A POESIA ETERNA

Por Marco Dias

AL BERTO

Biografia

    

Poesias Eternas

Vestígios

Acordar Tarde

Sida

Mudança de Estação





 

 

vestígios

 

noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras

 

hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

 

onde se pode - num vocabulário reduzido e

obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir

 

apesar de tudo

continuamos a repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustga-nos os olhos

numa euforia torrencial

 

HORTO DE INCÊNDIO, ASSÍRIO & ALVIM,1997, 2ª EDIÇÃO, P.11

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acordar tarde

 

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu

quando o rio parou de correr e a noite

foi tão luminosa quanto a mota que falhou

a curva - e o serviço postal não funcionou

no dia seguinte

 

procuras ávido aquilo que o mar não devorou

e passas a língua na cola dos selos lambidos

por assassinos - e a tua mão segurando a faca

cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado

dos amantes ocasionais - nada a fazer

 

irás sozinho vida dentro

os braços estendidos como se entrasses na água

o corpo num arco de pedra tenso simulando

a casa

onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

 

HORTO DE INCÊNDIO, ASSÍRIO & ALVIM,1997, 2ª EDIÇÃO, P. 17

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sida

 

aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem - partem

deixam-nos dobrados ao abandono

no interior duma dor inútil muda

e voraz

 

arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas nocturnas

 

acendemos então uma labareda nos dedos

acordamos trémulos confusos - a mão queimada

junto ao coração

 

e mais nada se move na centrifugação

dos segundos - tudo nos falta

 

nem a vida nem o que dela resta nos consola

a ausência fulgura na aurora das manhãs

e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos

o rumor do corpo a encher-se de mágoa

 

assim guardamos as nuvens breves os gestos

os invernos o repouso a sonolência

o vento

arrastando para longe as imagens difusas

daqueles que amámos e não voltaram

a telefonar

 

HORTO DE INCÊNDIO, ASSÍRIO & ALVIM,1997, 2ª EDIÇÃO, P. 36

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mudança de estação

 

para te manteres vivo - todas as manhãs

arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e

o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho

regas o coração e o grande feto verde-granulado

 

deixas o verão deslizar de mansinho

para o cobre luminoso do outono e

às primeiras chuvadas recomeças a escrever

como se em ti fertilizasses uma terra generosa

cansada de pousio - uma terra

necessitada de águas de sons de afectos para

intensificar o esplendor do teu firmamento

 

passa um bando de andorinhões rente à janela

sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo

donde se soltaram as abelhas incompreensíveis

da memória

 

luzeiros marinhos sobre a pele - peixes

que se enforcam com a corda de noctilucos

estendida nesta mudança de estação

 

HORTO DE INCÊNDIO, ASSÍRIO & ALVIM,1997, 2ª EDIÇÃO, P. 52

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 A Poesia Eterna, por Marco Dias . Todos os direitos reservados.

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