A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

ÁLVARO ALVES DE FARIA

 

Biografia

Poesias Eternas

Que se calem os que não sabem da missão

Oração

Vagos são os dias vagos

O gesto é nulo

Pôr-do-sol em Portugal

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Que se calem os que não sabem da missão.

Existe em mim o ódio aos regimes e

sei que o mundo é mais triste.

Eu aglomerei a multidão e disse que é

tudo mentira, e procurei na grande noite

a grande afinidade, e vi o início terminado.

Eu tive a iniciativa de proibir e

fiquei na praça, e da praça nunca mais

eu vou sair. Eu tenho em mim os detalhes

do Apocalipse. Coloquei minha solidão

numa estufa e vi crescer uma noite,

na procura da suprema libertação.

 

I

O relógio é um orgão metálico em

nosso pulso. Todos ergam as mãos e

chorem as mães: o sermão do viaduto

vai começar: o trigo subirá à pedra

para a espiga do homem, e existirá

no rosto das estátuas. Eu exigirei

o retorno dos fugitivos da vida.

Nós vamos amarrar símbolos de ferro

nos pés, e gerar outro sentido da planta.

É preciso cavoucar no silêncio que se fez

na língua da escravidão: vamos à passagem,

ao deserto, expulsar do caminho a

sombra dos cactus e cobrir as chagas

com o coração.

Sim, eu amarei com a dor de um parto, e

estarei pleno das minhas convicções

para arranhar os grandes chifres dos enganados e

chorar um dilúvio em outra época

para erguer a estrela que caiu.

 

[O Sermão do Viaduto (30 anos depois). São Paulo: Traço Ed., 1997, pp.42-43]

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Oração

 

A puta reza

na Igreja da Consolação,

mas não há consolo

nessas estátuas de santos,

santas, anjos,

vitrais, hóstias,

não há consolo

não haverá consolo.

A puta reza

palavras comoventes

e depois se atira

sob o automóvel

oficial

do Governo do Estado.

 

[Lindas Mulheres Mortas. São Paulo: Traço Ed., 1990, p.44]

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Vagos são os dias vagos,

os vãos o verbo as vindas vagas vigas

a vida vaga

vagas são as plantas

os dedos mortos vagos

os dedos mortos

vagos são os mortos

apagados no branco do olhar

vagas são as letras

o sentido a terra a água o fogo

vago é o gozo o prazer é vago

na vaga beleza que preenche o vaso

mas não completa a imagem.

 

[O Azul Irremediável. São Paulo: Maltese, 1992, p.43]

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O gesto é nulo

no espaço livre da mão.

Nulo como o poema

que nulo insiste

na trajectória suicida.

O gesto é nulo

sempre será nulo

entre o olhar e o objecto.

Sempre será nulo

entre a cama e o corpo.

O gesto é nulo e nele

se conclui um aceno interceptado

como ave abatida

num vôo sem volta.

 

O gesto é nulo

como é nulo

imaginar que a poesia possa

interceder sem saber em quê.

Nulo o gesto atravessa o gesto

e se perde nas residências antigas

das pombas que não existem mais.

 

O gesto nasce do gesto

quando se constrói

num sinal imperceptível.

A mão escorre pelos azulejos

como vítima de um crime

e desliza pelos rodapés

como insetos cruéis.

Sem o gesto a mão não é mão.

 

Sem a mão o gesto se anula

e nulo o gesto não se faz.

O gesto é nulo dentro da casa

onde as pessoas morrem

nos porta-retratos.

O gesto é nulo

na sala de estar

onde não há mais ninguém.

 

[O Gesto Nulo. Curitiba: Ócios do Ofício, 1998, pp. 7-8]

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Pôr-do-sol em Portugal

 

QUANDO O SOL se põe,

as ruas de Portugal ficam

quietas como um pássaro.

Talvez hajam barcos saindo do porto

levando o corpo de Álvaro de Campos.

Os oceanos sempre serão menores

para tantas embarcações

que partem, velas invisíveis

no longínquo silêncio

de ondas que morrerão.

Quando o sol se põe,

as mulheres talvez cantem uma canção

e talvez amem homens tristes

em alamedas distantes,

onde a memória se perdeu

e onde a música não existe mais.

Quando o sol se põe,

as casas de Portugal ficam amarelas

e todas as janelas se fecham

em adeus a todas as coisas.

Quando o sol se põe,

os passos se perdem nas calçadas,

talvez os dias não amanheçam mais,

talvez as igrejas fechem

e talvez um lábio faça ainda uma súplica

de amor.

Quando o sol se põe,

as sombras de Portugal ficam mais

nítidas,

os casais talvez chorem,

talvez sorriam,

mas isso ninguém sabe,

mas isso ninguém saberá.

 

[Mulheres do SHOPPING, pp.13-14]

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12.

 

Aos poucos me refaço,

aos poucos me refiro,

aos poucos me retiro,

aos poucos me recordo,

aos poucos

aos poucos

aos poucos me transformo

aos poucos me atrevo,

aos poucos

aos poucos

aos poucos perco o pouco

aos poucos perco o pouso

aos poucos não consigo

aos poucos

aos poucos

a poucos passos da alma

de Coimbra

a poucos momentos do rosto

de Coimbra,

aos poucos

aos poucos Coimbra acho,

a alma

mais que a alma

aos poucos Coimbra mostra

aos poucos

aos poucos Coimbra nasce

e se acrescenta

e se faz

e se deslumbra

e se encanta

aos poucos Coimbra está,

aos poucos

aos poucos

aos poucos Coimbra é

no seu espaço

largo mais que a praça

que nunca se esquecerá.

 

[20 Poemas quase Líricos e algumas Canções para Coimbra. Coimbra: Editora A Mar Arte, 1999, pp.46-47]

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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