André de Thevet e Jean de Léry: Imagem Renascentista da França Antártica (Brasil)
Pode-se pensar que a visão geográfica acerca do mundo tenha sido abruptamente alterada quando comparamos a visão corrente na Idade Média com aquela própria do Renascimento. Devemos primeiro identificar como era a visão medieval, assim como as suas fontes, para depois fazermos o mesmo com as visões renascentistas. Muito longe dessa passagem ser comparada como um acender de luzes na escuridão (2), devemos analisar não apenas as descrições de mundo do que hoje denominamos Europa Ocidental, mas verificar o quais eram as concepções prevalecentes é o nosso objetivo, pois fontes da Antigüidade estão presentes nas obras desses dois períodos. As tentativas de adaptação da herança dos clássicos da Antigüidade redescobertas (i.e. Ptolomeu) naquele momento resultaram em várias interpretações, que já se apresentavam distintas desde as suas origens, fossem elas heréticas, reformistas ou papais. O resultado foi a convivência num mesmo texto de mitos, lendas, interpretações de cunho religioso e a eleição de descrições antigas como autoridades no conhecimento do mundo.
O "Quarto Continente", concretizado pela América, uma grande massa de terra no hemisfério sul, foi um fato renascentista tanto no sentido real. No aspecto especulativo houve um antecedente no filósofo Crates de Malo na Antigüidade grega. Durante a Idade Média as especulações foram determinadas pelo contexto religioso que não admitia a sua existência. Para alguns autores, os seus habitantes seriam, obviamente, os antípodas que não estavam inseridos no ecúmeno cristão. A derrubada desta herança na descrição e interpretação de uma terra não prevista - e o rompimento com um paradigma medieval - é o nosso objetivo ao elegermoss André Thevet (3), que junto com Jean de Léry devem ser destacados entre os primeiros viajantes e narradores renascentistas da Terra Brasilis. O primeiro, um frade franciscano, cosmógrafo real, e o segundo, um calvinista radical e emergente da pequena burguesia apresentam concepções religiosas e valores distintos na construção da Imago Mundi, porém ambos foram viajantes, testemunhas visuais, e não apenas compiladores de uma literatura de viagens como John de Mandeville, além de terem contribuído no aspecto cartográfico para a construção desta imagem.
2. As fontes e a interpretação geográfica de Thevet: as singularidades da França Antártica.
No prefácio aos seus
leitores, Thevet, cosmógrafo do rei Henrique II, define o que é
a sua obra e cita profusamente autores clássicos da Grécia
e de Roma como se eles fossem as âncoras para o seu elogio ao ato
da navegação. Mas não nos deixa qualquer dúvida
quanto à sua geograficidade ao apontar a importância do conhecimento
dos países para a formação do indivíduo:
E foi assim que, após numerosas jornadas, arribamos às Índias Americanas, nos arredores do Capricórnio, terra firme habitada e de boa temperatura. (...)
Dou aqui a localização e a situação dos lugares, definindo o seu clima, sua zona e seu paralelo, informando se trata de mar, de ilha ou de terra firme, além de descrever a temperatura do ar, os costumes e modos de vida dos habitantes, o aspecto e as características dos animais aquáticos e terrestres, das árvores, dos arbustos e de seus respectivos frutos, dos minerais e das pedras preciosas, e tudo representado visualmente por meio de ilustrações que tentei fazer com a máxima fidelidade possível. (4)
Sobre a costa brasileira de sua França Antártica, Thevet louva a fertilidade das terras e dos rios, a perenidade das árvores, a abundância dos pássaros da região dos lagos fluminense, e logo depois chegam até "a barra de um grande rio chamado de Guanabara" (baía de Guanabara) onde são brindados pelos habitantes nativos com alimentos de modo farto. Os manguezais acabam por fornecer a Thevet uma maravilha para o prazer de seus leitores, bem ao estilo deste tipo de literatura, na descrição da "árvore de ostras", oriundas das marés. (6)
Ele não se rende à concepção de Colombo, e sim rendendo homenagem a Américo Vespúcio no reconhecimento do quarto continente e a "inúmeras pessoas (que) descobriram a maior parte dos lugares situados entre o Temistitã (Tenochtitlan) e a Terra dos Gigantes (Patagônia), perto do Estreito de Magalhães." (7) Corretamente dá os seus limites oceânicos, mas limita-o entre a ocidente com o país de Temistitã (México) e com as Molucas no Pacífico, não se referindo aos limites setentrionais, já que nesta época, América praticamente denominava a Terra do Brasil. Thevet não se deixa persuadir pela visão edênica dos primeiros navegantes do século XVI. Sua descrição das terras fertilíssimas "sem exigirem cultivos ou cuidados" deve-se mais à concepção da exuberância da Natureza de Aristóteles (8) do que uma visão de um Paraíso terrestre austral (9), pois sendo ele um frade, ao se referir à região afirmava que:
O capítulo da alimentação (incluídas as festas e as bebidas) detalham os hábitos e os tipos de frutos, raízes e carnes consumidas. As guerras e as relações com o "outro mundo", além dos acontecimentos sociais como o casamento e a morte também são descritos com minúcias. As especiarias, animais, árvores e tudo que se pudesse comercializar com a Europa, são descritos o se fosse um comerciante, o que dá à obra de Thevet um caráter a mais do que o geográfico ou o etnográfico.
Após a descrição do Rio da Prata, já não mais no território do que se tornaria o Brasil mais tarde, é que encontramos a discussão de um dos paradigmas na Idade Média em relação ao conceito de ecúmeno (12) - a da existência ou não dos antípodas, ou sobre a incomunicabilidade entre os antípodas e os habitantes do ecúmeno. Do capítulo LVII "Do fato de serem os nossos antípodas aqueles que vivem entre o Rio da Prata e o Estreito de Magalhães"(13), retiramos a citação a seguir:
Thevet, que reafirma a existência do Reino das Amazonas, como era praxe entre seus contemporâneos, faz uma regionalização das Índias Ocidentais: a primeira que reuniria toda a América do Sul sem os países andinos; a segunda juntando a América andina, a Central, o México e os Estados Unidos da América do Norte (16) a leste das Montanhas Rochosas, e a terceira parte o restante da América do Norte. Acrescenta ainda uma breve descrição dos reinos principais, suas cidade ste artigo. Viagem à Terra do Brasil, publicado em 1577, também traz um lastro de clássicos da Antigüidade para a interpretação dos fatos observados nesta terra, principalmente de Plínio. Os seus "monstros peludos" ausentes diante da visão dos nativos é um dos clichês, além das "chuvas fétidas" equatoriais que feriam a pele e estragavam os tecidos das roupas, entre outros.
O fato mais interessante, porém, e a postura deste autor ao comparar o saber vindo através da "experiência" e do saber livresco das escolas:
Não sendo cosmógrafo, mas com leituras representativas de sua época, Léry comenta o clima da terra e compara-o com o da Europa: não há neve ou granizo e as árvores estão sempre verdes. Ainda faz a seguinte ressalva:
3. Conclusão
O mais característico nas idéias de cunho cosmográfico e geográfico no Renascimento, além da manutenção de algumas e a redescoberta de outras idéias da Antigüidade, é a diversidade de explicações sobre os mais variados fenômenos sem que eles estejam inseridos num modelo explicativo mais geral, exceto se entendermos a visão religiosa de mundo como sendo o único. As obras do tipo Cosmografias foram representativas do período renascentista - Cosmographicus Liber de Pedro Apianus (1524), De Geographia Liber unus de H. Glarean (1527) e Cosmographia de S. Münster (1544), entre outras. Apesar de estarem distantes no tempo da obra Geographia Generalis de Varenius (1650), na qual há uma sistematização desta ciência, a organização das informações sobre a Terra ou de regiões é um passo adiante dos livros de viagens medievais. Não podemos considerar este período como isento de heranças medievais ou de ilustrações dos misticismo, porém as informações acerca do Novo Mundo apresentam uma nova base de interpretação, da qual identificamos algumas que consideramos "geográficas": a influência do clima e a posição das terras no globo, a influência da explicação religiosa do mundo na sua forma e a disposição da terras e mares, e em especial, a concepção de mundo e dos continentes. Buscamos pôr em relevância nos dois autores os aspectos novos em relação ao padrão de interpretação medieval - os relatos de viagens eivados de uma geografia do "fantástico" cujas bases principais fora Plínio, Pompônio Mela e Isidoro de Sevilha.
Por outro lado, o que aproxima
Léry e Thevet dos viajantes do século XIX são as descrições
da fauna e da flora, além de aspectos culturais dos nativos, e ao
compararmos os relatos do século XVI com os do século XIX
podemos ver as mudanças que a colonização portuguesa
trouxe ao espaço geográfico e à sociedade colonial
e imperial, além dos novos paradigmas à ciência geográfica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Doutora em Geografia Humana, em
programa de pós-doutoramento na USP. Docente do Departamento de
Geociências da Universidade Estadual de Londrina e professora visitante
do curso de pós-graduação em Geografia da UNESP (Presidente
Prudente). E-mail: marciasiqueira1953@yahoo.com.brr.
Artigo aceito no I Encontro Nacional do Pensamento Geográfico
- UNESP/Rio Claro (dezembro de 1999).
(2) Ver Nelson, Derek. The Age of Unreason.[on line] http://www.marcatormag.com/303_reason.html . Volta ao texto
(3) Thevet, André. Singularidades da França Antártica. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p. 12. A viagem começa em 26 de maio de 1555 no Porto de Havre, na Normandia (França) e sua primeira publicação ocorreu em 1557. Volta ao texto.
(4) Ibid. p. 14. Na página 23, Thevet ao descrever a África afirma: "De acordo com Ptolomeu, a África é uma das três partes da Terra (ou melhor, das quatro, segundo os geógrafos modernos, em vista das posteriores navegações que levaram ao descobrimento de numerosas terras desconhecidas dos antigos, como por exemplo as Índias Americanas, que adiante pretendemos descrever". Volta ao texto.
(5) Ibid. Capítulo XXII. p. 83. Volta ao texto.
(6) Ibid. Cap. XXVI. p. 96. Volta ao texto.
(7) Ibid. Capítulo XXVII. p. 97.Volta ao texto.
(8) No Capítulo LII, Thevet afirma : "Aristóteles e outros que se lhe seguiram esforçaram-se o mais que puderam para desvendar a natureza dos animais, árvores, ervas, etc. Entretanto, pelo que se deduz de seus escritos, não é de se acreditar que tenham tido conhecimento da França Antártica ou América, de vez que esta terra não fora ainda descoberta em sua época." p. 169. Volta ao texto.
(9) A exemplo de Dante (1265-1321), na Divina Comédia, que colocava no hemisfério sul uma ilha montanhosa onde estavam o Purgatório e o Paraíso (este último na parte mais alta da montanha) contrariando a visão de sua época que o localizava no Oriente. Ver p. 342. The Divine Comedy of Dante Alighieri. Inferno. Translation by Allen Mandelbaum. New York: Bantam Books. 1982. Volta ao texto.
(10) Ibid. p. 98. Volta ao texto.
(11) No Capítulo LVI (p. 185), Thevet relata a existência de quatro ilhas "no Mar do Poente" (Pacífico) em que ele acreditava serem habitadas por sátiros, pelo fato de terem a denominação de Ilha dos Sátiros. Sem dar maiores indicações da exata localização, ele passa a descrever os povos selvagens das Ilhas Manilhas e dos rochedos próximos que "atraem os navios por causa do ferro de suas chapas", lenda que remonta à Antigüidade e corrente entre os navegadores do século XVI ao ponto de aparecer em mapas. Volta ao texto.
(12) Na Idade Média confundem-se os significados de ecúmeno com o espaço da cristandade - ou dos cristãos ou daqueles que poderiam se tornar cristãos (conversão forçada ou não). Volta ao texto.
(13) Ibid. p. 187. Volta ao texto.
(14) Ibid. p. 187. Volta ao texto.
(15) Antíctones: o mesmo que antípoda. Antípoda: [do grego antípous, odus, pelo lat. Antipodes.] Habitante que, em relação a outro do globo, se encontra em lugar diametralmente oposto; antíctone. Volta ao texto.
(16) Primeira parte: " ... abrange as terras meridionais que começam no Estreito de Magalhães (...) nela não se incluem (...) as terras localizadas além do estreito, já que elas não foram jamais habitadas e ainda não são sequer conhecidas. Fazem parte, porém as regiões compreendidas entre o estreito e o Rio da Prata (...). Esta parte das Índias estende-se até ao Rio das Amazonas (...). A Segunda parte começa neste último rio e compreende diversos reinos e províncias, como todo o Peru (...) até os limites da Flórida, situada a 25 graus de latitude aquém da Linha Equinocial. (...) a terceira parte, que começa na Nova Espanha (...). Engloba as terras que se estendem da Flórida até a Terra dos Bacalhaus ... Canadá ... a Terra do Labrador e a Terra Nova (OBS: México), banhada a norte pelo Mar Glacial." Ibid. p. 214. Volta ao texto.
(17) Léry, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980. p. 75. Volta ao texto.
(18) Ibid. p. 139. Volta ao texto.
(19) Ibid. p. 164. Volta ao texto.
(20) Ibid. p. 178. Volta ao texto.
(21) Ibid. p. 254. Volta ao texto.
(22) Vide: Kimble, G. H. T. Geography
in the Middle Ages. London: Methuen & Co. 1938. Capítulo
7 (relativo à Geografia Física na Idade Média) e Carvalho,
J. Barradas de Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira.
Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1991. Volta
ao texto.