JOÃO
GUIMARÃES ROSA FEITICEIRO DAS PALAVRAS, |
-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O
senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a
latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto
é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora
a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus,
arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em
volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe:
pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte. Grande Sertão: Veredas |
Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa |
Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens. |
"Às vezes, quase acredito
que eu mesmo, |
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu, em 19 de novembro de 67, Guimarães Rosa tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. Depois desse volume, escreveria apenas outros quatro livros. Realização, no entanto, que o levou à glória, como poucos escritores nacionais. Guimarães Rosa, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo. |
"A beleza aqui é como se a
gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar
que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também
um dever cristão." |
Três dias antes da morte, Guimarães Rosa decidiu, depois de
quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Homem de
temperamento emotivo e sensível, foi traído pela emoção. Os quatro anos de adiamento
eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do
pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que
viveu." Joãozito, como era chamado pela família, nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidadezinha mineira próxima a Curvelo e Sete Lagoas, área de fazenda e engorda de gado. Viveu lá durante dez anos. João era filho de Floduardo Pinto Rosa e de Francisca Guimarães Rosa. O casal teve outros 5 filhos. Todos depois de João. |
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas." |
Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo. |
"Ficamos sem saber o que era João |
Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para freqüentar a Biblioteca da Cidade de BH, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos Esportes. Em 1930, formado, o médico vai exercer a profissão em Itaguara, onde fica por dois anos. Guimarães revela-se um profissional dedicado, respeitado, famoso pela precisão dos seus diagnósticos. O período em Itaguara influi decisivamente em sua carreira literária. Para chegar aos pacientes, desloca-se a cavalo. Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do cotidiano, Guimarães inicia suas anotações, colecionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas histórias que já escreve. |
"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no
sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu
tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela
tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava
com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me
serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. Grande Sertão:Veredas |
Nos tempos da Faculdade, Guimarães Rosa dedica-se também à literatura. Levado pela necessidade financeira, escreve contos para a revista O Cruzeiro. Concorre quatro vezes, em todas sendo premiado com cem mil réis. Na época, escreve friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Em 32, ano da Revolução Constitucionalista, o médico e escritor volta a Belo Horizonte, servindo como voluntário da Força Pública. A partir de 34, atua como oficial médico em Barbacena. Paralelamente, escreve. Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas MAGMA recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de VIATOR, concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado CONTOS, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em SAGARANA, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira. |
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Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e
esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que
refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é
bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois
passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta
vida. Grande Sertão: Veredas |
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte." |
Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma - que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Rosa tinha conhecimento profundo de húngaro, russo e chinês, além de falar alemão, inglês, francês, romeno e italiano, entre outras línguas. O conhecimento de línguas estrangeiras seria um aliado de Guimarães Rosa, especialmente no que diz respeito à tradução da sua obra, já que o escritor mineiro se notabilizou pela invenção de vocábulos, além do registro da linguagem sertaneja brasileira, inacessível a tradutores estrangeiros. |
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Em 38, Guimarães Rosa é nomeado consul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 42. Durante a Segunda Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar. Seguindo a missão diplomática, Guimarães Rosa serve, em 42, em Baden Baden; de lá, vai para Bogotá, onde fica até 44. O contato com o Brasil, no entanto, era freqüente. Em 45, vai ao interior de Minas, rever as paisagens da infância. Três anos depois, é transferido para Paris. |
1946. "Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a
pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho
penoso, que já conheço". O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto
de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares
ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice,
querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é
por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu
acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei.
Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: |
Entre outubro e novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística à Itália. No ano seguinte, nos meses de setembro e outubro, o casal refaz o roteiro, visitando as mesmas cidades. Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objetivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado pra o seu trabalho, documentando, armazenando idéias, exercitando-se no manejo da língua portuguesa. |
"Arco íris proxíssimo! parece andar com o trem. Seu verde é belo - bórico - vê-se o roxo, anil. Não tem raízes, não se encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d'água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro. como o trem divide o mundo" Grande Sertão: Veredas |
3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo própio Rosa, com um curioso recado: "dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra". Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas |
Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros. |
"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie
de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar,
suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?'
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