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A Viagem de São Brandão


Acho que o conceito de ecúmeno é fundamental para se compreender a imagem do "espaço" medieval. Este ecúmeno, obviamente, significando o espaço da cristandade. Se ele fosse distante e desconhecido, caberia o Paraíso. Fora dele, os monstros e o diabo, literalmente. É claro que havia lugar para as coisas demoníacas no espaço da cristandade, mas como algo a ser combatido, algo a ser eliminado. A partir disto podemo entender viagem marítima (ou melhor, a peregrinação) de São Brandão.

A religião, ou melhor, a sua coerção em relação aos iletrados e aos letrados dificultava as interpretações heterodoxas que suspeitassem uma heresia. Porém, admitiam as "maravilhas" em lugares bem longe ...

A tradução da Introdução de Selmer nos explica como um fato transformou-se quase em lenda, passando por gerações através do conto oral até ser escrito séculos depois. É foi tão marcante que a Ilha de São Brandão figurou durante séculos mais tarde em muitos mappaemundi medievais e renascentistas. Confundida com as Ilhas Afortunadas foi localizada na entrada do Estreito de Gibraltar, mas sua localização mais comum foi próxima das ilhas da Irlanda ou da Grã-Bretanha. Não foram traduzidas as notas da Introdução.

 Selmer, Carl (editor).Introduction in Navigatio Sancti Brendan Abbatis: From early latin manuscripts.Worcester: Four Courts Press. 1989. p.p.vii-ix.Tradução: Márcia Siqueira de Carvalho.

1. O Brandão Histórico.

São Brandão, o Navegador, nasceu no último quarto do século V, próximo ou em Tralee, em Kerry na Irlanda. Ele foi batizado e educado pelo bispo Erc de Kerry, tornou-se um famoso abade, e morreu na década de 70 do século VI em Annaghdown (Eunachdunne), Condado de Galway. Ele foi enterrado em Clonfert, Condado de Galway. Ele é visto como um dos mais importantes santos da Ordem Irlandesa.

Como a casa de S. Brandão estava situada na costa oeste da Irlanda, é muito natural que o mar tenha tido um papel importante na sua vida, como é, mesmo atualmente, no folclore e na literatura da região. De fato, é através de suas viagens marítimas que S. Brandão tronou-se famoso na história e na literatura como "Brandão, o Navegador". Uma de suas viagens levou-o à Escócia, onde ele visitou S. Columba (depois de 563) e permaneceu lá por algum tempo; também se acredita que ele fundou um mosteiro. Também se diz que ele fez uma viagem à Inglaterra, onde ele se tornou abade do mosteiro de Llancarvon em Gales; neste mosteiro Machutus (S. Malô) diz-se que ele teria sido seu aluno. Aqui, também, ele fundou mosteiros, como é mencionado em Vita Sancti Brendani.

Alguns estudiosos também falam de uma viagem à Bretanha e às ilhas de Orkney e de Shetlands; possivelmente ele deve Ter chegado às ilhas de Faroes. As atividades de S. Brandão como membro da Igreja, porém, tiveram lugar no Oeste da Irlanda, onde estão os seus mais importantes estabelecimentos, i.e. Ardfert (Condado de Kerry), Inishdadroun (Condado de Clare), Annadown (Condado de Galway), e Clonfert (Condado de Galway). Seu nome se perpetuou no nome de muitos lugares e marcos ao longo da costa irlandesa (e.g. Brandon Hill (colina), Brandon Point, Monte Brendan, Brandon Well (fonte), Brandon Bay (baía), Brandon Head (ponta).
 
 

II. A Navigatio e seus componentes.

É muito natural que um personagem tão conhecido como uma figura histórica, tal como S. Brandão, junta-se a outros personagens muito importantes por um destino peculiar, turvado por muitas lendas a sua volta. Através do tempo, a história de sua vida e de suas explorações foi dotada com proezas e aventuras que ele nunca fez. Gradualmente, o passageiro do mar (navegante) e missionário foi transformado num aventureiro e descobridor e o herói das mais incríveis explorações que a imaginação crédula pôde produzir. O folclore também foi prontamente inclinado em creditar a ele ações e proezas originalmente atribuídas a outros heróis e a relacioná-lo com fábulas e sagas correntes entre os povos da costa Ocidental da Irlanda.

Portanto, quando mais tarde as histórias da vida dos grandes homens começaram a se cristalizar sob a forma escrita, o santo finalmente recebeu duas biografias: uma, o mais fatual relato histórico e hagiográfico, como nos é apresentado em Vita, e uma outra forma, uma versão mais enfeitada e popular do narrador da Navigatio. Ambos relatos têm uma história interessante. A Vita, baseada numa tradição monástica e escrita num mosteiro irlandês, faz parte da famosa coleção das Vidas dos Santos Irlandeses e da Acta Sanctorum, enquanto a Navigatio, baseada praticamente na tradição oral e no folclore, tornou-se uma das mais conhecidas narrativas da Idade Média. Ambas versões, é interessante observar, são encontradas novamente no final da Idade Média e influenciam-se mutuamente competindo com outras versões, a Vita aparecendo numa forma abreviada como uma introdução ou como epílogo doas textos da Navigatio, e a Navigatio sendo inserida, na totalidade ou em partes, nos manuscritos da Vita.

A Navigatio demonstra se um único trabalho composto de elementos de várias origens. No seu âmago é um trabalho de caráter visionário. O objeto da viagem é claramente a busca pela Terra repromissionis que o monge visitante Barinthus descreveu tão vivamente a S. Brandão no início da história. Essa procura por um Outro-mundo (Otherworld) alegre é sem dúvida tão antiga quanto a própria humanidade. Refletida na literatura de todos os povos civilizados, parece incorporada em Avestan, e nas escatologias dos caldeus e dos egípcios; ela ecoa novamente nas mitologias grega e romana onde Atlântida, os Campos Elísios, e a Insulae fortunatae descreve um outro mundo ideal. Também é a busca retratada tanto nos escritos canônicos e apócrifos judaico-cristãos, tal como o Livro de Enoque, As Visões de Esdras e Isaías, a Nova Jerusalém do Apocalipse, o pastor Hermas, a Revelação de S. Paulo, a Transitus Mariae, e muitas outras. A literatura irlandesa antiga também oferece exemplos da literatura visionária, tanto pagã quanto cristã.. Aqui os nomes do alegre Outro-mundo são, ao lado de denominações cristãs, Tír tairngire e Tír Breasail. As descrições são feitas pelos ciclos Cuchulainn e Conn-Cormac, as Aventuras de Nera, a Viagem de Bran, as Visões de Colm Cille e de Fursa, Fís Adamnáin, e outras histórias de aventuras marítimas.

Os irlandeses, com suas terras cercadas de água por todos os lados, ficaram conhecidos como bons navegantes desde os tempos mais recuados. Longas viagens às ilhas mais afastadas no oceano que eles afirmaram ter conquistado através de seus méritos de navegadores durante a Idade Média antiga poderá soar impossível ao leitor moderno que é informado sobre os homens cruzando o Pacífico e o Atlântico em balsas pequenas, algumas do tamanho de um bote a remo. Notícias dessas viagens no início da Idade Média formam um gênero literário peculiar na Antiga Literatura Irlandesa, chamada de Imrama. Elas (as notícias) eram essencialmente inspiradas em motivos religiosos e eram, apesar de todos os perigos, pôs em prática um fervor religioso quase sempre nas margens do fanatismo.

Em muitos casos os relatos dessas viagens feitas por marinheiros que voltavam correspondiam à verdade e refletiam as descobertas verdadeiras; encontro com baleias, icebergues, gêiseres (fontes de águas quentes) e vulcões devem ter ocorrido. Outras notícias, também, sem dúvida animadas com longas histórias de encontros com povos estranhos e animais míticos. Eles eram recebidos com interesse pela população curiosa, ansiosa em aprender sobre países estrangeiros e ilhas, e transmitidas oralmente, tornam-se parte do folclore irlandês. Quando elas finalmente tomam a forma escrita, os compiladores, e escritores também, sem dúvida tomaram a liberdade com a forma, os conteúdos e personagens, descartando partes consideradas impróprias e adicionando espécies de suas próprias fantasias e conhecimentos. Entre as três mais conhecidas Imrama a Navigatio mostra uma surpreendente afinidade muito íntima. Um exemplo semelhante no extraordinário são certos episódios e mesmo capítulos inteiros da Imrama Maelduin, o mais antigo conhecido exemplo desse gênero; mas existem importantes paralelos na posterior Viagem de Churac de Corra e a Viagem de Snedgus e Mac Riagla. Porém, apesar de alguns excelentes estudos sobre essas linhas feitos por excelentes estudiosos, uma resposta conclusiva respeitando a época, a precedência, e a inter-relação entre essas histórias ainda precisa ser feita.

Além da feição visionária existe outra característica religiosa identificada na Navigatio: o ascetismo. No período entre a introdução do Cristianismo e a Alta Idade Média, o clero irlandês demonstrou uma tendência extremada ao ascetismo. Rivalizando na renúncia a toda a mundanalidade exemplificada pelos monges do Oriente nos desertos da Síria e do Egito, muitos monges irlandeses poderiam se retirar para o seu próprio deserto aquático: o oceano. Lá, nas grutas de ilhas solitárias, separados de casa e dos amigos, eles poderiam viver suas vidas de mortificações auto-inflingidas como solitários ermitões, em solidão e rezas. Outros, combinando ascetismo com zelo missionário, poderiam abrir mão da segurança de sua ilha nativa e ir para o Continente como missionários e pregadores. Nos dois casos, o voluntário renunciava às famílias e aos clãs e o risco da fome e da morte se transformava literalmente numa resposta da ordem de Deus para Abraão (Gen. 12.1):

"Vá para fora do seu reino e se afaste dos seus parentes, saia da casa do seu pai, e venha para a terra que eu lhe mostrarei".

Um conselho de perfeição, sua própria mortificação encontra sua expressão literária em alguns textos latinos no termo peregrinari. Nesse sentido antigo um peregrinus, em contraste com a conotação posterior dessa palavra, sentia-se feliz em passar o resto de sua vida como um exul voluntário, fora de sua terra natal, ao serviço de Deus. Peregrini irlandeses foram vistos em vários países do Continente assim como em numerosas ilhas do Atlântico Norte, as Órcades (Orkneys), as Faröes, as Hébridas, ao longo da Costa da Irlanda e Escócia, e até mesmo na longínqua Iceland. Peregrinari ocorre também ocorre na própria Navigatio e recebe uma ilustração extraordinária numa passagem na qual um dos três monges retardatários, que disseram a São Brandão (Capítulo 5):

"Decreuimos enim peregrinari diebus uitae nostrare," transforma-se num peregrinus na Ilha dos Três Quoirs (?) (Capítulo 17). Além disso, Paulo o Ermitão, cuja história de vida está referida no Capítulo 26, é um típico peregrinus. Até o próprio S. Brandão pretendeu, como está na Vita, no início de sua primeira viagem fazer uma peregrinatio a uma ilha deserta.

Interessante também para o leitor da Navigatio são os elementos clássicos contidos nessa epopéia, embora eles sejam de menor importância. Eles aparecem na narrativa quando feita a forma escrita, no final de sua gênese, e sem dúvida refletindo o conteúdo clássico de seu compilador. Esses elementos consistem principalmente de alusões e reminiscências à Eneida de Virgílio e em menor grau, a Odisséia de Homero.

Os orientalistas, também, se interessaram pela Navigatio. Dois estudiosos árabes, de Goeje e Asín, acreditam ver analogias entre a Navigatio e as viagens de Simbad, o Marinheiro, no Livro das Mil e Uma Noites, sugerindo uma relação entre a Navigatio e a última obra. Os paralelos apontados são, entretanto, mais propriamente imaginado, se não uma mera coincidência. Enquanto as datas de origem desses dois contos não forem estabelecidas, as discussões relativas a qualquer ligação entre eles não são proveitosas.

O esboço inicial da estrutura e os ingredientes da Navigatio serão suficcientes para mostrar as suas características complexas. Como foi indicado, é uma história de caráter visionário cristão, combinada com relatos de aventuras de navegantes irlandeses antigos, embelezada com contos e sagas do folclore, e temperada com reminiscências clássicas. O herói dessa epopéia tornou-se S. Brandão, o abade de Clonfert, que, pela sua vida santa, fundações de mosteiros, sua atividades missionárias e suas viagens temerárias, atingiu grande fama entre os habitantes dos territórios de língua celta. Seu nome é mencionado nos antigos escritos irlandeses e sua gloria posthuma fez dele, depois de S. Patrício e S. Columba, o mais importante santo irlandês. É, então, natural, que a Navigatio pela sua rara natureza também tenha despertado intenso interesse no Continente, onde foi copiada e recopiada dezenas de vezes e tornou-se o escrito mais freqüentemente reproduzido na Idade Média.


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Revisado em 05/10/2007
 
 
 
 


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