ARY DOS SANTOS
Biografia |
Poesias Eternas Aprender a estudar |
Estudar é muito importante,
mas pode-se estudar de várias maneiras....
Muitas vezes estudar não é só aprender
o que vem nos livros.
Estudar não é só ler nos livros
que há nas escolas.
E também aprender a ser livre,
sem ideias tolas.
Ler um livro é muito importante,
ás vezes urgente.
Mas os livros não são o bastante
para a gente ser gente.
É preciso aprender a escrever, mas também a viver, mas também a sonhar.
É preciso aprender a crescer,
aprender a estudar.
Aprender a crescer quer dizer:
aprender a estudar, a conhecer os outros,
a ajudar os outros,
a viver com os outros.
E quem aprende a viver com os outros
aprende sempre a viver bem consigo próprio.
Não merecer um castigo é estudar.
Estar contente consigo é estudar.
Aprender a terra, aprender o trigo
e ter um amigo também é estudar.
Estudar também é repartir,
também é saber dar
o que a gente souber dividir
para multiplicar.
Estudar é escrever um ditado
sem ninguém nos ditar;
e se um erro nos fôr apontado
é sabê-lo emendar.
É preciso em vez de um tinteiro,
ter uma cabeça que saiba pensar,
pois, na escola da vida, primeiro está saber estudar.
Cantar todas as papoilas de um trigal
é a mais linda conta que se pode fazer.
Dizer apenas música,
quando se ouve um pássaro,
pode ser a mais bela redacção do mundo...
mas pensar é tudo!
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É sermos iguais que nos esquemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventro que surgimos.
VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.12
Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e de paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.21
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda seria
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
o que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
de casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
de casa de minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.
VINTE ANOS DE POESIA, ADEREÇOS, ENDEREÇOS, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.57
Talhem-se as palavras justas
ao corpo do sofrimento
as imagens serão curtas
amplos os ombros do tempo
soltos os panos dos olhos
bordados os do talento
cosidos os dos ouvidos
ao forro do pensamento.
Tome-se o têxtil do tema
e corte-se o que é preciso
com a tesoura do riso.
Mas na orla do poema
depois da obra acabada
deixe-se ao menos um dedo
de tristeza embainhada.
VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.71
Meu amor silabado minha exdrúxula
meu acento tão grave que me abre
minha rosa-dos-ventos minha bússola
minha vírgula tola meu sentido
reticências parágrafo gemido
A
caído
na tecla do ouvido
E
incerto
dois espaços parágrafo deserto
I
sorriso mundano que é preciso
O
círculo fechado
U
murmúrio atento e obrigado
Meu carreto de sonhos meu endereço
retrocesso paragem recomeço
minha caixa postal sem nada dentro
minha resposta paga TEMPO E VENTO
meus dois pontos de angústia CARNE E ÁGUA
minha letra dobrada MAR E MÁGOA
meu ditongo de sono PÃO E CÃO
meu açaimo de frases de palavras
agastadas batidas desgastadas
ditadas digitadas agitadas
pela dança guerreira dos meus dedos.
Minha letra maiúscula de MEDO
tabulador da minha solidão.
Minha aspa dos olhos minha infância
minha última cópia da verdade
til subtil caindo no papel
pelo trema abolido da saudade.
VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.73
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já se não fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
VINTE ANOS DE POESIA, RESUMO, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.131
Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage
Meu sacana de versos! Meu vadio,
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.
Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio,
têm joanetes culturais na tola.
Que diria Camões, nosso padrinho,
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?
O que me vale é que não estou sozinho,
ainda se encontram alguns pés de linhos
crescendo não sei como na estrumeira.
SONETOS PORTUGUESES, LELLO & IRMÃOS - EDITORES, 1995, P.104
Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve, breve
instante da loucura
Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa
Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo
Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.
Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo
Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.