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Geografia e Imaginário na Idade Média
Márcia Siqueira de Carvalho

( Doutora em Geografia Humana. Docente do Departamento de Geociências/CCE/UEL e Ex-Professora Visitante da UNESP - Presidente Prudente do Curso de Pós-graduação em Geografia onde ministrou a disciplina O Pensamento Geográfico na Idade Média e Renascimento. e-mail: marcar@uel.br

Publicado em RAE'GA (ano 1, n. 1) Curitiba: Boletim do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná. 1998. pp. 45-60.


1. Introdução
2. O "maravilhoso" como referência: um parêntese para a Literatura e a História.
3. A Geografia na Idade Média

4. Terras reais e mitos em Marco Polo

5. Conclusão
6. Bibliografia


1. Introdução.

          O conceito de geografia (geographia) data de aproximadamente do século III, mas o estudo da terra, quer tenha sido as medições da esfera, quer tenha sido um esboço de mapa do mundo conhecido, o precedeu, tendo sido feitas essas discussões dentro do conhecimento da Phusiologia ou da Historia (ROMM, 1994, p.9-44).  Essa reunião de elementos que agregava elementos da cosmografia e da filosofia incorporou ao mesmo tempo um certo tipo de "literatura de viagens"  ou lendas de lugares muito longínquos (muthoi), dentro de um contexto geográfico mais geral no qual não se afirmava com certeza a existência dos limites do mundo. Um modelo de concepção do mundo era de uma grande ilha circundada por uma vasto oceano, modelo esse representado na literatura e em mapas (peirata gaies). Nesse Oceano desconhecido e aterrador foram identificados acidentes geográficos que separariam o mundo conhecido do desconhecido, tal como o Estreito de Gibraltar ("Colunas de Hércules"), ou mais, os limites da existência da condição humana. Além desse marco tudo poderia ser possível (o caos), sobretudo o perigo e a morte. Povos que se aventuraram além do Mar Mediterrâneo em direção à África já descreviam elementos estranhos e assustadores, realimentando o exótico associado às fronteiras distantes do mundo. Porém, nos limites do mundo mediterrâneo, nas viagens (periodos ges) que poderíamos de maneira grosseira situar dentro de estudos de uma geografia "geral" que os descreviam, o estranho e o perigoso tiveram lugar assegurado. A noção mais importante para entendermos isso é exatamente aquilo que não era considerado oikoumene (a terra habitada ou a terra conhecida), ou seja "as terras mais distantes" a partir das quais foram erigidas as tradições míticas tanto referentes aos aspectos naturais quanto biológicos. Mais especificamente aos espaços imaginados na superfície da Terra.

              Essa concepção atravessaria séculos, tendo, na Antigüidade, os romanos reelaborado elementos gregos e, na Idade Média ambos elementos foram reelaborados novamente. Vemos, portanto, a necessidade de compreender tanto como o conhecimento geográfico foi sendo produzido anteriormente, quanto o imaginário medieval que agregou e manteve determinadas concepções séculos afora.

              Entre 1480 e 1520, ocorreu uma mudança epistemológica em relação à concepção da forma da Terra (RANDLES,1994). Passou-se da visão em que ela era plana à sua redondeza, o que alterou profundamente o pensamento e a história da Geografia. Antes dessa mudança, as várias concepções medievais teriam partido de duas noções de Terra: uma plana e outra redonda, de Crates de Malo (c-160 a.C.) e de Aristóteles (384-322 a.C.). Elas originaram as sínteses bíblicas (cratesiana e aristotélica), a teoria das cinco esferas e da existência ou não dos antípodas, bases da concepção de ecúmeno medieval.

               Estas concepções orientavam a explicação do mundo medieval. A bíblico-cratesiana acreditava na existência de quatro ilhas separadas por uma imensidão de água, o que tornava impossível a comunicação entre elas, reduzindo o ecúmeno cristão a somente uma delas. A bíblico-aristotélica acreditava na existência de quatro esferas superpostas, formadas pelos quatro elementos, com a existência de terra firme plana em função da grande quantidade de água em volta (proporção de 1 para 10). A concepção das cinco zonas pré-supunha uma terra redonda, atribuída a Parmenide (V a.C.) [ver fragmentos], pressupunha uma terra redonda dividida em duas zonas geladas, uma tórrida e duas temperadas. Diametralmente opostas, somente nestas duas últimas seria possível a existência de pessoas, redefinindo o ecúmeno cristão e fonte importante na discussão acerca da existência dos antípodas. Entre os argumentos defendidos por clérigos medievais (AGOSTINHO,1990) que duvidavam da existência de seres humanos no outro hemisfério, estava a impossibilidade das pessoas viverem de cabeça para baixo sem cair "para fora" da Terra !

               As especulações sobre a forma da Terra estavam ligadas ao ecúmeno, terra habitada (ou habitável) que representava o espaço geográfico da cristandade ao alcance da palavra de Deus. Logo, temos especulações sobre a extensão deste "ecúmeno cristão", reproduzido cartograficamente sob a forma dos mapas T-O, que datam desde o século VII. Estes mapas se caracterizavam por dispor os continentes - Europa, Ásia e África - divididos pelo Mar Mediterrâneo e seu núcleo central era a cidade de Jerusalém, o "umbigo do mundo".

               RANDLES (1994) afirma que até 1520, coexistiram várias interpretações acerca da forma da Terra, com desdobramentos vários sobre as terras possíveis de existir  (i.e. as Quatro Ilhas, o Grande Hemisfério Austral). Porém, outras interpretações de caráter geográfico desenvolveram-se durante a chamada Idade Média e algumas sobreviveram até o século XVII. Elas se referem aos habitantes do hemisfério e de regiões  na época desconhecidas.


2. O "maravilhoso" como referência: um parêntese para a Literatura e a História.
 

               A análise da literatura acerca do "maravilhoso no ocidente medieval" (LE GOFF, 1990, p.229), nos possibilitou a incorporação de um novo significado do "maravilhoso" pré-cristão e cristão em relação às terras míticas:

              "O sobrenatural, o miraculoso, que constituem o que é o princípio do cristianismo, parecem-me diferentes, por natureza e função, do "maravilhoso", embora tenham marcado com seu selo o maravilhoso cristão". O maravilhoso da época cristã parece-me pois substancialmente encerrado dentro destas heranças anteriores, de que encontramos alguns elementos "maravilhosos" nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na literatura encontra-se quase sempre um maravilhoso cujas raízes são pré-cristãs".

(LE GOFF: 1983,19)
            Nos séculos XII e XIII, o maravilhoso irrompe na cultura da pequena e da média nobreza e na cultura eclesiástica e aristocrata, mas de maneiras distintas. A literatura cortês privilegia o maravilhoso, opõe a vida no castelo à floresta misteriosa. LE GOFF, (1990, p.23), associando o maravilhoso ao sobrenatural deste período, o define pelos adjetivos mirabilis (o maravilhoso de origens pré-cristãs), magicus (o sobrenatural maléfico) e miraculosus (o maravilhoso cristão, o milagre, a interpretação do Antigo Testamento e do Apocalipse pelos cristãos). Ainda se referindo ao maravilhoso - a sua função - o autor lhe deu função dde ser "um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano", chegando os mirabilia a tratar de uma espécie de mundo às avessas (LE GOFF,1990, p.25). Na literatura dos séculos XII e XIII, encontramos a paródia, chantefable, fabliaux.

               O estudo do maravilhoso na Idade Média tem como uma das fontes principais a literatura da época: hagiografias, narrações grotescas e eróticas, aventuras de cavaleiros, genealogias, escritos religiosos. Enfim, uma literatura elaborada por religiosos, com fins didáticos, ou por uma minoria letrada para o divertimento de uma corte. Muito próximo aos fabliaux estão os adynata ou impossibilia, relatos de um mundo ao avesso, paródias à realidade. A separação entre a paródia e as obras consideradas relevantes quanto à informação de terras distantes e costumes, por vezes torna-se bastante delicada. Isto não acontece quando trata-se de fábulas onde as virtudes e os defeitos humanos são assumidos pelos animais (LULIO,1990).

              Assim como os historiadores medievalistas garimpam em documentos, escritos ou não, vários aspectos da sociedade, o nosso objetivo tem sido buscar as representações espaciais, apesar da dificuldade por fazê-la em fontes secundárias ou em raras traduções em fontes primárias literárias. As terras reais ou utópicas aparecem, por vezes, na literatura cortês, em gestas e outros escritos. Surgem então seres e terras imaginadas, concepções de terras distantes cujos habitantes estão mais próximos de criaturas do que seres humanos. Na literatura cortês há a contraposição da floresta à corte e aos valores dominantes e da cultura. Na literatura de "viagens" são encontrados monstros e lendas. Enfim, lidamos ao mesmo tempo com homens bestializados na floresta francesa de Broceliande ( i.e. Lancelot ou Le Chavalier à la Charrete de CHRÉTIEN de TROYES, 1991) e com recorrentes cinocéfalos (metade homens, metade cães) em tratados de Geografia da época.

               Com certeza, a maioria dos leitores a quem se destina este artigo desconhece a chantefable Alcassino e Nicoleta (final do século XII ou início do século XIII). Ela trata de um mundo ao avesso, ou mesmo, uma utopia onde os valores são totalmente inversos. Outra importante obra da literatura medieval - Melusina - traz elementos da literatura grega e seu autor  a elabora como uma história da linhagem dos nobres de Lusignan.

               Separar os lugares utópicos, maravilhosos, das descrições de terras percorridas e visitadas (onde o maravilhoso surge paralelo) seria neste momento apartar as duas faces bastante parecidas de uma mesma moeda. E por que os espaços geográficos não teriam a sua mirabilia, a sua contrapartida no terreno da utopia ?

               O "maravilhoso" atingiu muitos aspectos da vida do homem do século XII e XIII, independente da sua posição social, porém o que nos traz mais interesse refere-se ao maravilhoso geográfico, as ilhas da cartografia medieval, os habitantes das terras maravilhosas, quer monstros humanos ou animais imaginários, o maravilhoso bíblico imaginado na Terra, o maravilhoso literário a descrever terras sobrenaturais.

               A leitura de algumas obras de LE GOFF e da literatura medieval por ele analisada nos trouxe subsídios, como no artigo O Deserto e a Floresta no Ocidente Medieval, parte do livro O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval (LE GOFF, 1990, p.37-42) para analisarmos o que chamamos de essencialmente geográfico - descrições de terras lendárias e reais e formas de representação cartográfica.

               As ilhas imaginárias, por vezes, foram vistas no contexto parecido ao locus desértico espiritual e geográfico, propício ao encontro das tentações e de sua superação na vida de eremitas (desertos de areia, desertos montanhosos e frios), como por exemplo:

          "O deserto insular foi ainda mais procurado pelos monges célticos e nórdicos. Eles escreveram um grande capítulo da antropologia histórica do deserto marítimo, dos desertos do mar e do frio. O mar substituiu para estes monges o deserto egípcio. S. Brendano, cujas peregrinações marítimas foram narradas por um livro de sucesso na Idade Média, Navigatio Sancti Brendani, vai de ilha em ilha, encontrando monstros e coisas maravilhosas, evita a ilha do Inferno e aporta finalmente à ilha do Paraíso. Na vida de um destes monges errantes pelo Oceano, escrita nos derradeiros anos do século VI por um deles, Columba, diz-se que eles "esperavam encontrar o deserto no mar inultrapassável." (LE GOFF, 1990, p. 42)
 

            O relato dessa viagem sob a forma de gesta, que teria ocorrido entre 565 a 573, chegou ao século XI mais detalhada. Entre 1487 e 1759, várias expedições foram feitas na tentativa da localização da Ilha de S. Brendano, ora no Atlântico Norte, ora próxima ao Equador.

(DREYER-EIMBCKE, 1992, p.59).

3. A Geografia na Idade Média.

               KIMBLE(1938) demonstrou, em relação à Geografia, como o conhecimento dos clássicos foi apropriado e reinterpretado  pelos eruditos da Idade Média, afirmando que devemos considerá-lo mais como uma sobreposição do que uma descontinuidade. Nas enciclopédias originárias dos monastérios encontrava-se uma seção geográfica, ou melhor, cosmográfica, independente desse termo significar coisas distintas para diferentes pessoas. Desde a descrição da criação do mundo e a distribuição da humanidade na sua superfície, na parte cosmográfica estavam reunidas as informações sobre os fenômenos do tempo e do clima, das plantas, dos animais, das pedras preciosas e das "maravilhas", além do que hoje classificamos de "história política".

               Sem uma data exata para o início da Idade Média, podemos apontar com mais exatidão os Padres da Igreja como os primeiros a se apropriarem do conhecimento clássico e reinterpretá-lo da ótica cristã.

               Os principais documentos clássicos que KIMBLE descreve são os itinerários do século IV (rotas para peregrinos e viajantes que descreviam a sucessão de lugares e a distância entre eles ou divisões administrativas), e escritos de Solino, Avienus e Pappus (nos séculos III e IV). Recolhendo informações de fontes mais antigas (i.e. Plínio e Pompônio Mela  ver mapa), Solino pautou-se mais na descrição de coisas "maravilhosas" do que do mundo de sua época. Avienus, tendo como base Piriegestis  de Dionísio, elaborou poesias, uma descrevendo os Alpes e os sistemas de rios (Descriptio Orbis Terrae) e outra, da qual existem apenas fragmentos onde descreve as praias do Mediterrâneo, Cáspio e Negro. De Pappus pouco se conhece além da sua obra perdida Chorografia Oikoumeniké, que foi utilizada por Moisés de Chorene e por esse sabemos que Pappus baseou-se nos mapas de Ptolomeu.
               A influência de Ptolomeu (ver miniatura imaginária) é encontrada no século IV em Marcellinus (Rerum Gestarum Libri XXXI), e nos séculos V, em Macrobius (Somnium Scipionis) e Capella (Satyricon).
               Tanto Macrobius quanto Capella defendiam a concepção ptolomaica de uma terra redonda limitada pelas águas e divididas em cinco zonas. Apesar da concepção esférica ter sido eclipsada no decorrer da Idade Média, os mares como limites do ecúmeno e as cinco zonas "climáticas" se mantiveram e se tornaram uma tradição na geografia da época. Ambas idéias levaram a uma terceira, a da impossibilidade de se chegar aos antípodas (ao sul) devido ao grande calor da inabitada e inabitável zona tórrida, onde o mar 'fervia'.

               De acordo com KIMBLE (1938), no século IV o pensamento geográfico estava muito longe da hegemonia ptolomaica, e Heródoto, Eratóstenes, Hiparco e Estrabão não eram plenamente aceitos como autoridades. O mesmo não acontecia com Pomponio Mela (De Situ Orbi) e Plínio (História Natural). Se Macrobius e Capella mantiveram alguns aspectos da tradição ptolomaica, também deram grande importância na reprodução das descrições de Plínio e Mela em relação às coisas "maravilhosas'. Essa se mantiveram devidamente reproduzidas até a época das conquistas do Novo Mundo.

               O fato do saber no período medieval partir dos clássicos e ser reproduzido com certas liberdades, de acordo com o autor "copista", levou mais à manutenção do que a inovação do conhecimento geográfico. Uma outra característica dessa época foi considerar a Geografia importante para sustentar a existência de lugares bíblicos, a ponto de podermos fazer um paralelo com a reinterpretação da História feita por S. Agostinho na obra  "A Cidade de Deus". A interpretação e a disseminação da doutrina cristã tomara o lugar da observação no trabalho de rever as fontes clássicas do conhecimento geográfico.

               As "enciclopédias" medievais foram, por excelência, o tipo de literatura onde estava reunido o conhecimento geográfico. Orosius,  um padre espanhol do século V e contemporâneo de Santo Agostinho, assim descrevia a Terra e os continentes na sua obra Historia Adversum Paganos :
 

            "Nossos antepassados fizeram uma tripla divisão do mundo, que era cercada pelo oceano na sua periferia. A estas três partes eles chamavam Europa, África ... Ásia, cercadas nos três lados pelo Oceano, que se estendia por todo o Leste. Na direção do Oeste, à sua direita, toca no limite da Europa, próximo do Polo Norte, mas à sua esquerda, alcança até a África, exceto próximo ao Egito e Síria, onde é ligado pelo Mare Nostrum (obs.: Mar Mediterrâneo) que é comumente chamado de Grande Oceano".(OROSIUS apud KIMBLE, 1938)

               Orosius,  incorporando informações além dos clássicos, assim descreveu a Bretanha:

            "Bretanha, uma ilha no Oceano, localiza-se a uma grande distância ao norte: ao sul estão os Gauleses. A cidade chamada Portus Rutup (Richborough em Kent) tem as condições de ser o lugar mais próximo para aqueles que cruzam o mar.

               Deste ponto, a Bretanha está diante dos territórios de Menapi e Batavi, que estão localizados não muito afastados da terra de Morini no sul. Esta ilha tem 800 milhas de comprimento e 200 de largura. No imenso oceano que se estende por detrás da Bretanha estão as ilhas Órcades (Orkneys), das quais 20 são desertas e 30 habitadas... A Irlanda está bastante próxima da Bretanha e é menor  em área. Ela é, entretanto, mais rica, levando em conta o aspecto favorável de seu clima e solo". (OROSIUS apud KIMBLE, 1938)

                 A longevidade dessa obra é notável, tendo sido citada por enciclopedistas cristãos até o século XIV e  por Pierre d'Ailly no século XV.

               Outra  obra, cujo conhecimento geográfico foi  bastante difundido,  foi feita por Isidoro de Sevilha (600-636)  e denominada Etymologiae. Do total de vinte livros, apenas dois tratam do mundo, continentes, mares, rios, ventos e divisão política e o forte  acento bíblico está representado ao lado do relato das "maravilhas" recolhidas de  Mela e Solino e de outras fontes pagãs.  Um exemplo é quando ele se refere aos grifos, quadrúpedes alados imaginários que viveriam nos Montes Hiperbóreos, e seriam responsáveis pela guarda de território ricos  em ouro e pedras preciosas da Scytia. Mantendo o princípio de que os mares seriam os limites naturais do ecúmeno, Isidoro de Sevilha descreve a Europa separada da Ásia pelo rio Don e além  do  oceano ao  Norte localizava-se a terra da Barbária (dácios, alanos, godos e suevos), sendo Thyle (ou Tule) a última terra conhecida ao norte,  onde o mar congelava-se.  O ecúmeno terminava nas Ilhas Afortunadas  a Oeste, e  eram assim chamadas  por Isidoro porque:

            "elas são abençoadas pela abundância de produtos; suas árvores dão maçãs naturalmente, suas montanhas são cobertas com parreiras e em todo lugar existem lavouras e plantas no lugar de pastagens. Daí a falsa opinião dos pagãos, e dos poemas dos poetas antigos, apontando essa ilhas como o Paraíso. Elas estão situadas no Oceano na altura da costa da Mauritânia."(ISIDORO DE SEVILHA apud KIMBLE,1938, p.26)

               Os limites do ecúmeno a leste , circunscreviam as costas da Índia, com muitas ilhas e cidades - Tapobrana (ilha rica em pérolas onde haveria dois verões  e dois invernos e as flores se abririam duas vezes por ano), Chryse, Argyra e Tyle (nesta as árvores nunca perdiam as folhas). Compilação de compilações, Etymologiae teve grande influência, independente da veracidade questionável de suas fontes e já compreendia uma terra redonda e plana.
               Outra sistematização onde são encontrados elementos geográficos foi a obra  Cosmographia  do Geógrafo Anônimo de Ravena (século VII), cujas fontes pagãs foram predominantes, entre elas o itinerário de estradas imperiais (inclusive a Tabela de Peutinger), de Jordanis sobre a história dos godos, e até Ptolomeu nomeado erroneamente "imperador da Macedônia no Egito". Apesar de considerar a Terra redonda, essa obra tinha um interpretação bíblica do espaço mundial,  acrescentando um deserto intransponível a leste da Índia, esta limite do ecúmeno.

               Por não existir naquela época diferença entre ciência e religião, para esses eruditos acreditar que o Paraíso estava num lugar do oriente, além das terras conhecidas, era uma fato tão reconhecido como a existência de elefantes na África. Opiniões mais  ou menos extremadas estavam muito mais afastadas  do que hoje reconhecemos como Geografia. Mas naquela época  os Evangelhos foram um guia  na discussão da forma da Terra, e na concepção de uma terra redonda e plana,  como  fez Maur  na obra "De Universo ":

           "O mundo é conhecido por sua redondeza (orbis) semelhante a uma roda. Por qual motivo uma pequena roda é chamada orbiculus. Por isso as águas do oceano cercam-na por todos os lados e circundam seus limites. O mundo (orbis) significa tanto o mundo da história ou a Igreja universal de alegoria, também é usado, no sentido oposto, para descrever os ímpios que são freqüentemente chamados pelo nome de mundo."(MAUR apud KIMBLE, 1938, p.31)

                O exemplo mais extremado foi Cosmas Indicopleustes, que descartando os clássicos "pagãos", ao escrever Christian Topography (Topografia Cristã)  no século VI  descartou tanto a forma esférica quanto a redonda e plana da Terra, criando uma outra  onde as extremidades do céu estavam ligadas às extremidades da Terra, esta retangular e plana.  Cosmas foi radical ao negar a existência dos antípodas. Para ele era antinatural e irracional  homens viverem de cabeça para baixo e não via meios deles ficar de pé, argumentando que por não haver referência à pregação dos Evangelhos para essa região, logo, ela  inexistia .
                A defesa da terra plana teve outros defensores, como Hilary de Poitiers, Ambrósio de Milão, Santo Agostinho, Cassiodorus e Isidoro de Sevilha, pois nenhum deles afirmou com clareza que a Terra era um globo, uma esfera. Isidoro, apesar de referir-se à esphera, seguindo Ptolomeu, reproduzia algo que ele não compreendia com clareza, confundindo esfera com círculos. Para ele, a terra achatada seria dividida em círculos,  ao norte e ao sul, limitando áreas mais frias das mais quentes. A discussão da terra plana, como já vimos, podia estar ligada com a existência ou não dos antípodas, o que levava à admissão da existência de um quarto continente ao sul, o que contrariava a versão corrente das terras emersas. Santo Agostinho, na obra  "A  Cidade de Deus" (XIV,8) achava absurdo tanto a idéia de homens atravessando o oceano em navios  quanto  a existência de habitantes  em regiões tão distantes que descendessem de Adão.  Já Isidoro de Sevilha, se não negava, duvidava da existência de uma fabulosa raça dos antípodas que diziam existir.

                Escoto de Erígena, na sua obra De Divisione Naturae dedicou uma pequena parte às ciências naturais, se utilizando de Plínio. Exceções de compilação de obras antigas ficaram por conta do Venerável Beda (século VIII)- ao referir-se ao movimento das marés quando  descreveu as viagens de Arculf, um bispo gaulês do século VII-, e Dicuil, monge escocês que no século IX referiu-se à descoberta da Islândia e ao canal entre o Nilo e o Mar Vermelho. Alfredo, o Grande, rei da Inglaterra, traduzindo obras, entre elas a Historia de Orosius, introduziu uma descrição da Alemanha.

                Em resumo, as referências geográficas desde o século VI até o século XI tiveram uma base comum na antigüidade clássica, expurgada de elementos gregos paulatinamente, com raras exceções que ultrapassassem a mera compilação de maneira a "comprovar" opiniões da Igreja, mesmo que elas fossem sendo estruturadas dentro de um debate com as  idéias clássicas. Aos poucos se construiu a concepção de uma terra plana, duvidou-se e negou-se a existência dos antípodas, não se acreditou num quarto continente e afirmou-se a impossibilidade de ultrapassar a "zona tórrida". Em vez da incorporação dos conhecimentos contemporâneos acerca das terras, predominou o hábito intelectual de reproduzir os elementos fabulosos das terras desconhecidas, com especial destaque as obras de Plínio e Solino.
 


4. Terras reais e mitos em Marco Polo.

               Não nos referiremos aqui aos muitos viajantes  missionários que elaboraram relatórios sobre o que viram e sobre o que "ouviram falar". Preferimos Marco Polo que se destaca no contexto medieval por não repetir a prática dos compiladores e por suas informações não serem fruto de uma embaixada exclusivamente político-religiosa. O fato de descrever cidades e elaborar uma cronologia não-européia sobre as dinastias chinesas já lhe faz original entre os homens de seu tempo. O acesso à sua obra em português também facilitou a análise e a confirmação dessa originalidade, mas que fique claro que nela encontraremos alguns elementos padrões do imaginário da época. Se não foi rompido completamente o hábito intelectual de reproduzir lendas e mitos, Polo inovou ao combinar os roteiros de viagens com descrições detalhadas. Em sua época, as referências eram as antigas "tábuas" que limitavam-se a enumerar as jornadas de uma cidade a outra ou documentos de proselitismo cristão associados aos roteiros dos principais centros de peregrinação (i.e. a primeira parte de Viagens de Sir John de Mandeville).

               Recordando, do século XII ao fim do século XV, conviviam duas concepções opostas dentro do mito cristão: a teoria corográfica de uma "terra ecúmeno" plana, e a teoria cosmográfica de uma "terra de astrônomos" redonda, apesar de Roger Bacon e Alberto, o Grande (1264 e 1250) afirmarem, em vão, o possível acesso à zona tórrida e a presença de um continente austral habitável e habitado (RANDLES, 1994, p.18). Os mapas T-O datavam desde o século VII e foram utilizados até aproximadamente 1500, onde Jerusalém era o centro do mundo numa concepção de terra plana. No contexto histórico, a vida e a obra de Marco Polo devem ser compreendidas com as Cruzadas e as tentativas de dominação de Jerusalém e lugares Santos pelos cristãos, junto com a expansão mongol até a Europa oriental, e o confronto entre estes e os muçulmanos. Vistos como possíveis aliados dos cristãos, seria na terra dos mongóis que estaria o reino aliado cristão de Preste João, próximo ao Paraíso.
               Esse mito era reforçado pelo fato de existirem comunidades nestorianas na Ásia, que passaram de heréticas a possíveis súditos deste lendário rei. Temos de levar em consideração também, apesar de reconhecermos formas diferentes de contagem de tempo pelas diversas civilizações, a idéia da chegada da Idade do Ouro e do Milênio entre os cristãos.
               Na época de Marco Polo (1254 - 1323 ?), parte dos letrados da Europa tinha acesso a essas histórias de terras e criaturas fantasiosas, mescladas e identificadas em terras distantes. O que nos estranha na obra de Polo é que além destas curiosidades estão as descrições observadas em Catai. Escrito em 1298, teve cinco edições até 1500, não se tornando uma obra de grande divulgação até esta data, se comparada à obra de Mandeville.
               Polo deixou a Europa, juntamente com seu pai e seu tio em 1271, chegando a Pequim (Cambaluc) em 1275, quando completou 21 anos de idade. Na sua viagem de ida percorreu lugares como São João do Acre na Palestina, os desertos na Pérsia (Irã), no Afeganistão e no Pamir, tendo percorrido as cidades de Kashgar (Shufu) e Yarkan (Soche) e o deserto de Gobi (China), até chegar a Pequim.

               Após 16 anos na China, voltou à Europa, onde ficou preso em Gênova, ocasião em que ditou suas memórias a Justicello de Pisa, um escritor. Podemos nos interrogar se algumas fantasias no livro deveram-se ao escritor ou ao viajante. Como o texto foi revisto após sua liberdade pelo autor, acreditamos que sua obra não está distante da literatura da época. Porém, podemos vê-la como um roteiro das riquezas que ele observou, já que teve o cuidado de esclarecer que determinados fatos "ele ouviu dizer" e outros ele presenciou. Preso em 1296, Polo ditou seus relatos de viagem a Justicello de Pisa no ano de sua libertação, em 1298. Oito anos após essa redação, Thiebaud de Cépoy deu uma nova edição à obra de Polo. Estas duas edições são as fontes principais das cópias posteriores.

               A obra "O Livro das Maravilhas" de Marco Polo possui informações de qualidades distintas: parte delas referem-se a lendas ou interpretações próprias do imaginário medieval, parte delas são descrições de áreas geográficas e informações econômicas e sociais relativas às cidades.

               Alguns dos mitos referidos por Polo foram resumidos por GIUCCI (1992, p.90):
 

            "Algumas de suas descrições, em particular as referentes aos milagres, reafirmam a superioridade cristã; outras contam histórias locais, confirmam realidades fantásticas ou criticam crenças populares. Existia um velho detestável - o velho da montanha - que imaginou a perfídia inaudita de simular uma viagem ao paraíso para transformar seus homens em audazes sicários (OBS.: através do consumo de haxixe);  (...) Muitas histórias recapitulam aspectos mitológicos pertencentes ao horizonte mental europeu, como a árvore sagrada (seca-só), a maçã vermelha do apocalipse, a tumba do apóstolo Tomás, o preste João, Gog e Magog, Alexandre Magno, a Arca de Noé, a cidade dos Reis Magos".

               Entretanto, foram as descrições das cidades e de fatos observados que sofreram uma transformação na direção do imaginário, transmudando-se em terras de características quase lendárias a serem atingidas. Ao se referir às pedras negras que queimam (carvão), ao tecido de amianto que branqueava ao ser colocado no fogo, às ruas pavimentadas com tijolos, à figura do rinoceronte inconfundível com a do unicórnio, entre outras, não encontrou muitos leitores que acreditaram nestes fatos relatados. As lendas e milagres cristãos (ou não) eram mais plausíveis para a compreensão do homem da Idade Média do que os fatos observados e reais. Os relatos da viagem, nunca realizada, de Mandeville eram mais convincentes aos europeus, crentes em "princesas dragiformes, sátiros, amazonas, mulheres e homens colados aos outros, homens de quatro olhos, antípodas, ciclopes, panotos, blênios de olhos e bocas no peito" (GIUCCI, 1992. p.91), como habitantes da parte desconhecida do mundo.
 

               Há uma segunda parte na obra de Polo em que identificamos uma descrição bastante diferente das lendas já referidas. Durante a sua longa viagem são descritas de maneira sumária as cidades, suas atividades econômicas, a religião de seus habitantes, recursos naturais, hábitos e animais reais. É um verdadeiro inventário de um comerciante em viagem, informando a distância entre elas por jornadas, existência ou não de água e alimentos para a caravana. Um exemplo é a descrição feita da cidade de Bagdá:

           " Bagdá é uma cidade, onde vivia o califa de todos os sarracenos do mundo, assim como Roma é o centro da cristandade. Ao meio da cidade passa um grande rio, pelo qual se pode ir ao Mar das Índias; mercadores, bem como mercadorias, seguem por ele sem cessar.
 Deveis saber que contam dezoito jornadas desde Bagdá ao Mar das Índias, navegando por este rio. E os mercadores que querem chegar às Índias vão por esta via até uma cidade chamada Quisi; e entre esta e Bagdá existe uma outra grande cidade, chamada Bassora, à  volta da qual se criam as melhores palmeiras que há no mundo ". (POLO,1985, p.51)

              Outra descrição bastante "geográfica" corresponde à cidade de Tauris:
 

            "Tauris é uma cidade, numa província chamada Yrac (OBS.: Iraque Adjemi)  onde há numerosas vilas e castelos; mas como Tauris é a mais nobre cidade desta província, falaremos dela e de sua história. Os homens de Tauris são de grande valor. A cidade está tão bem localizada que, da Índia, Bagdá, Mossul, Ormuz e de muitas outras cidades, enviam ali as suas mercadorias; assim como sucede que os mercadores italianos vêm de países distantes buscá-las em Tauris. Há abundância de pedras preciosas. É uma cidade na qual os mercadores se enriquecem, assim como os navegantes. A população é um misto de raças: têm armênios, nestorianos, jacobitas, geórgios e persas: há homens que adoram Mafoma (a maioria deles); chamam-se estes taurisinos. A cidade está rodeada de numerosos jardins, cheios de abundantes frutas". (POLO, 1985, p.57).

              Uma terceira faceta do livro das Maravilhas, o Livro Segundo, trata de uma descrição do reino do Grã Cã, desde a genealogia desta dinastia até as relações da sua corte (mulheres e concubinas, familiares, guarda pessoal, a comemoração de seu aniversário, caçadas). A descrição da cidade de Cambaluc é detalhada, inclusive o florescente artesanato e o uso do dinheiro:

 "Diariamente entram mais de 1.000 carros com sedas e matérias-primas para fabricá-las, porque em Cambaluc tecem-se panos de ouro, brocados e tapetes. Nos arredores da cidade há pequenas vilas que se sustentam de tudo o que a capital compra. (...) Estes papéis ou tiras são cortados de vários tamanhos, quase sempre compridos e estreitos; aos mais pequenos, dá-se o valor da metade de um soldo; outros, maiores, valem um soldo, outros, meio ducado de Veneza, e outro dois ducados, cinco ou dez, outros valem um bizâncio, outros três bizâncios e assim até dez bizâncios. Todos estes papéis e cartões têm o selo do Grã Cã". (POLO, 1985, p.130/131)

               Enviado como representante do Grã Cã às terras do poente, Polo chegou após uma viagem de quatro meses às terras de Catai. É nesta parte do livro que se refere à derrota do Rei do Ouro por Preste João, mas de cidade em cidade, de província em província, encontramos a descrição dos seus habitantes e de seus costumes, assim como as atividades econômicas, passando pela Índia. De outros lugares que ouviu falar foram a Birmânia, Laos e Tonquin. A sucessão de cidades traz sempre informações, inclusive de como foram incorporadas ao reino do Grã Cã.

               Porém, é na última parte do livro que encontramos material que se transformaria mais tarde num reino imaginário procurado nas Américas. Trata-se do capítulo intitulado "Aqui começa o livro sobre a Índia onde se falará de todas as maravilhas que contém e dos costumes dos seus habitantes". Assim ele se referiu à Ilha de Cipango:
 

            "Cipango é uma ilha do Levante, que está afastada da terra 1.500 milhas. É uma ilha muito grande. Os indígenas são brancos, de boas maneiras e formosos. São idólatras e livres, têm rei próprio, que não é tributário de nenhum outro. Têm ouro em abundância, mas o rei não deixa levar, e por essa razão há lá poucos mercadores e poucas vezes ali vão as naus.  Nenhum negociante ou estrangeiro chegou ao interior da ilha. Falarei a respeito de um grande palácio maravilhoso que um grande senhor da ilha possui. É um palácio grande, todo coberto de ouro fino, da espessura de dois dedos. Todas as outras partes do palácio, tetos e paredes, estão cobertas de ouro. É duma riqueza tão deslumbrante que não sei como explicar o efeito assombroso que produz ao ver-se. A ilha tem abundância de pérolas cor-de-rosa, redondas e muito grossas e que são tão valiosas ou mais do que as brancas. Tem outras e variadas pedras preciosas. É uma ilha muito rica, duma riqueza incalculável". (POLO, 1985, p.188/9).

               Colombo, um século depois, ateve-se à obra de Polo, através do documento de Toscanelli, e a de Pierre d'Ailly (Imago Mundi, escrita em 1410 e impressa em 1480), além de outras fontes, na busca das riquezas reais (nos dois sentidos) descritas. Alguns dos mitos descritos, tanto por Polo quanto por Mandeville, não foram transferidos para o "Novo Mundo", identificado inicialmente como as "Índias" de Marco Polo. Os reinos de Gog e Magog, a cidade dos Reis Magos, a Árvore Seca-Só, a carta de Alexandre Magno a Aristóteles padecem, pois pertencem geograficamente ao imaginário europeu em relação às terras asiáticas, que vão sendo parcialmente "descobertas". Este conceito de descobrimento significa mais do que conhecer a sua existência, mas inventariar seus recursos naturais e seus nativos e dar início à exploração, ou dilapidação, como querem uns (1) . A concorrência de navegantes espanhóis e portugueses, buscando as "Índias" por direções diferentes cingiu as rotas de conhecimento de novas terras.

               Outras lendas, principalmente relativas ao "bestiário", vão se manter nesse processo de atingir terras desconhecidas, mas vão se contrapor, mesmo que por um período breve para os portugueses e Colombo e mais longo para os jesuítas espanhóis, à visão "edênica" no continente americano.

               Este bestiário, nada cristão, mas defendido como "criaturas criadas por Deus" e portanto, passíveis de existirem, podem ter a sua origem traçada desde Plínio, passando por Solino e transcrito por John de Mandeville.


5. Terras e criaturas imaginárias em Mandeville.
 
 

                Um exemplo representativo da "Geografia Fantástica" produzida na época pré-descobrimentos chega a aproximar-se de uma literatura fantástica, é o relato de Mandeville, onde misturam-se descrições geográficas, terras, animais e criaturas lendárias.

               Entretanto, o melhor e mais completo comentário acerca da obra de Mandeville foi feito por LETTS (1949). Defensor de que Mandeville foi o pseudônimo de Joanes de Barbam (ou Jean à la Barbe ou ainda, Bourgogne) e de que não teria percorrido os lugares descritos, ele identifica as suas fontes literárias: Odorico de Pordenone, Carpini, Plínio, Solino, Rubruck, Haiton, Brunetto Latini, Vitry, Simeonis, Ludolph de Sudheim, Bondensele, Jerônimo, Isidoro de Sevilha, romances de Alexandre e antigos bestiários.

               LETTS  (1949) afirma que apesar do caráter de ficção, As Viagens de Mandeville, influenciaram bastante a literatura e a cartografia do século XVI, ao ponto de algumas de suas histórias e monstros serem representadas nas obras populares de Nuremberg Chronicle e a Cosmographia de  Münster (1544). Esta última chegou a ter 47 edições em sete idiomas até 1650 e baseou-se também em Marco Polo e Haiton. Esta popularidade correspondeu a uma crescente aceitação por este tipo de descrições e foi aumentada pelos grandes descobrimentos dos séculos XV e XVI.

               Ficcional e enciclopédica, deve-se atribuir alguma importância à obra de Mandeville tanto na cartografia quanto no processo de "descobrimento", interpretação e reconhecimento das terras americanas (TUCCI, 1984, p.142/148). Associada às descrições de Marco Polo, as terras e seres lendários se transformaram em mitos impulsionadores (a riqueza de Catai, Cipango e o El Dorado) ou aterrorizadores (monstros) que perduraram no século XVI. O renascimento deu importância à leitura de textos antigos, incorporando ao mesmo tempo concepções descartadas pelo cristianismo e por interpretações deturpadas da realidade geográfica.


Conclusão.
              Será que os geógrafos, ao refletirem sobre o fato de que as pessoas produzem diversas representações sobre o espaço geográfico, aplicam este raciocínio apenas para uma Geografia da era da Modernidade e mesmo da "Pós-Modernidade"? O que pode ter representado a dimensão do espaço geográfico, o seu desconhecimento e o seu conhecimento nesta proposta de estudo de uma Geografia Pré-Moderna ? A descontinuidade da concepção ptolomaica até o início do século XVI, não significa que as representações sobre este espaço não tenham existido. Mas onde procurá-las ? Como interpretá-las ?

               Fontes escritas e cartografadas, respondem a primeira questão, mas a segunda nos parece mais difícil, pois além dos mapas e da literatura há uma constância de lugares e seres lendários. Como interpretar essas representações, evitando o descarte da produção de vários séculos, como foi feito até agora? As especulações sobre a forma da Terra, o seu tamanho e a proporção entre terras e águas não foram objetos de preocupação somente de uma elite religiosa, mas também de uma elite política-administrativa, porém de forma diferente. Devemos levar em conta outro tipo de representação acerca do espaço geográfico, não cartografado, mas de fontes escritas onde o "maravilhoso" está presente. Também ela não surgiu somente no momento histórico da Idade Média, mas a precedeu. Ou seja, trata-se de reconhecer que desde há muito tempo existe uma Geografia dos lugares maravilhosos.


Bibliografia:

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ALIGHIERI, Dante. O Inferno. São Paulo, Ediouro, s.d. 293p.

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DRYER-EIMBCKE, O. O Descobrimento da Terra. São Paulo, Melhoramentos/  Ed. Universidade de São Paulo, 1992. 260p.

DUBY, George. Idade Média, Idade dos Homens: Do Amor e outros ensaios.  São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 214p.

GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso: o Novo Mundo. São Paulo,  Companhia das Letras, 1992. 262p.

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LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval.   Lisboa, Edições 70, 1990.

LETTS, Malcolm. Sir John Mandeville: The Man and his book. London,  The Batchworth Press, 1949. 193p.

LULIO, Raimundo. Livro das Bestas. São Paulo, Loyola, 1990. 158p.

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TUCCI, Ugo. Atlas. in Enciclopédia Einaudi. Vol.1. Memória- História.  Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p.130/157.


  1 Ver interpretação sobre a não-intecionalidade de Colombo em "descobrir a América", expressada por O'Gorman, E. em A Invenção da América (1992), tese brilhantemente desenvolvida e que está de acordo com a nossa interpretação acerca da visão européia sobre as novas terras inesperadamente descobertas na busca das ricas regiões descritas por Marco Polo.


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