ÁLVARO ALVES DE FARIA
Biografia |
Poesias Eternas |
Que se calem os que não sabem da missão.
Existe em mim o ódio aos regimes e
sei que o mundo é mais triste.
Eu aglomerei a multidão e disse que é
tudo mentira, e procurei na grande noite
a grande afinidade, e vi o início terminado.
Eu tive a iniciativa de proibir e
fiquei na praça, e da praça nunca mais
eu vou sair. Eu tenho em mim os detalhes
do Apocalipse. Coloquei minha solidão
numa estufa e vi crescer uma noite,
na procura da suprema libertação.
I
O relógio é um orgão metálico em
nosso pulso. Todos ergam as mãos e
chorem as mães: o sermão do viaduto
vai começar: o trigo subirá à pedra
para a espiga do homem, e existirá
no rosto das estátuas. Eu exigirei
o retorno dos fugitivos da vida.
Nós vamos amarrar símbolos de ferro
nos pés, e gerar outro sentido da planta.
É preciso cavoucar no silêncio que se fez
na língua da escravidão: vamos à passagem,
ao deserto, expulsar do caminho a
sombra dos cactus e cobrir as chagas
com o coração.
Sim, eu amarei com a dor de um parto, e
estarei pleno das minhas convicções
para arranhar os grandes chifres dos enganados e
chorar um dilúvio em outra época
para erguer a estrela que caiu.
[O Sermão do Viaduto (30 anos depois). São Paulo: Traço Ed., 1997, pp.42-43]
A puta reza
na Igreja da Consolação,
mas não há consolo
nessas estátuas de santos,
santas, anjos,
vitrais, hóstias,
não há consolo
não haverá consolo.
A puta reza
palavras comoventes
e depois se atira
sob o automóvel
oficial
do Governo do Estado.
[Lindas Mulheres Mortas. São Paulo: Traço Ed., 1990, p.44]
os vãos o verbo as vindas vagas vigas
a vida vaga
vagas são as plantas
os dedos mortos vagos
os dedos mortos
vagos são os mortos
apagados no branco do olhar
vagas são as letras
o sentido a terra a água o fogo
vago é o gozo o prazer é vago
na vaga beleza que preenche o vaso
mas não completa a imagem.
[O Azul Irremediável. São Paulo: Maltese, 1992, p.43]
no espaço livre da mão.
Nulo como o poema
que nulo insiste
na trajectória suicida.
O gesto é nulo
sempre será nulo
entre o olhar e o objecto.
Sempre será nulo
entre a cama e o corpo.
O gesto é nulo e nele
se conclui um aceno interceptado
como ave abatida
num vôo sem volta.
O gesto é nulo
como é nulo
imaginar que a poesia possa
interceder sem saber em quê.
Nulo o gesto atravessa o gesto
e se perde nas residências antigas
das pombas que não existem mais.
O gesto nasce do gesto
quando se constrói
num sinal imperceptível.
A mão escorre pelos azulejos
como vítima de um crime
e desliza pelos rodapés
como insetos cruéis.
Sem o gesto a mão não é mão.
Sem a mão o gesto se anula
e nulo o gesto não se faz.
O gesto é nulo dentro da casa
onde as pessoas morrem
nos porta-retratos.
O gesto é nulo
na sala de estar
onde não há mais ninguém.
[O Gesto Nulo. Curitiba: Ócios do Ofício, 1998, pp. 7-8]
QUANDO O SOL se põe,
as ruas de Portugal ficam
quietas como um pássaro.
Talvez hajam barcos saindo do porto
levando o corpo de Álvaro de Campos.
Os oceanos sempre serão menores
para tantas embarcações
que partem, velas invisíveis
no longínquo silêncio
de ondas que morrerão.
Quando o sol se põe,
as mulheres talvez cantem uma canção
e talvez amem homens tristes
em alamedas distantes,
onde a memória se perdeu
e onde a música não existe mais.
Quando o sol se põe,
as casas de Portugal ficam amarelas
e todas as janelas se fecham
em adeus a todas as coisas.
Quando o sol se põe,
os passos se perdem nas calçadas,
talvez os dias não amanheçam mais,
talvez as igrejas fechem
e talvez um lábio faça ainda uma súplica
de amor.
Quando o sol se põe,
as sombras de Portugal ficam mais
nítidas,
os casais talvez chorem,
talvez sorriam,
mas isso ninguém sabe,
mas isso ninguém saberá.
[Mulheres do SHOPPING, pp.13-14]
Aos poucos me refaço,
aos poucos me refiro,
aos poucos me retiro,
aos poucos me recordo,
aos poucos
aos poucos
aos poucos me transformo
aos poucos me atrevo,
aos poucos
aos poucos
aos poucos perco o pouco
aos poucos perco o pouso
aos poucos não consigo
aos poucos
aos poucos
a poucos passos da alma
de Coimbra
a poucos momentos do rosto
de Coimbra,
aos poucos
aos poucos Coimbra acho,
a alma
mais que a alma
aos poucos Coimbra mostra
aos poucos
aos poucos Coimbra nasce
e se acrescenta
e se faz
e se deslumbra
e se encanta
aos poucos Coimbra está,
aos poucos
aos poucos
aos poucos Coimbra é
no seu espaço
largo mais que a praça
que nunca se esquecerá.
[20 Poemas quase Líricos e algumas Canções para Coimbra. Coimbra: Editora A Mar Arte, 1999, pp.46-47]
A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.