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Embuçado. Caviloso - eis
aí as expressões que estavam na moda e às quais o escritor da rua Cosme Velho recorreu
em algumas ocasiões. Vamos lá, o embuçado, diz o dicionário, tem o rosto encoberto por
uma parte da capa e essa parte (acrescento agora) seria provavelmente a gola. O caviloso
é aquele que exige maior atenção porque pode ser perigoso, Cave canem! era uma
inscrição à entrada de certas casas romanas, Cuidado com o cão! Descartado o cachorro,
esse alguém caviloso pode seduzir ou envolver com malícia, usando até certa astúcia e
na penumbra dessa ambigüidade é que vejo um importante traço do estilo machadiano.
Mas é justo falar em imprecisão diante de uma linguagem assim precisa, tão
extraordinariamente clara? Nítidas as personagens e as coisas, nenhum esfumaçamento nos
diálogos enquanto o leitor avança na leitura descuidada: o texto (conto ou romance) vai
fluindo sem mistério, com a naturalidade de um rio. Contudo, espera um pouco, o leitor
não perde nada por esperar porque na aparente clareza desse rio é que começam a
aparecer certos coágulos de sombra, um aqui, outro lá adiante e que de repente (ou aos
poucos) vão ficando mais densos, mas de onde vieram? Esses coágulos. E essa névoa
agora? De onde vem a névoa delicada mas perversa e que faz a personagem levantar a gola
da capa? A cara desguardada e exposta já não parece tão exposta assim, as
transformações. A trama, tão evidente na sua estrutura, começa a enveredar por um
outro caminho que vai ficando incerto. Duvidoso, tantas dúvidas nos detalhes. O medo. Num
movimento de verruma (ou parafuso) o olhar machadiano vai descendo mais fundo,
interrogando. Devassando sem dó nem piedade, era costume dizer isso, sem dó nem piedade.
Falei no olhar machadiano e lá está ele no seu mais famoso retrato, onde os olhos de
verruma parecem mais apertados, diminuídos sob o cristal do pince-nez, e então?! Ah, o
ofício de "remexer a alma e a vida dos outros". Vida que quase sempre se
oferece num início assim brejeiro, até peralta, ele gostava das peraltices. Mas sem
aviso, de forma inesperada, as coisas começam a ficar embrulhadas e, em meio dos tais
embrulhos, o aparecimento de imprevistos. Acasos. O quotidiano fagueiro vai virando um
quotidiano dramático. Ou trágico. Mais uma volta no movimento da verruma e o que era
funesto pode voltar a ser engraçado, até divertido. Provando que nada fica estacionado
no tempo, amores e desamores, rupturas e reconciliações enfim, depois das
tempestades e naufrágios, resta um saldo, resíduo de uma esperança envenada, é certo,
mas presente através do humor.
A importância do humor que vem com a maturidade (velhice) depois das juvenilidades ou
tempestades e que seria a recompensa da paz provisória. Nessa relativa paz as personagens
sossegam o apito (ou pito) na cadeira-de-balanço que é propícia à reflexão, ou
melhor, à explicação, ah, esclarecer os tumultos no tumultuado processo da vida
passada. O relaxamento (distanciamento) estimula a memória. Apelar para essa memória na
sua contagem regressiva, um pouco mais longe, mais longe ainda na vontade de alcançar a
infância, e se a infância resgatada desvendar o adulto?
A sedução do texto onde há sempre um narrador obstinado tentando enfiar a criança na
pele do adulto, e então? Mas a criança também escamoteia, dissimula e agora?
Ainda assim, a busca prossegue aguda, como era ele (ou ela) bem antes disso tudo
acontecer? Como se comportava aquela esperta menina de tranças e o perplexo menino que ia
ser padre? Hem? Capitu e Bentinho estão diante do narrador rancoroso mas irônico e que
tenta atar as pontas do tempo (passado e presente) para assim esclarecer o sal do
mistério. Conseguiu? Atar esssas pontas! Sim e não, porque a infância na verdade está
tão embrulhada quanto o caramelo que alguém (em vão) tenta desembrulhar: o problema é
que, com o passar do tempo, o tal papel transparente acabou colado ao caramelo e agora faz
parte dele formando uma coisa só. Crianças, jovens e velhos sob a poderosa lupa da
memória que também pode falhar, e o sonho? A fantasia. A loucura.
Tudo somado, penso que Machado de Assis me parece sem misericórdia, quase cruel quando
arma os seus triângulos com o Diabo todo satisfeito sentado lá no meio. O sofrimento das
personagens mordidas pela dúvida e o sofrimento também daquelas outras sob o dente da
suspeita. Nem o narrador (na aparência, lúcido) escapa das danações, fragilizado nas
tentativas de atar as tais pontas, como eram os traidores? A traição já estava dentro
deles como o caroço dentro da fruta? Alguns dos triângulos ficam na vaguidão, apenas
esboços, sugestões de adultério: no conto admirável, "Missa do Galo", não
acontece nada. Certamente há insinuações principalmente no silêncio da sala onde o
jovem hóspede espera a hora da missa enquanto a anfitriã começa a divagar com seus
olhos noturnos e trajes também de noite e então? Vinga-se o escritor dessa
pasmaceira num outro triângulo armado e bem armado, "A Cartomante", onde tudo
acontece. Valho-me agora de um texto bastante expressivo do escritor na referência a
outros amantes na verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quais tínhamos
de resvalar com a tática e a maciez das cobras.
Volto ao triângulo Dom Casmurro e vou somar ao triângulo de Memórias póstumas de Brás
Cubas, onde o marido é bem mais conformado. Não esquecer que o amante tem todo o apoio
filosófico de um gênio delirante, aquele fabuloso Quincas Borba. É tamanho o fascínio
dos traidores e dos traídos, estes curtindo a dor maior, é claro, dor só abrandada pelo
tempo com a ausência das ilusões. E com a chegada da tal paz meio cínica, quando a
personagem pode até acender o charuto na brasa da própria casa que acabou de pegar fogo,
E eu com isso? Ora, dane-se! teria dito um corrosivo Bentinho já velhote ao
ser informado da morte do filho em viagem pelo exterior. Segundo suas conclusões, o rapaz
não era filho do outro? Que a terra lhe seja leve! desejou sem emoção porque nessa
noite jantou bem e ainda foi ao teatro. E o leitor, como fica o leitor nisso tudo? Capitu
traiu ou foi apenas uma vítima desse Otelo neurótico, aguçando os dentes do ciúme nas
suas sádicas mordidas? O curioso é que Machado de Assis, em outros textos, insiste
nesses dentes numa quase antropofagia, decifra-me ou te devoro!
À clássica pergunta, ele teria partido da realidade para a ficção ou a ficção
(invenção) nasceu antes do registro?, a origem da inspiração me parece um elemento
secundário, essencial é a força da linguagem sempre original na descoberta da
condição humana e que está presente mesmo quando ausente no espaço, no tempo ou na
morte. Os acontecimentos às vezes evoluem num ritmo vagaroso, como acontece quando o
cavaleiro solta as rédeas e se deixa levar pelo cavalo num trote tranqüilo, sem cálculo
mas eu disse sem cálculo? Porque de repente, sem aviso, com toda a energia
acumulada, ele retoma as rédeas, torce a direção e segue implacável pelo caminho que
desde o início planejou.
Memória e paisagem. E me lembro agora, alguns críticos andaram apontando a ausência da
paisagem nessa obra em prosa e verso, omissão da chamada cor local, ou melhor, ausência
do próprio Brasil tão exaltado no nacionalismo romântico. Mas vem Antonio Candido e
contesta essa crítica, sustentado desta vez pelo professor Roger Bastide, autor de um
longo ensaio (1940) sobre o nosso escritor. Escreve Roger Bastide:
Entretanto, reputo Machado de Assis um dos maiores paisagistas brasileiros, um dos que
deram à arte da paisagem na literatura um impulso semelhante ao que se efetuou
paralelamente na pintura, e que qualificarei, se me for permitido usar uma expressão
"mallarmeana", de presença, mas presença quase alucinante, de uma ausência.Prossegue
Roger Bastide na sua descoberta ao provar que o país está presente mesmo quando parece
estar distante dessa obra. E tinha então de ser um estrangeiro (apaixonado pelo Brasil
mas estrangeiro) a nos oferecer a chave:
A natureza pode, pois, parecer ausente de uma tela, estando na realidade estranhamente
presente no homem vestido de água, de céu, de terra.
A diferença é que não é um homem que está vestido de água mas uma mulher, a dona
Capitolina. Ou melhor, ela está vestida de mar porque o próprio mar está nos seus olhos
verdes:
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro,
como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca. Para não ser arrastado,
agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados
pelos ombros: mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Machado de Assis lia muito e vagos reflexos dessas leituras vamos encontrar nos seus
escritos, notadamente de autores estrangeiros: Schopenhauer, Goethe, Stendhal e
Shakespeare, desconfio que Shakespeare era o preferido. É longa a relação dos autores
desse leitor tão cheio de curiosidade, ateu confesso mas freqüentador também da
Bíblia, gostava do Eclesiastes com todos aqueles grãos de acasos e imprevistos,
denunciador feroz das vaidades. Parecia ter um bom relacionamento com José de Alencar,
mas Alencar era um romântico que escrevia com certa ênfase e Machado de Assis evitava a
ênfase. Lembro agora, no final de Iracema (paixão da minha juventude), daquele fecho
enfático, Tudo passa sobre a terra! A mesma idéia sobre a efemeridade das coisas
mundanas o nosso autor resumia com dureza, Tudo passa. Sem o ponto de exclamação e sem
comentários: Tudo passa.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase, escreveu Carlos Drummond
de Andrade. E o nosso bruxo alusivo e zombeteiro, no juízo drummondiano, decerto
sorriria, concordando, sem ênfase a vida piora. Contudo, na multiplicação dos loucos
deste planeta enlouquecido, é preciso lembrar que a ênfase faz parte da loucura. E
então? A graça do louco mesmo quando ele não é engraçado, ah, como Machado de Assis
sabia lidar com isso. E lembro agora que ele chegou a conhecer o poeta Castro Alves (1868)
que lhe foi apresentado por Alencar. Teria gostado realmente do belo baiano que sentia o
borbulhar do gênio? Desconfio que não, porque eles eram opostos, o condor ainda estava
na plenitude, a ruptura com Eugênia Câmara ocorreria alguns meses depois bem como o
fatal acidente na caçada. Penso que em toda essa escola romântica (a Escola de Morrer
Cedo, segundo Drummnond) há apenas um poeta que combinaria com o feitio machadiano,
aquele também corrosivo Álvares de Azevedo com a sua dúvida e ironia beirando o
sarcasmo.
Não é no romantismo mas no modernismo que vamos encontrar o parceiro ideal para o
encaramujado escritor da rua Cosme Velho, sim, estou pensando no magro poeta de Itabira,
ah, como esses dois iam se entender. Tu não me enganas, mundo, e eu não te engano a ti,
escreveu Drummond, e nesse verso vejo a epígrafe perfeita para uma obra que resiste
porque é a própria negação da morte.
Extraído do livro Machado de Assis, uma revisão / organização
Antonio Carlos Secchin, José Maurício Gomes de Almeida, Ronaldes de Melo e Souza. Rio de
Janeiro: In-Fólio, 1998
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