,
e a boa velocidade
vem nos dedos sem alarde.
A pressa que traz desastres
está fora desse catre
e a cama dos seus desejos
é dela e dos meus harpejos.
Música de descoberta
é a que vem tão aberta
que sabe a chave da cela
inventando-se janela.
Sabe soltar essa fera
presa na teia da espera:
breve sopro no pescoço
toque macio no dorso.
As mãos em concha nos seios
colinas do meu passeio
sou cuidadoso alpinista
sei do mamilo a conquista.
A língua meu artefato
se atiça com muito tato
vai do ouvido ao seu regaço
e lúbrica banha o espaço.
O tempo se perde inteiro
num relógio sem ponteiros.
Já o disse certa vez
nas curvas da sensatez.
Os sons que saltam do corpo
úmidos de tanto rogo
se abafam num bafo quente
vapor de tesão fremente.
Há mistérios nas palavras
que nem a memória grava
são do instante a liberdade
que o vulgar vem sem as grades.
É quando desço ao regato
revelando no meu trato
o retrato e seu reflexo
toda a magia do sexo.
E o beijo mais escolhido
pousa nos pêlos tecidos
crespa canção guardiã
do milagre da manhã.
E ligeira se aligeira
a serpente mais rasteira
de língua malemolente
amaciando o presente.
Desnudo já me dou de mim doendo
na doação das folhas da floresta
que vão caindo sem saber-se sendo
pedaços de nós na noite deserta.
A lua imponderável vai ardendo
cúmplice em nossa luz de fogo e festa
Meus braços são dois galhos te dizendo
que o forte às vezes treme em sua aresta.
Esta outra face frágil de aparência
que só aos puros é dado conhecer
no abraço da paixão e sua ardência.
Mesmo cego de mim eu pude ver
e sentir no teu beijo a clara essência
que faz do nosso amor raro prazer.
onde o poeta se
auto-proclama
poeta e diz do seu
itinerário
Para meus filhos Aníbal,
Ricardo e Sacha
I
Quarenta anos já vivi
quarenta anos eu purguei
sem contar outros quarenta
dos poemas que tracei.
Quantos mais eu viverei?
Quarenta e poucas verdades
oitenta de muito amor
de poeta que não renega
a sina de fingidor.
Mas é bom que se pergunte:
– O que alimenta o poeta?
As mentiras e as verdades
conquistas e desamores
escaramuças boêmias
réstias de foice lunar
ou essa poeira de estrelas
que leva ao canto da boca?
II
Qual o legado ou herança
aos que chegarão depois?
Qual o filho amargará
pelas veredas de ofício
as linhas da minha dor?
Três varões de bela estirpe
por certo segredarão
os cantares mais sofridos
ouvidos da solidão
as cantigas mais que antigas
às fêmeas que tombarão.
Os três são da minha gesta
são três sementes que deixo.
Em qual... adubo serei?
Os três são da minha gesta
são três sementes que deixo.
Em qual... árvore serei?
Mas é bom clarificar:
são três sementes distintas
ligadas ao mesmo tronco
cada qual se circunscreve
ao seu rio particular.
III
Mas é bom que se esclareça:
Não deixo nada em espécie.
Deixo apenas as palavras
de fria tipologia
dos livros da minha lavra.
Além da minha guitarra
que viajou tantas canções
deixo os calos bulinosos
dos dez pássaros ariscos
acordes das minhas mãos.
Deixo também melodias
de cada paixão azul
minhas musas mais fremosas
que o vento se encarregou
de semear pelas nuvens.
E das minhas convicções
a ternura e a esperança
são a partilha mais viva
do repartir em comum.
No meu Poeminventário
a lição já foi descrita:
há que somar para o dia
o sol da democracia.
Mas no Brasil brasileiro
nunca é demais insistir
a redundância é uma prática
como um samba com pandeiro.
O que mais posso deixar?
As venturas de Bragança
os caminhos de Baeza
dos senhores da Biscaia
por que passamos por lá?
Ou estes versos do bispo
Bispo-poeta de Málaca
Dom João Ribeiro Gaio
que canta com ironia
a saga do clã dos Beça:
Geração é bem antiga
agora pouco lembrada
da honra muito amiga
mas a pobreza os obriga
de grandes tornarem-se em nada.
Mas é bom que eu agora afirme:
nunca me queixei ao bispo...
fui vassalo e menestrel
cantei em circo também
encilhador de cavalos
pelas várzeas cavalguei
astronauta de outros mundos
dos meus exílios forçados
e um dia até já fui rei
no asfalto onde só... eu sambei.
Quarenta anos já vivi
quarenta anos eu purguei
quantos mais eu viverei?
O dorso que se curva elegante
desenha na memória a leve dança
da bailarina grácil, celebrante
de rito sedutor, que me balança
toda vez que me vejo tão distante,
torcendo meus desejos na lembrança
dos momentos vividos, no constante
aprendizado vasto da mudança.
Posto que a vida corre em curtas curvas,
transitória paisagem, vário atalho
que vai modificando linhas turvas.
Mutante claridade me agasalha:
no casulo do gozo de sussurros
sei-me bicho saído dessa malha.
Meus olhos vão seguindo incendiados
a chama da leveza nesta dança,
que mostra velho sonho acalentado
de ver a bailarina que me alcança
os sentidos em febre, inebriados,
cativos do delírio e dessa trança.
É sonho, eu sei. E chega enevoado
na mantilha macia da lembrança:
o palco antigo, as luzes da ribalta,
renascença da graça do seu corpo,
balé de sedução, mar que me falta
para o mergulho calmo de um amante,
que se sabe maduro de esperar
essa viva paixão e seu levante.
O tempo que te alonga todo dia é duração que colhes na paisagem, tão distante e tão perto em ventania, sitiando limites na viagem. Desse mar que se afasta em maresia o vago em teu olhar se faz aragem nas vagas que se vão em vaga via vigia de teus pés no vão das margens. E o fio da teia vai fugindo fosco, irreparável névoa pressentida nos livros que não leste, nesses poucos momentos que sobravam da medida. Angústia de ponteiros, sol deposto, no tédio das desoras foge a vida. Vida que bem mereces por inteiro, e é pouca a que te dou de companheiro. Eu me inscrevo escritura cúmplice da fatura e nessa escrita inscrito escrevo o grito aflito. Um solo só de fogo nas águas do seu jogo ar no sopro do vento chão do quarto elemento. Também escrevo o urro não somente o sussurro o dito da alegria dita a caligrafia. Escavo e escrevo o cravo na rota dos pés cavos presa da ferradura em covas de funduras. Escrever-me no escrito sem o crivo mau dito e bem dizer do mal dito um bendito aval. Sou dois nessa serpente e mordo a cauda presente penso no ser do sonho corpo com que me assanho. Essa placenta envolta dá voltas muito soltas enforcado de mim chego no imo do fim. E sou e nada sei rei perdido na grei escravo do conflito eu lavro o meu escrito. Palavra que me leva leve ao vale das trevas no passo da claridade piso a luz da herdade. E o verbo se inicia grunhir de parceria sou fera da parelha no som que me assemelha. Domado domador mando e desmando a dor sou fim desse começo reinvento e recomeço. De novo começar precisa o sal do mar jorro de muita água choro de muita lágrima. Maravilha se assina alegria da campina firmo a sina feliz traço de claro giz. No silêncio me assumo surdo desse barulho e só me sinto muito pouco de tanto intuito. Escrevo o crivo escrito na escritura do rito subscrito e escrevo no risco mais primevo. No tempo que inda tenho pairo pensando e venho: banho na mesma água mágoas que o tempo lava. Não levo a dor da culpa nem pecado me avulta e livro da centelha o outro da parelha. Só não livro da dor quem não se deu no amor não soube na medida desmedir pela vida. De tanto ouvir nada tudo fica muito. Fruto oferecido ao meu paladar se me entreabrindo polpa de apetite. Vem se mastigando num castigo surdo sussurro macio de cioso som. O fruto palavra de doce mascavo repuxa viscoso no tacho da boca mel caramelado. Nas paredes brancas escarpas afiadas os dentes sedentos língua lambe-lambe lambuzando a cara. De comer no entanto tudo fica pouco já que somos muitos de uma mesma boca ciciando o que fica na sobra dos dentes os fiapos sitiados na ponta da língua prontos para o gesto de broca palito. Gagueja a sintaxe britadeira grita em solo de rocha. Há que repetir poundianamente o tripé poema os gregos de Tróia cavalo de phanus na sela do logus dança a melopéia. Aprendiz silente é quando descasco a casca do fruto e sorvo seus gomos o musgo da polpa no vão do barulho: Babel ó Babel! Dá-me a confusão as língua de fogo queimando meus sonhos. De tanto ouvir muito tudo fica surdo e se instala o mudo silêncio do mundo. A canção sozinha não da solidão mas a solitária sempre perseguida o fruto calado que abrirá os gomos. Este fruto muda de cor e de rumo camaleão ágil no repto do rapto valquírias aladas pousam na paisagem de ontem e de sempre e as muitas sereias no rastro de Ulisses reinventam os mares. Todas já passaram além Bojador todas já forjaram um céu meridiano no aço do seu fio o corte cortante o corte cortador. No sumo da palavra a gota se enxuga e lava a palavra. Nada há de novo no rio corrente onde banho a fruta. Esse recorrente ato da procura é que me alivia do novo especioso ato da invenção. No incêndio afogado sei-me palimpsesto. Musas dos irmãos socorrei-me musas e deitai comigo. Nascerão do incesto clones de mil faces anjos de asas tortas um decamerão frouxo e esparramado de um miglior cantor para um minor fabbro.
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