GEOGRAFIA E UTOPIAS MEDIEVAIS (1)
GEOGRAPHY AND MIDDLE AGE UTOPIES
O PENSAMENTO GEOGRÁFICO NA IDADE MÉDIA.
TERRAS IMAGINÁRIAS E AS REPRESENTAÇÕES GEOGRÁFICAS.
AS UTOPIAS MEDIEVAIS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A CARTOGRAFIA DAS TERRAS IMAGINÁRIAS.
O MILÊNIO E AS TERRAS LENDÁRIAS.
Este artigo trata da produção do conhecimento geográfico europeu durante a Idade Média. A maior parte dos trabalhos sobre a evolução do conhecimento geográfico omite a produção desta época por não considerá-la em vez de analisar as razões que levaram até sua gênese. A reunião entre o conhecimento geográfico, as utopias medievais e a religião possibilitou entendermos os elementos que tornaram a procura de lugares lendários uma característica dos geógrafos medievais europeus. Mais do que mitos, a geografia produzida nesta época foi um produto da preocupação da Igreja em relação as suas áreas de dominação. Não só a Igreja que tornou a busca de lugares lendários uma de suas formas de dominação ideológica, mas a população comum também buscou esses lugares lendários sob a forma da peregrinação.
Palavras -chaves: Geografia, Epistemologia da Geografia, Utopias medievais,
Terras lendárias.
This paper refers to the european geographical knowledge production in the Middle Ages. Most studies about geographical knowledge development omit the production of this age. The connection among geographical knowledge, midlle ages utopies and religion made the understaning possible of why legendary places were so caracteristic in the European Middle Ages geographers search. Geography in the Middle Ages was not only a result of the church care for its dominated areas, changing this search for legendary places in a kind of ideological domination, but also population care in the search for these same legendary places.
Key-words: Geography, Middle Ages Utopies, Legendary places.
1.O PENSAMENTO GEOGRÁFICO NA IDADE MÉDIA.
Ao buscarmos na evolução do conhecimento geográfico, observamos a ausência de referências geográficas e de geógrafos no período correspondente à Idade Média no território europeu. FERREIRA & SIMÕES (1986) consideram que com a Queda do Império Romano e a difusão do cristianismo iniciou-se um período de regressão no conhecimento científico e, em conseqüência, no conhecimento geográfico. Afirmam ainda que Ptolomeu teria sido o último geógrafo, com a consciência de que a Terra era esférica, até o século XV. A concepção de que lugares lendários não são objeto de uma análise por parte da ciência geográfica responde em grande parte a insensibilidade dos geógrafos em relação a esse temário. Entretanto, ao estudarmos as "utopias medievais" e lugares lendários observamos existir uma "geografia" voltada a descrevê-los. Ao analisarmos obra sobre a história da Geografia observamos que muitos geógrafos da Idade Média referem-se ao Plínio, o Velho, ou a Pomponio Mela. Ao no reportarmos a esses dois últimos autores encontramos figuras míticas, lugares lendário e uma imagem de mundo elaborada a partir de geógrafos mais antigos. Um bom exemplo é folhear obras como a de Bunbury (1959), Thomson (1965) ou de Tozer (1971) e encontrar referências ao Périplo de Hanno ou a Scylax de Carianda. Ambos foram responsáveis por dois tipos de literatura, a de périplos e a de viagens, que colocavam lado a lado informações sobre lugares e uma incrível relação de fenômenos estranhos e paradoxais. Nenhum dos historiadores da Geografia citados acima deixaram de considerar os antigos geógrafos como fazendo parte do processo de conhecimentos da ciência devido a esse fato que se tornou lugar comum desde os tempos antes de Cristo. A atração pelo exótico e pelo estranho parece ser uma característica que foge à esfera da Geografia e ao momento histórico determinado. Uma grande discussão travada entre historiadores e estudiosos da literatura se dá em torno da veracidade ou não de muitos documentos geográficos ou de viagens. O fato da maioria dos "originais" serem cópias transcritas e traduzidas na Idade Média, quando a máxima tradutore traditore era o lugar comum, dá margem a muitos questionamentos se aquele autor antigo teria se expressado exatamente daquela maneira ou o quanto de uma obra teria de contribuição por parte de quem a traduziu. Conhecendo essas dificuldades, porém sem ter uma visão positivista de acreditar como sendo verdadeiro o relato geográfico e nem jogando o bebê com a água do banho, penso que a identificação de algumas representações espaciais no imaginário medieval é um ponto de partida para a sua discussão no Brasil.
Este breve artigo se dedica a levantar algumas questões sobre a Geografia na Idade Média em relação à produção e concepção de lugares imaginários e a representação geográfica no período medieval europeu. Essa lacuna deve ser preenchida pois as compilações ou "enciclopédias" medievais resgatavam informações sobre espaços geográficos, concepções do formato da Terra e a extensão dos espaços habitáveis do conhecimento grego antigo. Trata-se então de um período entre o século IV ao século XIII, ou até o século XVI, se considerarmos que a chegada de Colombo à América foi um fato incomum para a história do conhecimento geográfico (CAPEL, 1995, p.247) .
O início do período "científico" da ciência geográfica ocorreu com a criação das cátedras nas universidades alemãs, em fins do século XIX, e representado por obras de Humboldt e Ritter. A concepção moderna e positivista de ciência, com pretensões de objetividade, racionalidade e neutralidade, destoa diante da obra ritteriana. O finalismo religioso de Ritter,- sua a crença de que os seres humanos foram criados para dominar a natureza e para o júbilo de Deus, e de que a distribuição territorial dos povos era vontade e obra divina,- esbarra com o reconhecimento generalizado na Epistemologia geográfica dele ter sido um dos fundadores desta ciência em fins do século XIX. Moraes (1989) demonstrou como o pensamento ritteriano não estava somente impregnado de explicações teleológicas, mas também de filósofos alemães, cuja característica foi uma visão de mundo mística e nacionalista em contraponto ao universalismo francês. Como podemos considerar que a Geografia tenha adquirido o status de ciência quando um de seus formalizadores - Ritter, no caso - tem como base uma explicação divina tanto para a relação entre os homens e a natureza quanto à localização de determinados povos em determinadas áreas na superfície terrestre ? A explicação divina e a influência da religião cristã na obra de Ritter nos levou a buscar quais os elementos presentes na produção de conhecimentos geográficos na Idade Média Européia.
Longe de ser definido apenas como economias de autarquias e auto-suficientes, o espaço geográfico europeu teve diferenciações significativas, inclusive com a especialização de algumas regiões agrícolas com fins essencialmente comerciais. A incorporação de novas áreas agrícolas (florestas e pântanos) entre os séculos XI e XIII; a mudança no uso do solo agrícola, dependendo da localização das áreas mais próximas das rotas de comércio e o contingente populacional que se deslocava para as Cruzadas e para a peregrinação a lugares santos, nos mostram uma diversidade bastante diferente da imagem generalizada de um feudo isolado e auto-suficiente. No Livro das Maravilhas, esboçado por Rustichello de Pisa e redigido em 1298 por Marco Polo (1254 -1323), identificamos dois tipos de informações. Coexistem descrições de cidades com as tentativas de localização de regiões lendárias, tais como o Paraíso e o reino de Preste João. Raríssimos geógrafos levaram em consideração as informações geográficas referentes aos lugares lendários (ou reais), representativos do imaginário popular e culto da época. Historiadores, entretanto, têm contribuído nessa análise e podem subsidiar este tipo de estudo. A expressão Imago Mundi (imagem do mundo) nos dá uma riqueza de percebermos como se concebia o mundo, mais rico do que uma descrição geográfica.
No período medieval, quando obras importantes como a Geografia
de Ptolomeu estiveram em segundo plano, o conhecimento geográfico
desenvolveu-se com base em mitos antigos e explicações religiosas.
A ausência de uma especialização do saber na Idade
Média, muito pelo contrário, nos leva a buscar essas concepções
e descrições do mundo nas obras enciclopédicas dos
"geógrafos" cristãos. Isidoro de Sevilha, Orósio e
Santo Agostinho, por exemplo, elaboraram explicações acerca
de conhecimentos geográficos de acordo com os preceitos religiosos
da época. Mas as obras "leigas" e "imaginosas" de Júlio Solino
(Collectanea rerum memorabilium) e de Plínio (Historia Natural)
tiveram forte influência sobre a geografia da Idade Média,
quer "cristã" quer "leiga" (GIUCCI,1992). O fato de não considerar
a sua existência ou de interpretá-la com olhos e razão
positivistas do século XX pode nos levar a uma falsa imagem de que
não existiu Geografia nesse período, ou melhor, as representações
acerca do espaço geográfico associado a uma cosmovisão.
Conhecer as idéias dominantes da época e as "heranças"
nos permite não só compreender o que foi produzido na Idade
Média como nos auxilia a rever vários aspectos do conhecimento
geográfico. Já em pleno Renascimento, iniciada a época
dos "descobrimentos", viajantes ainda tentavam encontrar locais imaginários
que se acreditavam reais. Em maio de 1487, partiam de Santarém,
em Portugal, dois fidalgos sob as ordens de D. João II, passando
por Barcelona, Itália, Rodes, Alexandria, Cairo e Aden. Neste ponto
se separam e um deles seguiu para a Etiópia à procura do
reino cristão de Prestes João, enquanto o outro seguia para
a Índia. Do primeiro, Afonso de Paiva, sabe-se que desapareceu.
O segundo, Pêro da Covilhã, após chegar à Calicute
(Índia) e à Goa, voltou ao Cairo, onde o esperavam dois emissários
do Papa com ordens para ele seguir até a Etiópia, no reino
de Prestes João a fim de obter informações e estabelecer
alianças. Nessa época, este reino já havia se deslocado
da Ásia para a África em sua lendária localização.
Torna-se difícil compreendermos esses aspectos já na fase
das "descobertas" se não entendermos o porquê destes "resquícios"
resultantes de um período anterior (LE GOFF:1989). Os historiadores
podem nos auxiliar, principalmente algumas obras de Le Goff acerca dessas
"heranças" que perduram. Em GUINZBURG (1987) também encontramos
indicações sobre uma obra literária exemplar da superposição
da descrição geográfica à figuras lendárias
- As Viagens de Sir John de Mandeville,, um dos livros "de cabeceira" de
Colombo. Entretanto, nos prenderemos aqui a uma ótica de análise
geográfica, deixando para outro momentoa religiosidade, o imaginário
e utopias presentes nos escritos de Marco Polo e de Cristóvão
Colombo. Mas, desde quando essas crenças se estabeleceram e perduraram
? Desde e até quando, ainda, se acreditava na explicação
religiosa do mundo, apesar de seu esgarçamento com as descobertas
feitas em direção ao Oceano Atlântico em vez do Mar
Mediterrâneo ?
2. TERRAS IMAGINÁRIAS E AS REPRESENTAÇÕES GEOGRÁFICAS.
As representações de terras imaginárias são
uma constante na história da humanidade. Desde as religiões
arcaicas, sempre existe a referência a um "Céu" e a um "Inferno",
e para cada deus lhe corresponde um demônio, como já escreveu
SARAMAGO (1992,p.31):
"Percebo agora por que está aqui o Diabo a sorrir, se a tua autoridade
vier a alargar-se a mais gente e a mais países, também o
poder dele sobre os homens se alargará, pois os teus limites são
os limites dele, nem um passo a mais, nem um passo a menos. (Em resposta,
deus declara) Tens toda a razão, meu filho, alegro-me com a tua
perspicácia, e a prova disso tem-la no facto, em que nunca se repara,
de os demónios de uma religião não poderem ter qualquer
ação noutra religião, como um deus, imaginando que
tivesse entrado em confronto direto com outro deus, não o pode vencer
nem por ele ser vencido."
Em função disso, muitos são os lugares lendários de acordo com as distintas religiões. As terras sagradas não são exclusividade da religião cristã e a idéia de um Paraíso e de lugares e cidades sagradas ou malditas são muito comuns. Hindus e budistas reverenciaram o Himalaia como a montanha residência dos deuses e eixo do mundo. O Fujiyama para os japoneses e o Olimpo para os antigos gregos representaram a morada dos deuses. Quando as montanhas não eram suficientes, foram construídos monumentos sagrados. BOORSTIN (1989) descreveu como surgiu a imagem de que as almas dos mortos voariam para a Lua ou se transformariam em estrelas, de acordo com os antigos gregos e romanos. Ainda mais, apesar do pouco conhecimento da superfície terrestre, o imaginário mundo subterrâneo era descrito com detalhes e o fato dos mortos serem sepultados levava à crença de irem habitá-lo, daí serem enterrados com pertences de acordo com a profissão (COULANGES, s.d.). Antes do Cristianismo já existia a crença de lugares, que hoje classificamos de imaginários. Ainda segundo BOORSTIN (1989, p.96), " o geógrafo cristão do Céu e do Inferno mais convincente foi, evidentemente, o maior dos poetas italianos, Dante Alighieri (1265-1321)."
Na história da evolução do pensamento geográfico
não é realçado que o ponto de partida dos gregos para
afirmarem a esfericidade da Terra foi estético (Platão e
Pitagóricos), já que a circunferência era a figura
perfeita. Foi Aristóteles quem realizou a comprovação
dessa esfericidade através da Matemática e da Astronomia.
A partir de então, essa superfície esférica começou
a ser dividida em "climatas", linhas paralelas definidas astronomicamente,
de acordo com a duração do dia (luz solar). Estrabão
(64a.C.? - 25d.C.?) acreditava que a cada climata localizada ao sul e ao
norte do Equador haveria uma correspondência entre as plantas e os
animais. Nas áreas "tórridas", próximas ao Equador,
ele acreditava haver solos arenosos, pouca vegetação e "
criaturas de pelo lanoso, cornos espiralados, beiços protuberantes
e narizes achatados". Já eram associados ao clima as características
físicas do mundo biótico. Em 1921, LA BLACHE (1953, p.162)
comentava as "concepções simplistas dos antigos", e afirmava:
"A experiência fez justiça a estas idéias; mas,
não é menos exacto que em todas as partes se nos oferecem
os mais notáveis casos de adaptação fisiológica.
A forte pigmentação da pele e a actividade das glândulas
de secreção de que está provida constituem para os
Pretos numa vantagem sobre as outras raças que se encontram também
nas regiões tropicais (...)"
Quase 2.000 anos depois encontrávamos, na Geografia, a relação entre as características físicas dos indivíduos e a localização latitudinal na superfície do Globo, rejuvenescida pela aplicação da teoria das espécies de Darwin à análise da sociedade. Vale a pena apontarmos esta persistência no temário geográfico de se encontrar uma relação de causa-efeito, mesmo quando esta não era uma forma de conceber um conteúdo científico-positivista no século XIX. No século XX ainda havia lugar na Geografia para a retomada de relações especuladas quando o conhecimento dos lugares na superfície da Terra ("ecúmeno") era reduzido. A pequena extensão do mundo conhecido pelos gregos na Antigüidade não impediu a divisão da superfície da Terra, em meridianos e paralelos feita por Eratóstenes. Também não impediu a divisão da superfície da Terra em 360 graus feita por Hiparco de Nicéia (c. 165-c.127 a.C.). Com Hiparco, a localização dos lugares estava estabelecida por um padrão cartográfico de paralelos e meridianos, independente dos novos lugares serem atingidos por "descobridores". Ao elaborar "Geografia", Ptolomeu aproveitou os conhecimentos desses dois antecessores e contribuiu para o conhecimento geográfico ao desenvolver a estrutura e o vocabulário dos mapa-mundi, como a localização do norte na parte de cima do mapa. Distinguiu, ainda, a Geografia (cartografar a Terra como um todo) da Corografia (cartografia detalhada de áreas menores). Porém, ao resgatar o cálculo do diâmetro da Terra feito por Eratóstenes, reduziu-o bastante, o que contribuiu para erros de localização das terras quando retomadas por navegadores no século XV. A compreensão do que foi feito em termos de conhecimento geográfico durante a Idade Média na Europa, e a conseqüente exclusão de parte da contribuição grega, deve ser auxiliada pela divisão social do trabalho nas várias formas distintas em que as sociedades se organizaram em épocas históricas diversas. Sempre foi diferente a relação entre as classes sociais e a conseqüente representação do espaço geográfico entre elas. Na Grécia antiga, para o marinheiro e para o comerciante, as costas e o Mar Mediterrâneo eram objetos de conhecimento prático. As terras percorridas pelos mercadores precisavam ser descritas e apreendidas de maneira a permitir tanto a ida como a volta aos seus locais de origem. O trabalho escravo foi a garantia material para a existência de uma classe de aristrocratas-escravocratas e pensadores. Essa produziu as especulações e forma de cartografar a Terra bastante diferentes das necessidades dos marinheiros. Daí as especulações conviverem com pequenos trechos cartografados e percorridos, tendo como ponto de unidade o sistema de cartografia de paralelos e meridianos. Esta mesma divisão entre as classes e o trabalho, com representações ideológicas distintas mas com pontos de intercâmbio, ocorreu na Idade Média européia. De um lado, a necessidade de um conhecimento mais prático do espaço geográfico com fins imediatos (comércio), de outra, a descrição da Terra na esfera ideológica-religiosa e com contribuições de antigos mitos. A Geografia tinha lugar subalterno no catálogo medieval das "sete artes liberais" (3), a saber: aritmética, música, geometria, astronomia, gramática, dialética e retórica (FRANCO JUNIOR,1986). Informações hoje tidas como "geográficas" estavam ora no domínio da geometria (localização de cidades de acordo com a latitude), ora na área da astronomia, além do material que eu chamaria de relatos etno-geográficos.
Os dogmas bíblicos tomaram o lugar dos lugares reais, e foram
acompanhados das lendas cristãs e pagãs. O relato de viajantes
mesclava as descrições de terras pouco conhecidas e povos
reais com especulações. Os marinheiros continuavam tendo
o conhecimento prático do litoral do Mar Mediterrâneo e o
comércio contribuiu para que o espaço geográfico continuasse
sendo percorrido, porém não só por povos europeus.
Nos livros que tratam da história do conhecimento geográfico
sempre há referência sobre a Geografia produzida pelos árabes
durante a Idade Média européia, e há sempre a comparação
entre elas. Geralmente compara-se a exuberância da geografia árabe
em relação à européia. A cartografia árabe
resgatava as concepções geográficas gregas e possibilitava
que esse conhecimento chegasse à Europa Ocidental. Porém
devemos levar em conta a concepção geográfica e cartográfica
cristã produtora de cerca de 600 mapa-mundi medievais que chegaram
até os nossos dias. De variados tamanhos, chegaram a ter dimensões
de 1,5m de diâmetro. Cartografados sob a forma de uma roda ou "mapas
T-O", as terras eram divididas por rios ("T"), compreendendo as terras
"ecúmenas", ou seja, habitadas. Eram os denominados mapas ecumênicos,
cujo objetivo era o de representar a divisão feita entre os três
filhos de Noé, de acordo com as escrituras. O centro do mundo não
era mais a cidade que o geógrafo tinha como referência, mas
o "umbigo do mundo", - Jerusalém. Os comentários de BOORSTIN
(1989, p.105) a este respeito são interessantes:
"O dogma cristão e a tradição bíblica impuseram
outras ficções da imaginação teológica
ao mapa do Mundo. Os próprios mapas tornaram-se guias dos artigos
da Fé. Cada episódio e cada lugar mencionados nas Escrituras
exigia uma localização e tornava-se um prélio para
os geógrafos cristãos. Um desses pontos era o Jardim do Éden".
A definição de utopia foi criada por Tomas Morus (1480-1535) pela reunião dos elementos gregos óu (não) e tópus (lugar), para designar um projeto irrealizável, uma quimera, uma fantasia. Na sua obra "Utopia", escrita em 1516, Morus referiu-se a um lugar imaginário, uma ilha onde havia divisão de classes e o trabalho era obrigatório. Independente da sua não-existência no espaço geográfico foram feitas representações sob a forma de mapas (POST, 1979). A idéia de um lugar imaginário em contraposição a uma dura realidade já havia sido imaginado desde a Antigüidade. A República de Platão pode ser considerada como um dos primeiros exemplos literários dessa geografia dos lugares imaginários. A ausência da propriedade privada da terra e das coisas, a não necessidade do dinheiro, a falta de coerção para o exercício do trabalho, pois não existiria uma "classe ociosa" na Utopia de Morus (1972), contrastavam com a realidade quando essa obra foi escrita. A Inglaterra do tempo de Morus passava pelo cercamento dos campos para a criação de ovelhas, na fase de transição do Modo de Produção Feudal para o Capitalista. Marx (1975), referindo-se às legislações inglesas relativas à obrigatoriedade do trabalho datadas de 1530, 1547, 1572 e 1597, nos dá uma imagem dessa coerção, no capítulo XXIV do Capital. A evolução da palavra trabalho está ligada a tripalium, instrumento de tortura. Antes do século XIII, trabalhar era sinônimo de esforçar-se, e a partir dessa data assumiu o sentido que conhecemos- o de exercer algum ofício. Data de 1601 outra obra literária relativa a um lugar utópico - A Cidade do Sol, de Tomaso Campanella (1973). Posteriormente, no século XIX, Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Saint Simon (1760-1825) foram denominados "socialistas utópicos" e o primeiro chegou a propor a criação de cooperativas livres - os "falanstérios". Estes seriaam a forma mais perfeita, a "quinta fase da evolução natural do homem", a fase da harmonia, numa concepção ao mesmo tempo materialista e evolucionista da história dos homens. Comparando essas utopias entre si, produzidas em momentos históricos distintos, as duas primeiras obras literárias foram elaboradas como crítica a uma sociedade extremamente desigual - Campanella (1973) e Morus (1972). J&aaacute; a proposta de Fourier foi apresentada como algo possível de ser posta em prática, apesar da rotulação que lhe foi feita por Marx e Engels e através da qual passaram à história do Movimento Operário - Socialistas Utópicos. Apesar dda palavra utopia ter nascido para designar um lugar ideal inexistente, a aplicação do termo para o período medieval é adequado numa ótica geográfica, independente de ter sido criado e denominado a posteriori. O lugar que não existe pode assumir significados diferentes. Para Morus, era a fábula de um lugar imaginário que assumia o papel de criticar a Inglaterra daquela época. Para os "socialistas utópicos" era um modelo de sociedade harmônica, tendo Owen exercitado a sua concretização sem bons resultados.
Uma outra vertente de interpretação sobre os lugares imaginários
desenvolvida por historiadores, tem como ponto de partida o conceito de
imaginário.
Talvez seja na obra O Nascimento do Purgatório que essa contribuição
pode ser mais objetiva, onde Le Goff sintetiza o longo processo
da criação de um novo espaço no imaginário
católico, fruto da tentativa de dominação religiosa
na esfera ideológica. Ao analisar o Purgatório (Divina Comédia)
de Dante, ele deixa claro a consolidação de uma visão
de espaço vertical - alto, baixo e intermediário. Essa importância
do espaço na sociedade medieval assim foi atestada por Le Goff:
" A organização dos diferentes: geográfico, económico
(sic), político, ideológico, etc., onde se movem as sociedades,
é um aspecto muito importante da sua história. Organizar
o espaço do seu além foi uma operação de grande
alcance para a sociedade cristã. Quando se aguarda a ressurreição
dos mortos, a geografia do outro mundo não é uma questão
secundária. E pode esperar-se que exista uma relação
entre a maneira em que essa sociedade organiza o seu espaço aqui
em baixo e o seu espaço no além, pois os dois espaços
estão ligados através de relações que unem
a sociedade dos mortos e a sociedade dos vivos. Entre 1150 e 1300, a cristandade
entrega-se a uma grande remodelação cartográfica,
sobre a terra e o além.
Na Idade Média européia, a combinação entre
o imaginário popular e a difusão dos valores e das idéias
da Igreja deu resultados mais variados, desde a tentativa de substituir
os valores pagãos até as heresias. No imaginário popular
existiam representações antigas que em parte receberam a
superposição de representações cristãs.
Lugares lendários foram apropriados pela Igreja e as representações
e reinterpretações feitas pela população, por
vezes, fugiu ao seu controle. A algumas destas superposições
de representações denominarei de utopias medievais.
4. AS UTOPIAS MEDIEVAIS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A CARTOGRAFIA DAS TERRAS IMAGINÁRIAS.
A realidade dos servos-camponeses e dos deserdados da terra e da sorte levava-os a crer na existência das utopias. Associadas ao que denomino de utopias, está o imaginário medieval e a difusão da existência desses lugares. Mesmo significando a não-existência geográfica e real, o desejo de encontrar esses lugares paradisíacos, miraculosos ou de poderes sobrenaturais levou não só os pobres iletrados como os religiosos e aristocratas a buscarem-nos sob diferentes nomes e lugares. LE GOFF (1989) trata das funções que o maravilhoso desempenharia, como a da compensação, e ao referir-se ao "mundo às avessas" cita a Cocanha, a abundância alimentar, a nudez, a liberdade sexual, o ócio e o Paraíso Terrestre - a Idade do Ouro. Podemos verificar que o que Le Goff trata como "maravilhoso", Franco Jr. denominou de "utopias medievais". A escolha do termo utopias faz-se no sentido delas serem não-lugares reais, concretos, porém existentes no imaginário e nas mentes medievais. É uma maneira mais "geográfica", a meu ver, de tratar a concepção espacial nessa época numa ótica de uma geógrafa e não de uma historiadora. A hipótese destes lugares lendários existirem na superfície terrestre, cabendo procurá-los, foi reforçada pelos geógrafos cristãos medievais e pelos relatos dos viajantes e comerciantes e perdurou até 1774 quando James Cook destruiu a lenda da existência de um grande continente no hemisfério sul - a Terra Australis (DREYER-EIMBCKE,1992 e GIUCCI, 1992). Devemos distinguir que a procura dos lugares lendários por navegadores, geógrafos e cartógrafos foi além das utopias medievais. Acreditava-se na existência deles no imaginário da época e buscou-se na superfície terrestre mais do que um lugar concreto, o desejo de harmonia, de acesso a uma hipotética idade do ouro no retorno ao Paraíso Perdido. Hilário FRANCO JUNIOR (1992) descreve algumas das utopias medievais que tiveram repercussão geográfica e social. Para a nobreza, a utopia da paz localizava-se no claustro, para onde se fugia das tentações mundanas. Até o surgimento das sociedades mendicantes no século XIII, organizadas sob a forma das fraternidades, o mosteiro dos enclausurados era o locus terrestre, reflexo do mundo harmônico celeste. A imagem do mundo reproduzia-se até na micro-esfera religiosa : no século XII foi construído o mosteiro de Montreal e na Sicília (1170 ou 1180) cujo pátio retratava o mapa-mundi medieval. A heresia, contestação dos valores e das práticas consideradas ideais pela Igreja, permeou os séculos XII e XIV e em pelo menos uma delas - a dos bugomilos - encontramos referência ao heliocentrismo, em contraposição ao etnocentrismo da Igreja. A heresia foi praticada também pelo homem comum, pouco ou iletrado, ou por evangelistas leigos. A idealização da vida no campo foi uma resposta ao processo de formação de burgos. Representantes da Igreja viam nas cidades - a primeira delas fundada por Caim, o lugar do pecado, enquanto os servos buscavam lá "respirar o ar da liberdade". A igualdade jurídica foi simbolizada na figura de Robin Hood, uma resposta dos pobres ao rigor das leis e justificadora da conseqüente rebeldia (FRANCO JUNIOR 1992). O autor acredita que desde o século XIII essa lenda, que tomou forma literária no século XIV, já fazia parte do imaginário popular, período em que as leis inglesas proibiam aos camponeses a caça e o pastoreio nas florestas. A autonomia dizia respeito às comunidades autônomas que sofriam pressões quando entravam no circuito das rotas comerciais. A lenda de Guilherme Tell representa a resposta às tentativas de dominação do Sacro Império Romano Germânico nos séculos XIII e início do século XIV, quando rotas comerciais levaram à modificação da economia autárquica de comunidades (no caso alpina), ingressando-as na troca de produtos. Essa lenda medieval foi posteriormente retomada pelos filósofos Românticos Alemães (Sturm und Drang), estes bastante apreciados pelos geógrafos Ritter e Ratzel (MORAES, 1989). Entre as utopias medievais que Franco Jr. descreveu, algumas têm em comum o desejo das classes pobres de viverem em paz e em liberdade, saudáveis e sempre jovens, com alimentos abundantes sem o necessário trabalho cansativo de obtê-los. Ele está presente nas utopias da heresia (em parte), na igualdade jurídica e na autonomia. Entre o desejo e a lenda, um primeiro passo. Entre a lenda transmitida oralmente, por vezes assumindo mais tarde a forma literária, e a tentativa de relacioná-la a lugares concretos ou procurá-los na superfície terrestre, o segundo passo foi dado. O terceiro seria cartografar o imaginado.
A lenda da Cocanha foi identificada em documentos de 1142, crescendo entre os séculos XVI e XVII. Franco JÚNIOR (1992) listou 12 variedades da lenda na França, 22 na Alemanha, 33 na Itália e 40 em Flandres. Apesar da etimologia do termo apresentar dúvidas, a palavra latina coquere (cozinhar) foi derivada de "doce" em provençal ("cocanha") e sofreu pequenas modificações nas línguas francesa (século XIII), inglesa (Século XIV), italiana, espanhola e portuguesa. Caracterizada principalmente pela abundância de comidas, bebidas e vida descansada, a Cocanha ainda apresentava uma repetição de dias de festas, cujos meses eram formados por 6 semanas, além de nela estar localizada a Fonte da Juventude. Na Alemanha, a lendária Cocanha assumiu o nome se Schlaraffenlande (mapa) (detalhe do mapa) e surgiu no século XVI - o país de vida ociosa. O pintoor Peter Bruegel ("the older"), já no século XVI, representou-a com camponeses descansando após uma refeição, e uma de suas mais belas obras é exatamente esta terra imaginária (para ver The Land of Cokayne, clique aqui).
As sucessivas buscas na localização exata do Éden
ou Paraíso não impediram que este aparecesse cartografado
no Oriente nos mapa-mundi da época - sempre na parte superior do
mapa estavam Adão, Eva e a serpente. A importância que a explicação
religiosa do mundo assumiu nessa época alterou profundamente a cartografia
das terras conhecidas. Cercado por obstáculos naturais, como montanhas
ou muralhas de fogo, este lugar era impossibilitado aos simples mortais.
Isidoro de Sevilha (560-636) descreveu-o rodeado por um deserto, tornando
inacessível aos homens, e no seu centro, localizou-se a Árvore
da Vida, donde nasciam os quatro rios que irrigavam o mundo. BOORSTIN,
analisando a literatura de viagens medievais enumera vários homens
que acreditaram ter estado ou chegado a esse lugar lendário. Alexandre,
o Grande, após uma viagem de um mês
depois da travessia de um grande rio na Índia (Ganges ?), teria
chegado às suas muralhas. Uma lenda bastante popular na Idade Média,
acreditava-se que o monge
irlandês S. Brandão (484-578) teria atingido o Paraíso
ao chegar numa ilha ocidental e enevoada, navegando através do Oceano
Atlântico mas de acesso a poucos. "A ausência de mudança
define a ilha prometida dos santos. Ela permanece idêntica e inalterável
desde a gênese do mundo. Anula a noção de temporalidade
e morte- nunca escurece-; inverte desastres naturais em fonte de prazer
- eterna primavera-; elimina o sofrimennto das necessidades temporais -
não precisam comer, beber nem dormir. Mas sua virgindade inviolável
não a priva de possuir um elemento constitutivo das representações
imaginárias do maravilhoso: as riquezas. Na terra prometida todas
as pedras são preciosas" (GIUCCI, 1992, p. 39). A Navigatio Santis
Brendani Abbatis (4) foi propagada e acrescentada
pela tradição oral e escrita, sobrevivendo em 120 manuscritos
na Europa. Até 1759 os cartógrafos identificavam ilhas como
sendo a de S. Brandão. Ora localizada a Oeste das Canárias
junto ao Equador (Globo de Martin Behain em 1492 e Mapa
de Hereford entre 1275 e 1300), ora perto ou confundida com a Irlanda,
a "Ilha de S. Brandão" foi identificada até no Oriente (figura
6). Outros lugares foram identificados como sendo a Ilha de São
Brandão: as da Madeira no portulano de Angelino Dulcerto (1339),
ou como ilha solitária no Atlântico nos mapas de Piziani (1637),
em Batista Beccario (1426. 1435), Biando (1436), Pareto (1455), Benincasa
(1482), Mercator (1567) e Ortelius (5)(1570). Franco
Junior também se refere à viagem de São Brandão,
baseado em Benedeit:
"Aproximando-se da parede de neblina, o santo viu que ela se abria para
seu barco e por três dias navegaram através de uma estreita
montanha, cercado por uma muralha belíssima e resistente, de material
desconhecido para os homens, com a porta guardada por dragões e
por uma espada que corta o ferro, pedra e diamante, girando sozinha "
Como o Éden tinha múltiplas indicações,
ora numa ilha, ora numa montanha, outra identificação foi
feita com as lendárias Ilhas Afortunadas e, apesar das recomendações
de Isidoro de Sevilha
e de Pedro d´Ailly, Cristóvão
Colombo no século XV relacionava-as ao Éden pela fertilidade,
localizando este Paraíso nas costas da África. Colombo pensava
que a forma do globo terrestre tinha uma "deformidade", como se fosse uma
pêra, onde localizava-se o Paraíso. Entretanto, ao encontrar
a paisagem sempre verde das ilhas tropicais do "Novo Mundo", não
teve dúvidas em associá-la ao Paraíso. A vertente
bíblica e cristã localizava o Paraíso no Oriente,
porém religiosos e leigos imaginavam-no na região dos antípodas
e separado por um oceano intransponível - S. Basílio, S.
Sulpício, S. Beda (673-735) e Dante - ou na zona tropical (Tertuliano,
S. Boaventura, S. Tomás de Aquino). Os judeus se inclinavam entre
o Vale do Ebron e Jerusalém. Porém, o "umbigo do mundo" seria
considerado como o lugar onde todos os problemas físicos e da alma
seriam curados. Segundo a narrativa de um monge do Concílio de Clermont
em 1095, já no início da época das Cruzadas:
"Jerusalém é o umbigo do Mundo, uma terra mais frutuosa
do que qualquer outra, uma terra que é outro paraíso de delícias.
Foi esta terra que o Redentor da humanidade iluminou com a Sua vinda, embelezou
com a Sua vida, consagrou com a Sua paixão, redimiu com a Sua Morte
e marcou com o Seu sepultamento. Essa cidade real, situada no meio do mundo
encontra-se agora cativa dos seus inimigos e feita serva, por aqueles que
não conhecem Deus, para as cerimônias pagãs. Anseia
e espera pela liberdade; roga-os incessantemente que partais em seu socorro.
Espera auxílio de vós, especialmente porque Deus vos concedeu
glórias nas armas do que a qualquer outra nação. Empreendei,
pois, essa viagem pela remissão dos vossos pecados, com a certeza
da "glória que não pode desvanecer-se " no reino do Céu"
A associação de Jerusalém com o Jardim do Éden
e a remissão dos pecados na época das Cruzadas (1099-1291)
somava-se mais uma crença da cultura popular incentivada pela Igreja,
a da cura de doenças pela presença das relíquias ou
onde os corpos de santos estariam sepultados. A figura do peregrino que
partia em direção ao local de sua cura (do corpo ou da alma)
feita através de milagres só reforçou os poderes sobrenaturais
que teria Jerusalém. O monte Calvário seria o lugar onde
Adão teria sido enterrado, por conseqüência, próximo
ao Paraíso, e sobre sua sepultura teria sido fincada a cruz de Cristo,
feita com a madeira da Árvore da Vida. Mas qualquer relíquia
de santos teria o mesmo efeito, daí o surgimento de vários
lugares de peregrinação.
5. O MILÊNIO E AS TERRAS LENDÁRIAS.
O Fim dos Tempos associado à passagem do Milênio foi uma
outra crença cujos elementos pagão e cristão originaram
várias interpretações. Recorremos a MELLO (1989) em
sua definição de Milênio para compreendermos a representação
de tempo que se tornou social e geográfica:
"A passagem do Milênio, considerada na Europa cristã uma
possível data para o final dos tempos, deu origem a uma série
de movimentos de fundo escatológico, ressuscitando várias
lendas a ele associadas e criando alguns mitos, aceitos pelos historiadores
durante certo tempo, como o dos "terrores do Ano Mil
Na realidade havia dois Milênios, o da Encarnação,
o ano 1.000, e o da Redenção, em 1033. Outro aspecto do movimento
milenarista era o daqueles que acreditavam, com base no Apocalipse de São
João, no advento de uma era de paz, antes da chegada do Anticristo,
a qual duraria mil anos" (MELLO, 1989, p.69) O Milênio também
foi interpretado como a utopia medieval da justiça e esteve presente
no imaginário desde o século VI, crescendo em fins do século
XI. A ele estavam associadas as idealizações do "Eterno Retorno"
- bastante antiga, relacionada ao cicloo da Natureza do nascimento à
morte - e à crença cristã de um momento da Criação,
aparecimento do Messias e o Fim dos Tempos (c.a.FRANCO JUNIOR, 1992). A
possível data deste último acontecimento criou muitas especulações
a respeito. Emmerson, citado por Franco Jr. chegou a encontrar 24 datas,
desde o ano 1000 a 1490. Esta última data, em pleno século
XV, pode nos surpreender quanto à recorrência do Milênio
nos séculos XIV e XV (SCHWARTZ, 1992), mas a crença de que
a decadência do mundo seguida de um novo tempo teve uma base material
concreta para desenvolver-se. As mudanças ocorridas nos séculos
XI a XIII na Europa significaram uma transformação nas paisagens,
com a incorporação de novas terras - bosques, terras incultas
e pântanos- e o surgimento de novas cidades. O comércio com
o Oriente estabelecia rotas terrestres e marítimas, fundaram-se
ligas comerciais (i.e. Hanseática em 1241) e desenvolviam-se feiras,
como a da região da Champagne: Troyes, Bar, Provins, Lagny, Chartres,
Ruão. (HEERS, 1981) A paralisação dos desbravamentos,
a substituição das lavouras de cereais por lavouras comerciais,
a grande oferta de mão-de-obra e o rebaixamento dos salários
levaram à população européia no século
XIV a enfrentar a fome (Grande Fome em 1315). Foram épocas de epidemias
e pestes (Peste Negra em 1348) acompanhadas de guerras que desarticularam
parte da produção no campo (Batalha de Crécy em 1346
e a Invasão dos Ingleses na França em 1356). A fome, as pestes
e as guerras trouxeram para as cidades populações rurais,
refletindo um esvaziamento econômico e populacional, incidindo nas
rendas dos senhores feudais e na mudança nas relações
de trabalho (i.e. o aumento dos diaristas rurais). Revoltas camponesas
e banditismo foram constantes no século XIV: em Paris (1358), no
reino de Aragão (1409/13), em Kent e Essex na Inglaterra (1381).
Em resumo, o período em que o milenarismo cresceu correspondeu ao
período de intensas mudanças sociais, econômicas e
políticas, dando margem a interpretações da proximidade
do Juízo Final. Entre o ano 1.000 ao final do século XIII
ocorreram o surgimento e o fim das Cruzadas, fato importante nos aspectos
comerciais e religiosos (ideológicos). Tem-se enfatizado ora o aspecto
comercial, ora o aspecto religioso, mas nos interessa aqui como os aspectos
simbólico e religioso foram utilizados pela Igreja para deslocar
geograficamente a prática do ideal cavalheiresco materializada numa
sucessão de empreendimentos guerreiros:
"Os remédios adotados, tais como os movimentos conhecidos como
a Paz de Deus e Trégua de Deus, o enquadramento da indisciplinada
energia belicosa das camadas superiores da população - versadas
e acostumadas no manejo das armas - dentro de uma código ético
cristão, impulsionando o aparecimento da cavalaria, criaram uma
disponibilidade de braços armados para o combate aos infiéis,
trazendo pois um certo alívio ao Ocidente, dilacerado pelas incessantes
lutas de seus intempestivos milites
Junto com a presença do Anticristo, buscavam-se os sinais companheiros da iminência do Apocalipse: cometas, monstros, enchentes, secas, eclipses, peste, etc. A difusão das heresias entre a população mais pobre parece ter sido grande, a partir da descrição feita por Queiroz (1988), e pela sua expansão geográfica suspeita-se que alguns de seus elementos tenham-se originado no Oriente. Enfim, nos séculos XII e XIII, a Igreja abriu suas baterias contra os hereges (cristãos) e infiéis (Cruzadas) e nesse clima de insegurança, as pessoas comuns buscavam a salvação de muitas maneiras diante da proximidade do Juízo Final. Outro acontecimento que reforçou essa iminência foi o domínio dos turcos sobre os caminhos que levavam a Jerusalém (1071) e a proibição de peregrinações cristãs ao sagrado "umbigo do mundo" (Ver figura abaixo)
Figura 1 : Jerusalém num mapa do século XV.
.
O Anticristo foi associado ao domínio turco e "libertar" Jerusalém e o Santo Sepulcro significava promover o início do Milênio. Esta interpretação também alcançou a população comum e foi uma das alavancas para a superposição, num dado momento, da figura do peregrino à do cruzado. A peregrinação era feita desde o século VII. No século XII, há referências aos "cruzados" informais, oriundos das camadas populares e que se resvalavam na heresia em direção à libertação do Santo Sepulcro (BOORSTIN, 1989). No caminho deixavam rastros de saques e destruição, como fizeram nas Cruzadas "oficiais". Podemos pensar que as Cruzadas foram um caminho encontrado pela Igreja para reverter a expansão não-cristã em direção à Europa ("Paz de Deus"), e estavam associadas ao Milênio sem data precisa, mas logo previsto diante de qualquer sinal, o que foi materializado pelas heresias. O peregrino se transformava em cruzado e buscava nos lugares santos redenção para seus pecados, independente da classe social. No contexto das Cruzadas, com a invasão turca às portas da Europa, a profecia de Ezequiel no "Livro das Revelações" de lutar contra Gog a terra de Magog, associada ao Milênio, parecia se concretizar: "E quando mil anos expirarem, Satanás será solto da sua prisão e partirá para enganar as nações que se encontram nos quatro quadrantes da Terra, Gog e Magog, para as unir em combate". (BOORSTIN, 1989, p. 106) Quando seria a invasão? De onde ela viria ? A carta atribuída a Prestes João mencionava Gog e Magog, assim como também este lugar se encontra no Corão. Roger Bacon (6), um filósofo medieval, apontava a necessidade da geografia responder à questão da localização destas cidades. Ora identificada à invasão viking pelos muçulmanos (El-Idrisi), ora identificada com os muçulmanos, mongóis e turcos pelos cristãos, BOORSTIN afirma que "localizar os povos e o lugar de Gog e Magog tornou-se um passatempo favorito dos geógrafos cristãos" (BOORSTIN,1989, p.107). Em 1145, um bispo escrevia ao Papa fazendo referência a João, um sacerdote descendente dos Três Reis Magos e que tentou combater pela Igreja em Jerusalém, tendo vindo de um lugar além da Pérsia e da Armênia. Em 1165, aparece a citada carta apócrifa mas atribuída ao rei Prestes João, endereçada ao imperador bizantino de Roma e ao rei da França, prometendo ajuda para a libertação do Santo Sepulcro. Mais de uma centena de versões foram feitas em latim e traduzida em várias línguas. A sobrevivência desse reino imaginário chegou até 1573 nos mapas holandeses, então situado na Abissínia. Podemos então compreender que o auxílio do Prestes João, diante da invasão dos povos de Gog e Magog pregada por Ezequiel, se adaptava às incursões e dominação turco-muçulmana sobre Jerusalém.(Ver figura abaixo) Diante disso, urgia a localização dessas cidades para a necessária destruição, buscando-se os aliados sob o domínio do soberano que enfrentaria o Milênio (o "Último Imperador do Mundo").
Figura 2. Mapa T-O.
Ao tentar compreender as mudanças ocorridas na cartografia e
na geografia no período medieval europeu, deparamo-nos com a busca
de lugares imaginários e respectivas representações.
A epistemologia da Geografia raramente se preocupou com esse período
na história dessa ciência nas últimas décadas,
e em especial no Brasil. Somente descreveu esse "recuo", mas dificilmente
encontramos estudos sobre os lugares imaginários ou que buscassem
algum sentido para a sua existência, ou melhor, para sua crença.
Ao nos remetermos a Marco Polo e encontrarmos lado a lado as descrições
"reais" e trechos onde ele identificou lugares lendários, nos veio
a interrogação do por quê dessa convivência.
Este viajante-comerciante e geógrafo reconhecido a posteriori representou
um ponto de transformação no relato de lugares ao se preocupar
em descrever cidades asiáticas e não somente lugares imaginários.
Apesar desta mudança, as descrições foram transformadas
séculos depois em lugares "mitos", como o Eldorado no momento de
incorporação do "Novo Mundo" ao "ecúmeno". Ao contrário
do que se pode pensar, a geografia e a cartografia não se tornaram
"reais" no período que sucedeu a Idade Média. Datam da época
dos "descobrimentos" muitas ilhas imaginárias "cartografadas". A
ilha de São Brandão, desdobramento da narrativa Navigatio
Sancti Brendani
que teria ocorrido no século VI, foi procurada entre 1487 e 1759
(DREYER-EIMBCKE, 1992, p.121) A contribuição que a história,
em especial a história das mentalidades, pode dar ao entendimento
dessa "geografia dos lugares imaginários" é grande, apesar
de não se dedicar especificamente ao conhecimento geográfico.
Porém, a análise das "utopias medievais" já nos possibilitou
a compreensão de elementos na instância do pensamento religioso
e não-religioso relacionados aos lugares. Se para os pobres existia
uma Cocanha para imaginar, outros lugares buscados tinham uma representação
"geopolítica", como os possíveis aliados cristãos
(Reino de Prestes
João) ou a ameaçadora terra de Gog e Magog. Talvez os
geógrafos cristãos, na sua "geopolítica metafísica"
das Cruzadas tenham se dado conta melhor do que os geógrafos posteriores,
de como se encadeavam uma explicação do mundo da Igreja com
a territorialidade de sua possibilidade de continuar a existir. A descoberta
de terras, apesar de lendárias, estava estreitamente ligada à
sobrevivência da religião, da Igreja, da vida e da salvação
dos homens comuns até que finalmente chegasse a época da
Segunda Ressurreição de Cristo e do conseqüente Juízo
Final. Como não pensar que a superposição do peregrino
ao cruzado foi um caminho para tentar assegurar o domínio cristão
numa área estratégica, tanto política quanto econômica
? Como não ser tentado a afirmar que estes lugares imaginários
assumiram um aspecto de coesão diante de uma colcha de retalhos
de feudos e de alianças entre a aristocracia cavalheiresca ? Nesse
contexto, a Geografia produzida pode começar a ser analisada e os
geógrafos da época compreendidos na sua obra.
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(1) Uma versão preliminar desse artigo foi publicada na Revista Semina: Cl. Soc/Hum. Londrina. V. 15. N. 3. Pp. 223-238. Setembro de 1994. Voltar ao texto
(2) Doutora em Geografia Humana, docente do Departamento de Geociências, Centro de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Londrina, Caixa Postal 6001, Londrina, Paraná, Brasil - CEP 86051-970. E-mail: marciasiqueira1953@yahoo.com.br Voltar ao texto
(3) "Havia, em suma, um monopólio da cultura intelectual por parte da Igreja. A educação era feita de clérigos para clérigos, devido às necessidades do culto. Nas escolas catedralícias e sobretudo monásticas, praticamente as únicas existentes, ensinavam-se as chamadas sete artes liberais, as únicas dignas de homens livres, por oposição às artes mecânicas, isto é, manuais, próprias de escravos. Na primeira parte ou trivium, estudava-se Gramática (ou seja, latim e literatura), Retórica (estilística, textos históricos) e Dialética (iniciação filosófica). Na segunda ou quadrivium passava-se para a Aritmética, Geometria (que incluía a Geografia), Astronomia (astrologia, física) e Música". Voltar ao texto.
(4) "Otro enfoque, más pintoresco éste, que há marcado la recepcíon del texto, es su lectura "verista", como libro de a bordo, donde cada isla descrita se correspondería com la geografía. En efectio, el éxito de las versiones de la Navigatio en lenguas romances mantuvo hasta el siglo XVIII la creencia popular en la existencia de una isla paradisíaca, descubierta por Brandan - San Borondón en español-, ubicada en el àrquipélago canário. Benedeit, El Viaje de San Brandan. Madrid: Siruela, 1995, p.xiii. Ver também Ribeiro, Maria Eurydice de Barros, A Ilha de São Brandão: um percurso simbólico pelo Atlântico in Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbekian vol. XXXIV. Voltar ao texto.
(5)Mapa Theatrum Orbis Terrarum. (1570) de Abraham Ortelius: Voltar ao texto.
(6) Ver Bacon, Roger. Operis Majoris - Pars Quarta
Mathematicae in Divinis Utilitas in http://feature.geography.wisc.edu/woodward/bacon.html
. maio de 1998. Voltar ao texto.