A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

ARY DOS SANTOS

Biografia

Poesias Eternas

Aprender a estudar

Condição humana

Kyrie

Arte peripoética

A máquina de costura

A máquina de escrever

Cavalo à Solta

Poeta castrado, não!

Soneto

 

 

 

 

 

 

Aprender a estudar

 

Estudar é muito importante,

mas pode-se estudar de várias maneiras....

Muitas vezes estudar não é só aprender

o que vem nos livros.

 

Estudar não é só ler nos livros

que há nas escolas.

E também aprender a ser livre,

sem ideias tolas.

Ler um livro é muito importante,

ás vezes urgente.

Mas os livros não são o bastante

para a gente ser gente.

É preciso aprender a escrever, mas também a viver, mas também a sonhar.

É preciso aprender a crescer,

aprender a estudar.

 

Aprender a crescer quer dizer:

aprender a estudar, a conhecer os outros,

a ajudar os outros,

a viver com os outros.

E quem aprende a viver com os outros

aprende sempre a viver bem consigo próprio.

Não merecer um castigo é estudar.

Estar contente consigo é estudar.

Aprender a terra, aprender o trigo

e ter um amigo também é estudar.

 

Estudar também é repartir,

também é saber dar

o que a gente souber dividir

para multiplicar.

Estudar é escrever um ditado

sem ninguém nos ditar;

e se um erro nos fôr apontado

é sabê-lo emendar.

É preciso em vez de um tinteiro,

ter uma cabeça que saiba pensar,

pois, na escola da vida, primeiro está saber estudar.

 

Cantar todas as papoilas de um trigal

é a mais linda conta que se pode fazer.

Dizer apenas música,

quando se ouve um pássaro,

pode ser a mais bela redacção do mundo...

mas pensar é tudo!

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Da condição humana

 

Todos sofremos.

O mesmo ferro oculto

Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.

O mesmo sal nos queima os olhos vivos.

Em todos dorme

A humanidade que nos foi imposta.

Onde nos encontramos, divergimos.

É sermos iguais que nos esquemos

Que foi do mesmo sangue,

Que foi do mesmo ventro que surgimos.

 

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.12

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Kyrie

 

Em nome dos que choram,

Dos que sofrem,

Dos que acendem na noite o facho da revolta

E que de noite morrem,

Com a esperança nos olhos e arames em volta.

Em nome dos que sonham com palavras

De amor e de paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.

Em nome dos que pedem em segredo

A esmola que os humilha e os destrói

E devoram as lágrimas e o medo

Quando a fome lhes dói.

Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento

O sono da miséria, terrível e profundo.

Em nome dos teus filhos que esqueceste,

Filho de Deus que nunca mais nasceste,

Volta outra vez ao mundo!

 

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.21

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Arte peripoética

 

Aristóteles, visita

da casa de minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só

esta maneira de ser

contra a maneira do tempo

esta maneira de ver

o que o tempo tem por dentro.

Aristóteles diria

entre dois goles de chá

que o melhor ainda seria

deixar o tempo onde está

pô-lo de perto no tema

e de parte na poesia

para manter o poema

dentro da ordem do dia.

Aristóteles, visita

da casa de minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só.

Ele sabia que o poeta

depois de tudo inventado

depois de tudo previsto

de tudo vistoriado

teria de fazer isto

para não continuar

o que já estava acabado

teria de ser presente

não futuro antecipado

não profeta não vidente

mas aço bem temperado

cachorro ferrando o dente

na canela do passado

adaga cravando a ponta

no coração do sentido

palavra osso furando

pele de cão perseguido.

Aristóteles, visita

de casa de minha avó,

não acharia esquisita

esta forma de estar só

esta maneira de riso

que é a mais original

forma de se ter juízo

e ser poeta actual.

Aristóteles, visita

de casa de minha avó,

também diria antes só

do que mal acompanhado

antes morto emparedado

em muro de pedra e cal

aonde não entre bicho

que não seja essencial

à evasão da palavra

deste silêncio mortal.

 

VINTE ANOS DE POESIA, ADEREÇOS, ENDEREÇOS, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.57

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A máquina de costura

 

Talhem-se as palavras justas

ao corpo do sofrimento

as imagens serão curtas

amplos os ombros do tempo

soltos os panos dos olhos

bordados os do talento

cosidos os dos ouvidos

ao forro do pensamento.

 

Tome-se o têxtil do tema

e corte-se o que é preciso

com a tesoura do riso.

Mas na orla do poema

depois da obra acabada

deixe-se ao menos um dedo

de tristeza embainhada.

 

 

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.71

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A máquina de escrever

 

Meu amor silabado minha exdrúxula

meu acento tão grave que me abre

minha rosa-dos-ventos minha bússola

minha vírgula tola meu sentido

reticências parágrafo gemido

 

A

caído

na tecla do ouvido

E

incerto

dois espaços parágrafo deserto

I

sorriso mundano que é preciso

O

círculo fechado

U

murmúrio atento e obrigado

 

Meu carreto de sonhos meu endereço

retrocesso paragem recomeço

minha caixa postal sem nada dentro

minha resposta paga TEMPO E VENTO

meus dois pontos de angústia CARNE E ÁGUA

minha letra dobrada MAR E MÁGOA

meu ditongo de sono PÃO E CÃO

meu açaimo de frases de palavras

agastadas batidas desgastadas

ditadas digitadas agitadas

pela dança guerreira dos meus dedos.

Minha letra maiúscula de MEDO

tabulador da minha solidão.

 

Minha aspa dos olhos minha infância

minha última cópia da verdade

til subtil caindo no papel

pelo trema abolido da saudade.

 

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.73

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Poeta castrado, não!

 

Serei tudo o que disserem

por inveja ou negação:

cabeçudo dromedário

fogueira de exibição

teorema corolário

poema de mão em mão

lãzudo publicitário

malabarista cabrão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

 

Os que entendem como eu

as linhas com que me escrevo

reconhecem o que é meu

em tudo quanto lhes devo:

ternura como já disse

sempre que faço um poema;

saudade que se partisse

me alagaria de pena;

e também uma alegria

uma coragem serena

em renegar a poesia

quando ela nos envenena.

 

Os que entendem como eu

a força que tem um verso

reconhecem o que é seu

quando lhes mostro o reverso:

 

Da fome já se não fala

- é tão vulgar que nos cansa -

mas que dizer de uma bala

num esqueleto de criança?

 

Do frio não reza a história

- a morte é branda e letal -

mas que dizer da memória

de uma bomba de napalm?

 

E o resto que pode ser

o poema dia a dia?

- Um bisturi a crescer

nas coxas de uma judia;

um filho que vai nascer

parido por asfixia?

- Ah não me venham dizer

que é fonética a poesia!

 

Serei tudo o que disserem

por temor ou negação:

Demagogo mau profeta

falso médico ladrão

prostituta proxeneta

espoleta televisão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

 

VINTE ANOS DE POESIA, RESUMO, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.131

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Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage

 

Meu sacana de versos! Meu vadio,

Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.

Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.

E é raro o poeta que entre nós faz escola.

 

Mastigam ruminando o desafio.

São uns merdosos que nos pedem esmola.

Aos vinte anos cheiram a bafio,

têm joanetes culturais na tola.

 

Que diria Camões, nosso padrinho,

ou o Primo Fernando que acarinho

como Pessoa viva à cabeceira?

 

O que me vale é que não estou sozinho,

ainda se encontram alguns pés de linhos

crescendo não sei como na estrumeira.

 

SONETOS PORTUGUESES, LELLO & IRMÃOS - EDITORES, 1995, P.104

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 Cavalo à solta

 

 

Minha laranja amarga e doce

meu poema

feito de gomos de saudade

minha pena

pesada e leve

secreta e pura

minha passagem para o breve, breve

instante da loucura

 

Minha ousadia

meu galope

minha rédea

meu potro doido

minha chama

minha réstia

de luz intensa

de voz aberta

minha denúncia do que pensa

do que sente a gente certa

 

Em ti respiro

em ti eu provo

por ti consigo

esta força que de novo

em ti persigo

em ti percorro

cavalo à solta

pela margem do teu corpo

 

Minha alegria

minha amargura

minha coragem de correr contra a ternura.

 

Por isso digo

canção castigo

amêndoa travo corpo alma amante amigo

por isso canto

por isso digo

alpendre casa cama arca do meu trigo

 

Meu desafio

minha aventura

minha coragem de correr contra a ternura

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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