A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

AGOSTINHO NETO

 

Biografia

1922-1979

Angola Angola

    Agostinho Neto nasceu em 1922 e faleceu em 1979. Foi o 1º Presidente da República Popular de Angola e líder do MPLA.

Poesias Eternas

Antigamente Era

Civilização Ocidental

Noite

O Choro de África

"Quintandeira"

 

 

 

 

 

 

 

 

Noite

 

Eu vivo

nos bairros escuros do mundo

sem luz nem vida.

 

Vou pelas ruas

às apalpadelas

encostado aos meus informes sonhos

tropeçando na escravidão

ao meu desejo de ser.

 

São bairros de escravos

mundos de miséria

bairros escuros.

 

Onde as vontades se diluíram

e os homens se confundiram

com as coisas.

 

Ando aos trambolhões

pelas ruas sem luz

desconhecidas

pejadas de mística e terror

de braço dado com fantasmas.

 

Também a noite é escura.

topo

 

 

 

 

Civilização Ocidental

 

Latas pregadas em paus

fixados na terra

fazem a casa

 

Os farrapos completam

a paisagem íntima

 

O sol atravessando as frestas

acorda o seu habitante

 

Depois as doze horas de trabalho

escravo

 

Britar pedra

acarretar pedra

britar pedra

acarretar pedra

ao sol

à chuva

britar pedra

acarretar pedra

 

A velhice vem cedo

 

Uma esteira nas noites escuras

basta para ele morrer

grato

e de fome.

 

 

SAGRADA ESPERANÇA

 

 

ANTIGAMENTE ERA


Antigamente era o eu-proscrito
Antigamente era a pele escura-noite do mundo
Antigamente era o canto rindo lamentos
Antigamente era o espírito simples e bom

Outrora tudo era tristeza
Antigamente era tudo sonho de criança

A pele o espírito o canto o choro
eram como a papaia refrescante
para aquele viajante
cujo nome vem nos livros para meninos

Mas dei um passo
ergui os olhos e soltei um grito
que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo

Harlem
Pekim
Barcelona
Paris
Nas florestas escondidas do Novo Mundo

E a pele
o espírito
o canto
o choro
brilham como gumes prateados

Crescem
belos e irresistíveis
como o mais belo sol do mais belo dia da Vida.


(1951)


 

 


O CHORO DE ÁFRICA


O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no circulo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África

e mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculos
inventado na servidão
em histórias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas

o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta força
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida

fechada em estreitos cérebros de máquinas de contar
na violência
na violência
na violência

O choro de África é um sintoma

Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.


                                      (Poemas, 1961)
 

 

"Quintandeira"
 
 
    A quitanda.
    Muito sol
    e a quintandeira à sombra
    da mulemba.

    - Laranja, minha senhora,
    laranjinha boa!

    A luz brinca na cidade
    o seu quente jogo
    de claros e escuros
    e a vida brinca
    em corações aflitos
    o jogo da cabra-cega.

    A quitandeira
    que vende fruta
    vende-se.

    - Minha senhora
    laranja, laranjinha boa!

    Compra laranjas doces
    compra-me também o amargo
    desta tortura
    da vida sem vida.

    Compra-me a infância do espírito
    este botão de rosa
    que não abriu
    princípio impelido ainda para um início.

    Laranja, minha senhora!

    Esgotaram-se os sorrisos
    com que chorava
    eu já não choro.

    E aí vão as minhas esperanças
    como foi o sangue dos meus filhos
    amassado no pó das estradas
    enterrado nas roças
    e o meu suor
    embebido nos fios de algodão
    que me cobrem.

    Como o esforço foi oferecido
    à segurança das máquinas
    à beleza das ruas asfaltadas
    de prédios de vários andares
    à comodidade de senhores ricos
    à alegria dispersa por cidades
    e eu
    me fui confundindo
    com os próprios problemas da existência.

    Aí vão as laranjas
    como eu me ofereci ao álcool
    para me anestesiar
    e me entreguei às religiões
    para me insensibilizar
    e me atordoei para viver.

    Tudo tenho dado.

    Até mesmo a minha dor
    e a poesia dos meus seios nus
    entreguei-os aos poetas.

    Agora vendo-me eu própria.
    - Compra laranjas
    minha senhora!
    Leva-me para as quitandas da vida
    o meu preço é único:
    - sangue.

    Talvez vendendo-me
    eu me possua.

    -Compra laranjas!
 

topo

Angola Voltar para Poetas de Angola

 

 

 

 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

1