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   O ENIGMA DO COSME VELHO Ubiratan Machado


O mistério machadiano é como a lenda fáustica. Cada um pressente que há alguma coisa mais oculta, mas sem precisar o quê. Fausto, símbolo da inquietação humana, aturdido num universo que não compreendia, vendeu a alma ao diabo, em troca de sabedoria e poder. Entre os grandes criadores de vida através da ficção do século XIX, nenhum (exceção talvez de Dostoievski) esteve tão próximo do dilaceramento de quem apertou a mão de Mefistófeles do que o escritor brasileiro. Só que, ao contrário do mago alemão, ele desdenhou do poder, preocupado apenas em alcançar o conhecimento, aquele conhecimento impiedoso, meio diabólico e tantas vezes doloroso que desnuda a alma do homem e procura, em vão, levantar o véu da natureza. Essa busca e a forma de conduzi-la pelos meandros da ficção fazem de Machado o escritor mais moderno do oitocentos e o parente espiritual mais próximo de Proust. Nada disso, porém, o explica satisfatoriamente. Sentimos que ainda há algo a descobrir, não sabemos o quê, no mistério machadiano, no enigma do Cosme Velho, no bruxo capaz de criar uma obra de ficção tão importante quanto a dos grandes mestres do século, um Balzac, um Stendhal, um Flaubert, um Thomas Hardy. Como isso foi possível, num país atrasado, perdido num longínquo ponto do hemisfério sul?

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no morro do Livramento, no Rio de Janeiro, a 21 de junho de 1839. Seu pai, o mulato forro Francisco José de Assis, carioca da gema, neto de escravos, pintor e dourador de profissão, era homem de alguma instrução. Sabia ler e escrever, fato nada comum entre os de sua classe social. A mãe, a portuguesa Maria Leopoldina Machado da Câmara (que passara a se chamar Machado de Assis, após o casamento), nascera na ilha de São Miguel, nos Açores. O casal vivia como agregado à imensa chácara, que ocupava toda a colina, estendendo-se por um lado até o mar e , pelo outro, chegando quase ao campo da Aclamação (atual campo de Santana). Era um microcosmo da sociedade carioca, onde conviviam senhores, escravos e agregados.
A proprietária desse pequeno feudo chamava-se Maria José de Mendonça Barroso Pereira, viúva do brigadeiro Bento Barroso Pereira, homem poderoso, senador do Império, duas vezes ministro da Guerra e uma vez ministro da Marinha. Mulher generosa, cuja proteção seria disputada pelos agregados, a matriarca foi duas vezes homenageada no batismo do garoto. Madrinha, daria ainda o seu nome ao afilhado. Joaquim Maria é uma homenagem a D. Maria José e ao padrinho, o funcionário do Paço Imperial Joaquim Alberto de Sousa da Silveira.

À sombra da casa velha
Filho de trabalhadores humildes, um moleque entre outros, Machado viveu na chácara do Livramento até os 15 anos. Sabe-se pouco dos seus primeiros anos de vida. O escritor não gostava de tocar no assunto. Esquivava-se até mesmo com os amigos mais íntimos e queridos. Mário de Alencar contou que ele "escondia em segredo os anos da infância e da adolescência". Mas não era diferente dos outros garotos cariocas de sua época e da sua classe social, bem mais livres do que os iôiôzinhos. É sempre arriscado atribuir ao autor fatos e preferências pessoais de um personagem, supostamente autobiográfico. Assim, alguns analistas de Machado enxergam no "Conto de Escola" uma espécie de página de memórias do escritor, sob o disfarce da ficção.
Logo, concluem que ele estudou numa escola da rua do Costa, como o menino do conto. Duvidamos. Mas não podemos deixar de aceitar como vividas por Machado as atividades lúdicas evocadas no conto e nas páginas das Memórias póstumas em que lembra a infância de Brás Cubas: soltar papagaio, caçar ninhos de pássaros, perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, vadiar pelas ruas da Gamboa, pelo morro de São Diogo e o campo de Santana,e então "um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos". A infância é mágica, mesmo quando a criança sente "umas cousas esquisitas", talvez os prenúncios da epilepsia, que se revelaria na maturidade. Isso não tiraria a alegria do menino, curioso, vivo precocemente inclinado às seduções do espírito, leitor ávido de poesia. Aos 10 anos de idade, já sabia de cor a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.
Cedo começou a exercer pequenos ofícios, como o de baleiro, com os quais teria procurado ajudar os pais. Parece ter sido coroinha. Estudos, apenas em escolas públicas. Lá pelos 14, 15 anos, ignora-se em que circunstância, privou da intimidade do Padre Antonio José da Silveira Sarmento, professor conhecido à época, que contribuiu para a formação de seu espírito. Mais tarde, Machado lhe dedica dois poemas, confessando que, durante um ano, o sacerdote lhe fora "um modesto preceptor e um agradável companheiro".
Duas mortes ocorridas na infância, à sombra da chácara, deixaram marcas fundas na sensibilidade do garoto. Em 1845, a única irmã, Maria, de quatro anos, morre em conseqüência de uma epidemia de sarampo. Quatro anos depois, era a vez de sua mãe, tísica. Viúvo, Francisco José contrai segundas núpcias, em 1854, com a mulata Maria Inês. A família muda-se para um sobrado na rua São Luís Gonzaga, 48, em São Cristóvão.
Machado afasta-se da chácara, mas nunca se libertaria de seu ambiente, onde aprendera as primeiras lições sobre os contrastes dos destinos humanos e as desigualdades sociais. Ali, sentira o despertar de desejos de ascensão social, o inconformismo com a pobreza, a sedução pelo mundo dos ricos e dos poderosos, dos quais procurou se acercar durante toda a vida. A chácara do Livramento se incorporara ao seu espírito e seria recriada, 40 anos depois, em forma de ficção, na novela Casa velha.

Sonhador e ambicioso
Os sonhos do rapazinho eram muitos, mas a pobreza é exigente. No primeiro emprego, numa papelaria, permaneceu apenas três dias. Por certo, já estava consciente que teria de abrir caminho na vida por si mesmo. Não recuaria. Era sonhador, mas persistente, daquele tipo de homem que se empenha com todas as forças em realizar os seus sonhos. Frágil na aparência, uma fortaleza por dentro. Com dinheiro escasso para ler tudo o que desejava, passou a freqüentar as bibliotecas públicas da Corte, sobretudo o Gabinete Português de Leitura, que emprestava livros aos sócios. Machado lia-os na barca que fazia a ligação do cais Pharoux, ou dos Franceses, como então se dizia, com São Cristóvão. Arrebatado pela leitura de Almeida Garret, Castilho, Alexandre Herculano, Camilo e os grandes românticos franceses, cujos nomes ecoavam aqui com a magia das coisas sagradas, começou a escrever poesias. A primeira publicada foi o "Soneto" dedicado à "Ilma. Sra. D.P.J.A." Quem seria? O poema nos revela as duas primeiras iniciais da charada: Dona Petronilha. O resto, por certo, será mistério para todo o sempre. O trabalho saiu no Periódico dos Pobres, de 3 de outubro de 1854, com a assinatura J. M. M. Assis.
Em 1855, freqüentava a livraria e tipografia de Paula Brito, no largo do Rossio, 64, talvez já incorporado à casa, onde trabalhou como caixeiro e revisor, em datas incertas. Foi como caixeiro que Salvador de Mendonça, recém-chegado à Corte, o conheceu, em 1857. Sentia-se como o peixe n'água e logo tornou-se colaborador assíduo de A Marmota Fluminense. Neste pequeno "jornal de modas e variedades", editado por Brito, Machado veria o seu segundo trabalho em letra de forma, o poema "Ela" (12 de janeiro de 1855) e , quatro dias depois, "A palmeira". A loja de Francisco de Paula Brito vendia um sem número de produtos, que iam do fumo à tinta, do chá a drogas, de papel a livros. Era um estabelecimento típico da época, mas sobretudo um admirável centro de convivência. Na livraria, funcionava a Sociedade Petalógica, nome derivado de peta, mentira, que dava o tom às reuniões. Mentia-se por brincadeira e por irreverência, gracejava-se, debatia-se sobre literatura e teatro, declamavam-se versos. Valia tudo, menos ficar triste ou discutir política. Ao recordar a sociedade, anos depois, Machado lembraria que a conversa abrangia tudo, "desde a retirada de um ministro até a pirueta da dançarina da moda" e a discussão ia "desde o dó do peito de Tambelick até os discursos do marquês do Paraná".
Poeta modesto, livreiro, tipógrafo, editor, o mulato Paula Brito foi acima de tudo uma admirável figura humana. Nascera para conciliador, tinha o carisma dos líderes e sabia se impor até aos arrogantes políticos imperiais. Freqüentadores assíduos da livraria e das tertúlias da Petalógica, liberais e conservadores esqueciam-se ali das tricas e futricas políticas, para só se preocuparem em soltar boas gargalhadas.
Essa convivência com os poderosos do momento foi fundamental no processo de auto-educação de Machado. Aprendia a comportar-se e verificava que, de perto, os pais da pátria não passavam de deuses de pés de barro, todo-poderosos pelo dinheiro e a posição social, mas cheios de ridículos e fragilidades. Uma lição preciosa. Mas o seu principal interesse ia para os escritores, que faziam da modesta livraria o principal centro da vida literária da cidade. Com assiduidade, ou esporadicamente, apareciam ali os maiorais da época: Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo, Francisco Otaviano, José de Alencar. Machado aproximou-se, em particular, dos dois últimos, estabelecendo uma amizade que se prolongaria até a morte.
O adolescente, ávido de convivência, não perdia nenhuma das reuniões realizadas no escritório do advogado Caetano Filgueiras, na rua de São Pedro, 85. Às quatro horas, os rapazes chegavam na "tranqüila salinha": Casimiro de Abreu, Macedo Júnior, Gonçalves Braga, Emílio Zaluar, Teixeira de Melo, Machado, Filgueiras. Passavam horas contando as suas aventuras e falando de tudo: de Deus, dos sonhos, do amor, da poesia, da música, da pintura. E recitando poemas.
Machado, freqüentador assíduo de saraus, gostava de recitar em público, o que pulveriza a história de sua gagueira juvenil, à qual biógrafos despreparados aludem cheios de piedade melosa. O distúrbio só se manifestou na maturidade, depois dos primeiros ataques de epilepsia. Esses mesmos divulgadores são responsáveis pela tolice de chamar Machado de "menino de morro", dando à expressão o sentido atual de favelado. É um anacronismo detestável, já que na época da infância do escritor os morros eram privilégios de famílias ricas. Mas o garoto era filho de agregados, podem alegar, esquecidos da imensa distância social entre aquela época e hoje.

Um jornalista que trabalha por cinco
Uma tradição, que já circulava em vida de Machado (artigo de Artur Barreiros em Penna e Lapiz, em 10 de junho de 1880), afirma que ele trabalhou na Tipografia Nacional, na rua da Guarda Velha (atual 13 de Maio), como aprendiz de tipógrafo. Alfredo Pujol chega a afirmar que ele ganhava um cruzado por dia e vivia pelos cantos, com os livros, descurando do serviço. Em certa ocasião, o seu chefe teria se queixado ao administrador do órgão, Manuel Antônio de Almeida. O romancista das Memórias de um sargento de milícias quis conhecer o rapaz, nascendo assim a amizade entre ambos. Ignora-se quando Machado ingressou na tipografia (os arquivos da instituição arderam num incêndio), mas se o episódio ocorreu só pode ter sido no final de 1857 ou comecinho do ano seguinte. O período de administração de Maneco de Almeida foi do final de 1857 aos últimos dias de 1859. No ano anterior, Machado já não estava mais na Tipografia.
A vocação para as letras está cada vez mais forte. Desde a modestíssima estréia até o final de 1853, publicara mais de 50 trabalhos na imprensa, a maioria poemas de um romancista piegas, sem qualquer originalidade. Neste ano, aproveitando a experiência adquirida na empresa de Paula Brito, Machado ingressa como revisor no Correio Mercantil, graças à amizade de Henrique César Muzzio. O salário medíocre obriga-o a se desdobrar em múltiplas colaborações para sobreviver. Em O Espelho, revista de Eleutério de Sousa, mantém pela primeira vez, em sua carreira jornalística, uma seção fixa e regular: a "Revista dos Teatros", de crítica teatral.
Em 25 de março de 1860, a convite de Quintino Bocaiúva, inicia-se como repórter do Diário do Rio de Janeiro, órgão do Partido Liberal. Fazia a cobertura das atividades do Senado, época que relembraria às portas da velhice na crônica "O velho Senado", obra-prima do memorialismo brasileiro. Passa a ser cada vez mais solicitado. Desde o número inicial, colabora na Semana Ilustrada, de Henrique Fleuiss, a primeira publicação humorística ilustrada da imprensa brasileira. Com a melhoria nas finanças, divide com Ramos Paz um sobrado na rua Matacavalos (atual Riachuelo), separando-se do pai e da madrasta e deixando para trás tudo o que desejava esquecer: a pobreza e a origem social humilde.
No Diário trabalhava sempre em excesso, muitas vezes até à exaustão. Machado chegava a redigir quase todo o jornal. Quando tiveram de se ausentar, durante um período, Saldanha Marinho e Quintino Bocaiúva, conhecendo a sua invulgar capacidade de trabalho, confiaram-lhe a direção do jornal, sozinho. Estava com pouco mais de 20 anos. Apesar de admitir que não tinha "idéias fixas nem determinadas" em política, é inegável que se entusiasmou pelos princípios do Partido Liberal, "O partido dos impulsos generosos", que se harmonizavam com os seus impulsos pessoais, seu espírito nacionalista e seu entusiasmo pelo progresso. Machado foi um dos espíritos mais progressistas de sua época. Defendeu o trem de ferro, fascinou-se pela fotografia, reivindicou a libertação feminina, sem demagogias, mas com firmeza. Assumindo o posto de cronista do Diário, aprendeu a disciplinar a tendência à irreverência gratuita através da crítica objetiva e justa, mas ácida e irônica, cautério e zombaria, fustigando não só hábitos e costume populares e religiosos, mas também as trampolinagens dos homens públicos e os vícios das instituições. Sobre o Brasil: "Dissera-se um país onde o povo só sabe que existe politicamente quando ouve o fisco bater-lhe à porta".
Raros em sua época viram com mais discernimento o Brasil, os vários Brasis de interesses contraditórios, que o Império buscava conciliar com zelo vitoriano e otimismo um tanto artificial. Com agudeza, ele percebeu o problema, ao salientar as diferenças "entre o país real e o país ideal".
A prática jornalística diária exerceu uma influência sensível sobre a atividade de Machado como escritor. Obrigou-o a escrever com simplicidade e graça, a evitar "os colarinhos do estilo grave". Como cronista, se habituaria a flertar com o leitor, a instigá-lo, a dialogar com ele, o que se tornaria uma marca de seus romances da maturidade.
Acreditava na missão da imprensa, como acreditava na força educativa da obra de arte, sobretudo o teatro, a grande paixão de sua juventude. "O teatro não é uma indústria. Como diz Victor Hugo: "O teatro é uma tribuna, o teatro é um púlpito". Não se limitaria à posição de espectador e crítico. A primeira peça, "A ópera das janelas", cujos originais se perderam , foi escrita aos 18 anos. Provavelmente, não era um texto seu, mas uma imitação ou tradução, que serviria para o jovem autor exercitar a mão.
Os primeiros passos no caminho da glória
O trabalho excessivo era atenuado pelos seus melhores antídotos, a amizade e o amor. Depois da dura atividade jornalística, gostava de se reunir com os sócios das mesmas paixões. Machadinho, para os íntimos, era um rapaz sociável, amável, com o dom de conquistar amigos. Alegre, brincalhão, comunicativo, apesar da timidez: o carioca típico. A essa altura, tinha livre trânsito nos mais variados grupos intelectuais. Ligou-se à turminha dos escritores portugueses que aqui viviam, íntimo de Castilho, Zaluar, Faustino Xavier de Novaes, Ramos Paz, Ernesto Cibrão. Assíduo, também, ao círculo de exilados franceses, que se reuniam na redação do Courrier du Brésil, de Adolphe Hubert. Ali, encontrava uma excelente oportunidade para aprimorar o seu francês, que dizem ter aprendido, quase criança, com uma certa Mme. Gallot, proprietária de uma padaria em São Cristóvão.
O período romântico foi a época dos jovens. Juventude significa inquietação, pressa. Os rapazes estreavam em livro aos 16, 17 anos. Em 1861, Machado sente que chegara a sua hora. Os seus dois primeiros livros saem pela editora de Paula Brito, que provavelmente arcou com as despesas da impressão.
"Queda que as mulheres têm para os tolos" foi posta à venda em junho, depois de ter sido publicado em folhetim em A Marmota. Durante muito tempo, pensou-se ser um original de Machado. Hoje, sabemos que é tradução de uma obra do escritor belga Victor Hénaux. Em setembro, era lançado "Desencantos", fantasia dramática em dois atos, que não chegou a ser encenada. Em compensação, Machado recebeu a primeira crítica de sua carreira literária, bastante laudatória. Curiosamente, era escrita em francês e por um francês. Assinava-a Adolphe Hubert, sendo publicada no Courrier du Brésil.
Nos anos seguintes, até 1865, mantém intensa atividade como autor dramático, produzindo dez peças, sendo quatro traduzidas. Os originais foram "Desencantos", "O caminho da porta", "O protocolo", "Quase ministro" (1864, encenada no ano anterior). "As forças caudinas", "Os deuses de casaca" (1866). A segunda e a terceira, representadas em teatro profissional, com razoável receptividade, foram reunidas no volume Teatro (1863). No prefácio, Quintino Bocaiúva opinava serem peças mais adequadas à leitura em gabinete do que à encenação.
Machado parece ter aceito a opinião do amigo com muita docilidade. A partir de 1865, ele renuncia à produção teatral própria, para se dedicar às traduções. Em verdade, havia uma razão para isso, mais convincente do que o conselho de Quintino: peças originais pouco ou nada rendiam, enquanto as traduções eram remuneradas razoavelmente, conforme o combinado com os empresários. A fase de 1865 a 1868 representa o auge da atividade de Machado como tradutor teatral, totalizando oito peças.
Foi durante esse período de intensa atividade teatral que viveu os seus romances de amor, antes de conhecer Carolina. "A minha história passada do coração, resume-se em dous capítulos: um amor, não correspondido; outro, correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer; do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo", expõe à noiva. Linhas adiante, esclarece que Corina, a musa de seus versos, fora a primeira. R. Magalhães Júnior acreditava que ela tivesse sido a cantora lírica italiana Augusta Candiani, quase 20 anos mais velha do que Machado. A outra, segundo o mesmo autor, seria a atriz portuguesa Gabriela da Cunha, 18 anos mais velha do que o escritor. É possível. Mas, em ambos os casos, faltam provas convincentes, tudo não passando de hipóteses engenhosas.
Em 1867, em casa do poeta Faustino Xavier de Novaes, Machado conhece a irmã do amigo, Carolina Augusta de Novaes. Entenderam-se de imediato. Os quatro anos a mais da namorada não eram obstáculos. Machadinho gostava de mulheres mais velhas. Resolveram casar-se. Dizem que houve oposição da família Novaes. Que importava? Sabiam o que queriam e o destino também colaborava. No dia 7 de abril de 1867, sai a nomeação de Machado para o cargo de ajudante do diretor de publicações do Diário Oficial. Não era a fortuna, mas um salário fixo e sobretudo uma atividade bem menos desgastante do que o jornalismo. Aliviado, desliga-se do Diário do Rio de Janeiro. Numa prova de que bons ventos começavam a soprar, fora nomeado no mês anterior Cavaleiro da Ordem da Rosa, primeiro marco em seu processo de aristocratização.

Uma vida nova
No dia 12 de novembro de 1869, Machado e Carolina casam-se, fixando residência na rua dos Andradas, 119. Era a revelação de uma vida nova, que lhe permitiria trabalhar com tranqüilidade e que "num recanto pôs o munto inteiro". Carolina, companheira e amiga, sempre alegre e risonha, tinha o dom mágico de tornar a casa aconchegante, com pouco dinheiro. "Teria inventado, se fosse preciso, a pobreza elegante".
Às mudanças na vida pessoal e social, correspondia uma mudança gradual em seus rumos literários. Até 1864, o escritor era conhecido e festejado sobretudo como poeta e autor teatral. A partir de junho deste ano, começa a escrever prosa de ficção para o Jornal das Famílias, revista requintada de modas, figurinos e literatura, com uma estupenda impressão litográfica. Machado acertou de tal forma com o gosto do público que, até 1878, publicou ali mais de 70 contos e novelas, assinados com seu nome e diversos pseudônimos. O sucesso criou vínculos com o proprietário da publicação, B.L. Garnier, – que a malícia carioca chamava de o Bom Ladrão Garnier, o maior editor da época, com diversas edições impressas em Paris e um nível de qualidade bem acima do padrão nacional. Naquele mesmo ano de 1864, Garnier publica o primeiro livro de poesia de Machado, as Crisálidas. Bem recebida pela crítica brasileira, a obra colheria também louvores em Portugal, através de Pinheiro Chagas e Ramalho Ortigão.
O bom relacionamento com Garnier contribuiu, pelo lado financeiro, para a realização do casamento de Machado. Em apenas quatro meses, ele recebeu 1.600$000 de direitos autorais, uma quantia razoável para a época, equivalente a uns oito meses de seu salário. Em maio de 1869, editor e editado assinam contrato para a publicação de duas obras, cada uma delas com tiragem de mil exemplares. O autor recebe 200 réis por exemplar dos Contos fluminenses (seu primeiro livro de contos, reunindo sete trabalhos publicados no Jornal das Famílias) e das Falenas, (seu segundo livro de poemas e o primeiro impresso na França), que assinala o cansaço de Machado com o romantismo, a preocupação com um maior apuro formal e a busca de novos rumos.
Com domínio cada vez mais seguro do conto, nada mais natural que tentasse o romance. Dois meses antes do casamento, em setembro, assina novo contrato com Garnier, para a edição de outros três livros, recebendo 1.200$000. Ressureição, sua estréia no romance, sai em 1872, com boa receptividade crítica. No ano seguinte, surgem as Histórias da meia-noite, reunindo cinco contos publicados no Jornal das Famílias e um inédito. O terceiro livro constante do contrato nunca foi publicado. Já é considerado, então, um dos mestres da literatura brasileira do momento, ao lado de José de Alencar. Num reconhecimento a essa posição, a revista Archivo Contemporâneo publica, em 1873, um número em cuja capa figuram lado a lado, num retrato, os dois escritores. À estabilidade da vida matrimonial, ao êxito nas letras, soma-se a ascensão burocrática, com a nomeação para primeiro oficial da secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em dezembro, de 1873. Afinal, a tranqüilidade material, a estabilidade, a possibilidade de fazer carreira. O vencimento era excelente: 4.000$000 anuais. Como acontecia a cada melhoria financeira, o casal procura uma nova residência. Trocam a casinha da rua Santa Luzia, 54, por um segundo andar na rua da Lapa, 96. Em 1875, passam a viver na rua das Laranjeiras, 4.

A face amarga da vida
Sem a exigência de se exaurir numa redação de jornal, Machado continua colaborando intensamente na imprensa. Firma-se como o grande cronista do momento, legítimo sucessor de Francisco Otaviano e de Alencar. No jornal O Globo publica, em folhetim, o segundo romance, A mão e a luva, editado em livro em 1874. As obras se sucedem. No ano seguinte, lança mais um volume de versos, Americanas, adesão tardia ao indianismo. O terceiro romance, Helena, aparece em 1876. Como o anterior, saíra antes em folhetim, em O Globo. Machado confessaria mais tarde, que dos romances escritos na mocidade, este lhe "era particularmente prezado".
Escreve muito e trabalha sem repouso, impulsionado pelo desejo de ascensão social, que mal consegue disfarçar, e a paixão pela literatura. O reconhecimento profissional vem através de decreto da princesa Isabel, datado de 7 de dezembro de 1876, promovendo-o a chefe de seção. Passa a receber 5.400$000 anuais, um salário invejável. Nos últimos anos do Império, os desembargadores ganhavam 6.000$0000. Nova mudança de casa. O casal passa a residir na rua do Catete, 206, onde permaneceu durante seis anos. O escritor está cada vez mais convencido de que o seu futuro literário está no conto e no romance. Aprimora-se. Em 1878, publica em folhetim, em O Cruzeiro, o quarto romance, Iaiá Garcia, que sem ser nenhuma obra-prima, indicava um caminho muito pessoal dentro da literatura brasileira. Sem que soubesse, encerrava-se ali a primeira fase de sua obra e um ciclo de sua vida. Até então, fora um homem feliz. Lutara muito para subir na vida e ganhar consideração social. Sempre pudera recorrer a amigos fiéis e poderosos. Nas letras, ninguém lhe disputava o primado. Aristocratizava-se.
Tudo parecia tranqüilo, quando o destino começou a lhe dar alguns piparotes, aguçando-lhe o sofrimento, levando-o à descrença, ao pessimismo e ao temor da loucura. Mas, dessa purgação, como o metal precipitado no cadinho, sairia o maior e mais pessoal romancista e contista da língua portuguesa. 1878 é um ano duro. Na Secretaria, o trabalho dobra. Machado integra a comissão de reforma da legislação sobre terras, sem abdicar da chefia da seção (como a lei permitia) e sem interromper a colaboração na imprensa. A tarefa só termina em 1886, quando se publica o volume Terras, redigido por Machado. O organismo reage ao excesso de trabalho. O escritor está estressado. O diagnóstico médico aponta uma infecção intestinal, com risco de degenerar para uma tísica mesentérica. Os ataques de epilepsia tornam-se mais freqüentes. O primeiro se dera após o casamento, deixando o casal aturdido. Depois do acesso, sente-se deprimido e humilhado. Quando surgem os sintomas, dá a senha à mulher: "Carolina, vou sentir-me mal". Se estiverem diante de outras pessoas, ela imediatamente procura isolá-lo. O escritor não admite que estranhos presenciem o seu drama.
Como se não bastasse esse quadro clínico, sofre ainda uma grave crise nos olhos. Ameaçado de cegueira, trata-se com o Dr. Hilário de Gouvêa. Melhora, mas não em definitivo. Em fevereiro de 1880, sobrevém uma nova crise. Procura o Dr. Ataliba Lopes de Gomensoro, – especialista com vários cursos na Europa, jornalista, homme du monde, teatrólogo (Machado criticara uma de sua peças), – que diagnostica amaurose. Dessa vez, fica curado.

Renascimento
No final de 1878, licencia-se do serviço público. Pela primeira vez em sua vida, às vésperas de completar 40 anos, tira férias. O casal passa três meses em Friburgo. Machado renasce: "Só engordei uma vez na vida, foi quando fui convalescer em Nova Friburgo". Em agradecimento à cidadezinha fluminense, que considerava "terra abençoada", faz D. Carmo, do Memorial de Aires, personagem de sua predileção, nascer em Friburgo.
O sofrimento físico e moral, a incerteza angustiosa quanto ao futuro, amadurecem o artista, e aguçam o pessimismo do homem em relação à crueldade da vida e à incerteza do destino humano. Ainda em fase de recuperação da moléstia dos olhos, dita a Carolina os primeiros capítulos de um romance estranho, de um pessimismo atroz, cheirando a túmulo, escrito "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". As Memórias póstumas de Brás Cubas são publicadas em capítulos, na Revista Brasileira, a partir de março de 1880, e editadas em livro no ano seguinte.
A crítica fica atordoada. "Será um romance?", indaga Capistrano de Abreu. Machado conseguira aquilo que Hemingway considerava fundamental em uma grande obra: impactar o leitor como se o atingisse com um direto nos queixos.
Recuperado da doença, o escritor está mais lúcido do que nunca, de uma lucidez mefistofélica, a que não escapa nem "o mínimo e o escondido". Atormentado pela idéia do nada, a indiferença da natureza, a precariedade de tudo, parece deliciar-se em atirar ácido nas feridas alheias. Disseca com perversidade satânica, mas com a elegância de um lorde, a alma de seus personagens. Às vezes, esse sentimento desce do terreno da pura arte, como para estudar a reação dos atingidos. Na Revista Brasileira publica o ensaio "A nova geração", analisando a atualidade poética. Entre elogios e restrições, procede a uma análise implacável da poesia de Sílvio Romero, reduzindo-a a zero. Era uma resposta, talvez inconsciente, ao crítico ser gipano, que anos antes dirigira um violento ataque ao "lirismo subjetivista" e ao "humorismo pretensioso" das Falenas. Romero não o perdoará, aguardando o momento oportuno da vingança.
Também no conto atinge mestria sem precedentes na língua portuguesa, com as Histórias sem data (1884). Dos 18 contos, escritos e publicados entre fevereiro de 1883 e junho de 1884, pelo menos uma dúzia são obras-primas.
A lucidez diabólica, o pessimismo que o dilacera durante esta fase, escondem-se sob um senhor de aparência mansa, polido, modelo do burocrata, amando a sua bendita rotina de cada dia. Sai de casa pela manhã. Lê o jornal no bonde, ainda puxado a burro. Após o expediente, reúne-se com os amigos na Livraria Garnier, que se tornara um dos principais centros da vida literária da cidade. De volta para casa, encontra a esposa esperando-o no portão. Sem filhos, o casal dirige a sua ternura para Graziela, uma cadelinha tenerife, que morreu no final de 1891. Machado sentiu tanto a sua morte que mandou emoldurar um cacho de seu pêlo, pendurando-o no quarto do casal. Logo arranjaram um substituto, um cachorro preto, da raça pincher, que ganhou o nome de Zero. Quando o casal saía à noite, o escritor punha-o no bolso externo do paletó. Dirigiam-se, então, às casas das famílias amigas, onde se entretinham em conversas e inocentes jogos domésticos: xadrez, dama, bézigue. Ou ouviam música. Melômano, Machado raras vezes faltava aos concertos do Clube Beethoven, do qual foi sócio e bibliotecário. Era tanta a distância entre o ceticismo amargo de seus livros e o homem afetuoso, querido de todos, que Joaquim Nabuco sentiu-se perturbado. Para ele, o verdadeiro Machado vivia "em beatitude", reservando "a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances". Será?

Aristocratização
Equilibrada a saúde, Machado não recupera a tranqüilidade de espírito. Atravessa uma fase de conflitos íntimos e de desequilíbrio emocional, agravados pelo temor da loucura. Pela primeira, e última vez, busca refrigério fora do lar, pulando a cerca da fidelidade conjugal e abalando a bonança doméstica. Liga-se a uma atriz medíocre. Portuguesa e mais velha do que Machado, como Carolina, Inês Gomes recebia mais ironias da crítica por seus pés imensos, do que cumprimentos pelo seu talento curto. O romance foi breve, mas o suficiente para respingar lama no escritor. O jornal de escândalo O Corsário, de Apulco de Castro, não o poupou.
A mudança para a rua Cosme Velho, 18, em 1884, ajuda a reaproximar o casal, representando o passo decisivo no processo de aristocratização do escritor. A vizinhança era formada por diplomatas, nobres, políticos, estrangeiros ricos, com os quais Machado e Carolina logo se harmonizam. Doloroso mesmo era suportar a ronda sinistra da loucura. O assunto absorveu o escritor de tal maneira, que ele o aborda em um de seus melhores contos, "O alienista", e coloca-o como um dos motivos centrais de seu novo romance, Quincas Borba. A obra começou a ser publicada em folhetim, em junho de 1886, mas só seria concluída em setembro de 1891. O livro é impresso neste mesmo ano, chegando ao mercado no início de 1892.
A redação do romance coincidiu com uma das mais graves crises institucionais da história brasileira. A propaganda republicana crescia, mas o que ameaçava derrubar o trono era a campanha abolicionista. Todos sabiam que, abolida a escravatura, o Império iria ruir como um castelo de areia. Sem participar da propaganda pela abolição, o que contrariava o seu temperamento e a ética do funcionário público, Machado contribuiu para o seu êxito mais do que muitos propagandistas que assinavam artigos espalhafatosos ou se esgoelavam pelas esquinas.
Após a lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, todas as questões relativas aos escravos, – matrícula, pecúlio, educação, guarda de menores, – passaram para a competência da sua secretaria. Como chefe de seção da diretoria de Agricultura, ele fornecia informações e emitia pareceres que pesavam diretamente nas decisões ministeriais.
Machado interpretava o regulamento das matrículas de escravos com isenção, restringindo-se rigorosamente à letra da lei. Dessa forma, quase sempre opunha-se aos interesses dos fazendeiros, a classe mais poderosa do Império, favorecendo a liberdade de muitos escravos, antes da lei de 13 de maio. Modelo de funcionário, Machado esquivava-se às influências e pedidos, viessem de quem viessem. Detestava compactuar. Minucioso e íntegro, era também um homem polido, incapaz de uma grosseria, mas inabalável em suas decisões. Artur Azevedo presenciou um episódio que revela de maneira exemplar a sua conduta. Procurado por um senhor, interessado em um processo dependente de seu parecer, Machado revela, sem usar subterfúgios, mas com a mesma urbanidade de sempre, o seu ponto de vista contrário. Na tentativa de modificar-lhe a opinião, o homem começa a dar mil explicações, sem perceber que ultrapassava os limites da conveniência. Machado ouviu tudo com paciência. Concluída a falação, levantou-se e com um gesto cordial convidou o visitante a sentar-se em seu lugar. Assim que o viu sentado, fulminou-o, sarcástico:
– O senhor diretor tenha a bondade de lavrar o parecer...

Presidente perpétuo
Recebeu a abolição com euforia. "Sim, também eu saí à rua, eu, o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta..." A proclamação da República, porém, deixou-o desconfiado e cheio de receios. Como observador da vida da nação e como monarquista, repudiava o sistema presidencialista à americana, de que Rui Barbosa se fizera o defensor máximo. Conformou-se. Não havia outro jeito. No plano pessoal, aliás, nada mudou. Continuou ascendendo na escala funcional, sendo nomeado diretor geral da Viação, em 1892. Não demoraria a levar algumas lambadas, em nome do novo regime. O clima de intolerância e demagogia, predominante no início da República, degenerou durante o governo de Floriano Peixoto em neurose de perseguições e delações. Em abril de 1894, o desequilibrado jornalista Diocleciano Martir publica uma lista de "maus patrícios e hipócritas monarquistas, pagos fartamente pelos cofres da nação para dizerem mal de si próprios e cavarem a ruína da Pátria". Machado figurava na lista, uma calúnia torpe, pois que se mantivera à margem de qualquer manifestação política. Indignado, Lúcio de Mendonça, republicano histórico e de prestígio nos meios governamentais, sai em defesa do amigo. Foi um contra-ata que violento, o qual não perdoou o defeito físico de Martir e nem a muleta em que ele se apoiava.
Mas nem tudo eram espinhos e petulância agressiva. No início da República, Medeiros e Albuquerque sugere a criação de uma academia de letras, nos moldes da francesa. Lúcio de Mendonça, então secretário do ministro da Justiça, entusiasma-se, mobiliza os escritores e concretiza a idéia. Surgia assim a Academia Brasileira de Letras, em 1897. Por proposta de José Veríssimo, a instituição adota como divisa um verso de Machado: "Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola".
A Academia parece rejuvenescê-lo. Aclamado presidente, cargo que exerceria até a morte, Machado revela toda a sua habilidade como conciliador, possibilitando a convivência pacífica entre homens de tendências e idéias tão opostas. Ali estava o segundo lar. Nas 96 sessões realizadas durante a sua presidência, só faltou a duas. Na antevéspera de morrer, legou os seus livros, papéis e recordações literárias à Academia.
Alegria e carinho por um lado; por outro, um novo solavanco do destino. Empossado como ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do governo Prudente de Moraes, Sebastião de Lacerda levanta a bandeira da modernização do ministério, a fim de empreender maior dinamismo à administração. No entanto, toma algumas medidas precipitadas. Assim, a 1º de janeiro de 1898, coloca Machado em disponibilidade, com vencimentos integrais. Queixa do escritor a Artur Azevedo: "Fizeram-me um enterro de primeira classe".
Sentimento de injustiça. Inquietação. Desalento. Mas a sua capacidade de reação diante das dificuldades não diminuíra com a idade. Quem saiu ganhando foi a literatura. Desde 1895, Machado vinha trabalhando em um novo romance, de composição trabalhosa. Com o tempo livre, entregou-se de corpo e alma à obra. Em 1899, H. Garnier lançava a primeira edição do Dom Casmurro, a obra mais perturbadora até hoje escrita em língua portuguesa e que, no plano universal, encerrava com chave de ouro o século por excelência do romance. Capitu juntava-se à Virgília, das Memórias póstumas, e à Sofia, do Quincas Borba, formando a grande trindade feminina do romance machadiano. "Como ele faz desejadas as mulheres": exclamou Graça Aranha.
O livro só chegou ao comércio em janeiro de 1900. A tiragem de dois mil exemplares já estava esgotada antes de chegar às livrarias. Em meados de 1900, saía a segunda edição. Ainda em 1899, eram lançadas as Páginas recolhidas, um volume com peças de vários gêneros, contendo algumas obras-primas, como os contos "O caso da vara" e "Missa do galo" e a página de reminiscência "O velho senado".

A grande dor
Como se não bastasse a aposentadoria forçada, o escritor tem um novo motivo de desgosto. Em cima da queda, coice. Sílvio Romero publica então o seu estudo "Machado de Assis", uma tentativa grosseira de implodir a obra machadiana. A repercussão foi intensa, apesar da atitude de Romero não ser nenhuma novidade. Seus ataques a Machado eram freqüentes, sendo o mais violento o desferido em 1882, no folheto "O naturalismo em literatura". Lafaiete Rodrigues Pereira saiu em defesa do atacado e, sob o pseudônimo de Labieno, publicou uma série de artigos no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, respondendo a Sílvio Romero com agressividade evangélica: olho por olho, dente por dente.
Um ano depois de licenciado, Machado retorna ao serviço público, em situação não muito confortável, como secretário do novo ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, Severino Vieira. Apenas em 1902, quando Lauro Muller assume o ministério, reassume as suas funções, como diretor-geral de contabilidade.
1904. Carolina, cuja saúde vinha declinando desde 1896, piora de forma preocupante. Lembrando-se da melhora obtida por Machado, o casal viaja para Friburgo. Ilusão. A doença era incurável: câncer no intestino. Preocupada com a futura solidão do marido, Carolina confidencia a uma amiga que gostaria de morrer depois dele. Machado também esperava que assim fosse. "Eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro, porque não acharia ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades, e eu não tenho nenhum", escreve a Nabuco. O destino pensava diferente. No dia 20 de outubro de 1904, a velha companheira de 35 anos morria na casa do Cosme Velho.
Para homenageá-la, Machado não permitiu nenhuma alteração no interior da casa. Os talheres da esposa continuaram sendo colocados à mesa de jantar, assim como o seu travesseiro permaneceu na cama e a cestinha de costura, com o bordado interrompido, ficou no lugar em que ela o deixara. Essa homenagem mórbida demonstra como foi duro o golpe para aquele homem, já fragilizado pela idade e pela doença. Em carta a Joaquim Nabuco, Machado confessa, prevendo a viagem próxima, rumo ao outro lado do mistério: "Irei vê-la, ela me esperará". Essa confissão tem sido interpretada por alguns estudiosos como um sintoma de fragilidade, peculiar à velhice. Nada mais falso. Ela poderia até ser complementada por uma frase, escrita em uma crônica de 1862: "se é verdade, como eu creio, que além desta vida há uma vida melhor". Machado permaneceu lúcido e coerente consigo mesmo até o fim. Momentos antes de morrer, indagado se queria se confessar com um sacerdorte, respondeu: "Não quero, seria uma hipocrisia". Não acreditava nas religiões, como não acreditava nos homens. Mas, como Voltaire, acreditava na sobrevivência do espírito e na existência de Deus.

Último ato
Dois meses antes de Carolina morrer, aparecia nas livrarias um novo romance: Esaú e Jacó, uma reflexão sobre a dúvida psicológica, a incapacidade de tomar uma decisão, que pode também ser encarado como uma metáfora da história brasileira no final do Império e início da República. Foi a obra de Machado que recebeu maiores elogios da crítica. No ano seguinte, sai na Argentina, em tradução anônima. Ignoramos a reação do autor, sempre exigente, mas também discreto. Em 1902, entusiasmara-se com a publicação das Memórias póstumas no Uruguai, em tradução de Julio Piquet, que ele considerou "tão fiel como elegante".
Após a morte de Carolina, continua trabalhando, tentando enganar a imensa tris teza que o domina. "Há quanto tempo o mestre, que dantes falava de tudo, e de tudo sorria, não falava senão da morte, e não sorria mais", testemunha Artur Azevedo. Não descura de seus deveres na repartição e mantém o mesmo amor pela literatura. Em 1906, são lançadas as Relíquias de casa velha, reunindo 15 trabalhos de vários gêneros, inéditos e impressos, entre os quais algumas obras-primas, como o soneto "A Carolina" e o conto "Pai contra mãe".
Nos últimos anos, Machado foi venerado pelos jovens e cortejado pelos velhos como nenhum outro escritor brasileiro em vida. Reconhecendo a sua singularidade, escreve Nabuco: "Devemos tratá-lo com o carinho e a veneração com que no Oriente tratam as caravanas a palmeira às vezes solitária do oásis". Em visita a Roma, o autor de Minha formação colhe no Janiculo um ramo do carvalho que abrigara outrora a Torquato Tasso. A relíquia foi entregue a Graça Aranha, que a passou às mãos de Machado, em sessão pública na Academia Brasileira de Letras, como reconhecimento e consagração.
Adoentado, enfraquecido pela longa doença, "lamparina da madrugada", ainda encontra forças para disciplinar os "pensamentos idos e vividos" e redigir o derradeiro romance, no qual evoca e homenageia a companheira querida. No coração cansado do velho, parece que renascia o jovem que ele fora um dia, confiante e cheio de esperanças. Memorial de Aires é um testemunho a favor da vida, banhado de uma indulgência crepuscular, que dilui a ironia amarga dos últimos livros. Através da ficção, ele comunicava o que dizia, então, de viva voz a um amigo: "A vida é boa".


Dois meses após a publicação do Memorial, no dia 29 de setembro de 1908, às 3h 45 da madrugada, na casa do Cosme Velho, morria aquele que no século se assinou, imperecível, para todos os séculos, Joaquim Maria Machado de Assis.

"Ó ruas antigas!
Ó casas antigas !
Ó pernas antigas!"
(Dom Casmurro). Largo São Francisco de Paula,
[ca. 1890].

Extraído do livro Machado de Assis, uma revisão / organização Antonio Carlos Secchin, José Maurício Gomes de Almeida, Ronaldes de Melo e Souza. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998

 

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