A aventura da
criação literária
por José Castello
Oficinas literárias se disseminam pelo país. Eu
mesmo, sempre cheio de dúvidas, comecei a coordenar oficinas regulares em
Curitiba. Elas respondem a uma demanda cada vez mais freqüente daqueles que se
interessam pela literatura e que desejam, ou se iniciam, escrever. Mas será possível
ensinar a escrever? Em minhas pequenas oficinas literárias — que prefiro chamar
de "oficinas da imaginação" — algumas pessoas me pedem isso. É função
da escola, e não de oficinas livres, transmitir o conhecimento e o manejo da língua.
Portanto, oficinas não ensinam a escrever.
Alguns, ainda mais iludidos, acreditam que oficinas
literárias formam escritores. Dito de outra forma: que, se não ensinam português,
ensinam a escrever textos literários. Nem o mais brilhante dos mestres tem o
poder de transformar alguém em escritor. A arte de escrever não comporta
transmissão. Se a idéia é domesticar a escrita alheia, a literatura passa a léguas
disso. Pode-se, no máximo, provocar, incitar, apostar numa inquietação. Se digo
que literatura não se ensina é porque, para escrever textos criativos, uma
pessoa precisa bem mais do que uma dedicada e metódica educação. É preciso,
antes, que algo se escreva dentro dela. A literatura começa com uma experiência
de ruminação interior. É uma aventura pessoal e secreta. Não comporta
adestramento, não é uma técnica - como o manejo de uma máquina, ou o cultivo
de uma fazenda - que se conquista pelo esforço e pela repe
Um grande escritor como Cristovão Tezza relata,
sempre, o estado necessário de meditação profunda, de contemplação, que
antecede e prepara sua escrita. Quando começa a escrever um livro, Tezza se põe
a perambular pela casa, horas, dias, semanas a fio. Num estado que se assemelha à
divagação, remói idéias, visões imprecisas, situações. Quando, enfim, se
senta para escrever, muitas vezes não produz, ao longo de todo um dia, mais que
meia-dúzia de linhas. Sempre à mão, em um caderno, o que sublinha a posição
fundamental de eterno aprendiz, ele se contenta em gaguejar algumas palavras. Não
importa que escreva só um punhado de frases: interessa, sim, que, numa espécie
de gestação abstrata, incorpórea, uma narrativa se forma, lenta, dentro dele.
Um escritor não chega a decidir que vai escrever
um romance, ou um poema. Tampouco controla o ritmo e o tom do que escreve. Algo
atua sobre ele, dentro dele, através dele - e à sua revelia. Há um elemento
autônomo, e crucial, sempre em jogo. Se a literatura é uma carruagem, o escritor
não é o cocheiro que chicota os cavalos. O escritor é o passageiro que se
acomoda solitário na cabine, desprotegido, encoberto por espessas cortinas,
carregado sabe lá para onde. É a conexão com esse desconhecimento, e não a
prática de alguma arte de "bem escrever", que dele faz um escritor.
Borges desprezava seu primeiro conto, Homem da
esquina rosada que, como lembrou um dia, escreveu com grande cuidado,
"lendo em voz alta cada página". Em outras palavras: com o fervor de um
aluno exemplar. Por uma premonição misteriosa, que confundiu com o pudor,
preferiu assiná-lo não com o próprio nome, mas como Francisco Bustos, o nome de
um de seus bisavôs. Essa opção obscura pelo nome alheio e antigo pode ser
tomada como um sinal de que, de alguma forma, mesmo "escrevendo bem",
Borges escreveu Homem da esquina rosada para cumprir uma incitação
externa, e não interna. Para atender ao desejo de outro.
Mais tarde, entendeu que o verdadeiro início de
sua carreira literária estava não nesse conto, mas numa série de exercícios
que escreveu pouco depois, e que sequer chegava a considerar literatura. Ele os
chamou de História universal da infâmia e os publicou na revista Crítica,
entre 1933 e 34. Esses exercícios eram pseudo-ensaios, eram falsificações, não
cumpriam as exigências clássicas do conto. Parecia claro: não eram contos. Para
escrevê-los, Borges lia sobre a vida de pessoas conhecidas e, em seguida, as
deformava. Julgava que fossem simples jogos de espírito, nada mais que isso.
"Por alguma ironia, Homem da esquina
rosada era realmente um conto, enquanto esses exercícios assumiam a forma de
falsificações e de pseudo-ensaios", anotou, mais tarde, em sua Autobiografia.
Contudo, é no campo do "pseudo", isto é, do falso, que a literatura (a
ficção) se faz. Tira-se disso que é no erro, no desvio, é quando escapa de
todo ensinamento, e não no cumprimento severo das normas literárias e dos
cânones, que um escritor se torna escritor. Ninguém se educa para ser um
escritor; a literatura está mais próxima de uma deseducação do que de uma
educação.
Ouvir a própria voz
Com esses exercícios que na verdade são contos
geniais, Borges encontrou sua própria voz, e se tornou um grande ficcionista.
Encontrar sua voz particular é a grande tarefa do escritor, e não cumprir regras
gramaticais, praticar um português impecável, ou exibir um estilo elegante.
"Ninguém se torna um escritor sem conseguir, antes disso, ouvir a própria
voz", diz o ensaísta inglês Alfred Alvarez em A voz do escritor,
belo ensaio traduzido recentemente pela Civilização Brasileira. Alvarez é
crítico literário do The Observer, de Londres, e professor aposentado
em Oxford.
Trata-se de uma experiência radical, que se
prolonga por toda a vida e que, em alguns casos extremos, coloca a própria vida
em risco. Pense-se na loucura amarga de Antonin Artaud, na solidão superlotada de
Fernando Pessoa, nas vozes que perseguiam Virginia Woolf, na vida à deriva de
Joseph Conrad. "Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em
paz", diz Alvarez. Mais que problema, é um enigma, que nunca chega a
resolver, e com o qual o escritor se vê obrigado a lidar por todos os seus dias.
Como ouvir a própria voz? Não existem instrumentos, nem exercícios, ou mesmo
rituais, que levem a isso. É coisa que não se ensina, que um escritor aprende
consigo mesmo, ou não aprende.
Alerta Alvarez que ter uma voz não é a mesma
coisa que ter um estilo. Isso, ter um estilo, que cheira mais à alta costura que
a literatura, é coisa que qualquer escrevente pode cobiçar. Pior: aqueles que
chegam a "ter um estilo", em grande parte dos casos, se asfixiam em sua
própria couraça, o estilo se torna uma camisa-de-força. Até porque um estilo -
como um penteado, ou uma marca de automóvel - adota-se, vem de fora. Um estilo é
uma casca, uma performance que se aprecia, ou se rejeita, enquanto uma voz não
chega a ser uma escolha, uma voz é uma maneira inconsciente de soar.
Encontra-se a própria voz pelos caminhos mais
inesperados. Para ser escritor, William Faulkner teve de trabalhar como
carpinteiro, pintor de paredes e chefe dos correios. Franz Kafka mofou, por anos a
fio, em um escritório de seguros. Orides Fontela se viu com a miséria, a
penúria mais extrema. Joseph Conrad levou uma dura vida de marujo. Jean Genet
converteu-se em ladrão. François Villon, em assassino. José Saramago passou
anos, décadas inteiras dirigindo jornais. Ernesto Sabato formou-se em física e
matemática. Hilda Hilst se comunicou com espíritos através de ondas de rádio.
Não existem caminhos retos que conduzam à literatura, eles são sempre tortos e
movediços.
E o que distingue a voz própria? O fato de ela ser
diferente de todas as outras, de não se parecer com nenhuma. Então, como se pode
ensinar isso? Simplesmente não se pode ensinar. Pode-se, no máximo, atravessar
experiências que favoreçam esse encontro. Experiências literárias, ou seja,
leituras. Ler e escrever, e ler e escrever, não para acertar, mas para cavar.
Experiências que expandam o olhar e ampliem o timbre da voz de quem escreve. Que
alarguem os limites - chegamos à palavra chave - de sua imaginação.
Daí eu preferir pensar em "oficinas da
imaginação". Assim como não se ensina a escrever, tampouco se ensina a
imaginar. Mas a imaginação pode ser estimulada, atiçada, e mesmo, e
infelizmente, desperdiçada. Ao preferir a imaginação, o que se trabalha não é
a língua, nem a história da literatura, e muito menos o "escrever
bem", ou qualquer outro valor fixo. Trabalha-se, ao contrário, a
diversidade, a irregularidade, o desvio e o susto. "A gente faz algo,
através de nossa imaginação, que não é uma representação, mas sim algo
inteiramente novo e mais verdadeiro que qualquer coisa verdadeira",
descreveu, certa vez, Ernest Hemingway. "Eis por que se escreve, e não por
qualquer outra razão que se saiba."
A formulação de Hemingway é clara: um escritor
parte daquilo que carrega dentro de si e que só com muita dificuldade, e alguma
decepção, consegue encontrar. A decepção é outro elemento chave. Como nunca
escrevemos aquilo que planejamos, ou desejamos escrever, como nossa escrita está
sempre muito aquém, ou muito além de nossos planos, o escritor precisa suportar
o desapontamento, imenso, que a literatura provoca. Nenhum escritor está
satisfeito com o que escreve. Assim como estranhamos nossa voz quando a ouvimos em
um gravador, ou repudiamos nossa imagem quando a vemos numa fotografia, também
assim nossa escrita parece, quase sempre, imperfeita e alheia. E aqui é preciso
dizer com todas as letras: ela realmente é.
Até porque, como observou mais de uma vez o
argentino Julio Cortázar, a literatura não tem leis. Se há uma coisa que a
literatura não apenas não comporta, mas sobretudo não suporta, é a norma.
Então, como transmitir, como ensinar leis, normas inexistentes? "O romance
é um grande baú, é a possibilidade de expressar uma multiplicidade de
conteúdos com uma liberdade enorme", disse Cortázar numa longa entrevista
ao amigo Ernesto Gonzáles Bermejo, publicada no Brasil pela Jorge Zahar. "Na
realidade, o romance não tem leis, a não ser a de impedir que a lei da gravidade
entre em ação e o livro caia das mãos do leitor."
Única lei: seduzir o leitor. Mas esta é uma lei
sem forma, e que não pode ser fixada em letras, já que para cada leitor, a
sedução é uma coisa diferente. A literatura, diz Cortázar em outro momento,
vem mais de uma "experiência de desajuste", isto é, mais de um
desarranjo, de uma desordem, do que de um bom funcionamento. Diz ele ainda:
"Em determinados momentos, as coisas se apartam de mim, se movem, correm para
um lado e, então, desse oco, dessa espécie de interstício que eu não sei
exatamente o que é, surge um estímulo que, em muitos casos, me leva a
escrever". O escritor, observa também, deve saber suportar uma certa
"suspensão da incredulidade". Ao contrário do cientista, que está
sempre a criticar a realidade e os princípios que a governam, o escritor deve
acreditar no que vê. Um escritor precisa aceitar fatos incongruentes, presenças
incertas e verdades improváveis. Ele deve suportar a perplexidade e a
incompreensão, matérias mais nobres da literatura, ou só escreverá coisas
previsíveis.
Recorda Cortázar que, enquanto escrevia os
capítulos mais difíceis de O jogo da amarelinha, trabalhava em
tal estado de porosidade e de desamparo, sentia-se tão frágil e exposto que
dependia da mulher para fazer as coisas mais banais. "Ela me dava colo, me
levava para tomar um pouco de sopa", recorda. "Eu estava completamente
dominado. Comer, tomar uma sopa, eram as atividades literárias. A outra
coisa - a literatura - era o verdadeiro." A literatura é tão maior do que
quem a escreve que aquele que escreve, sob seu peso, às vezes até se
infantiliza.
Como se ensina isso? Antes ainda: é mesmo o caso
de ensinar - de macaquear? Na moda, se todos passam a usar calças com a cintura
baixa, basta usar também. Na ciência, conjunto organizado de conhecimentos, o
que importa é a demonstração - é saber provar o que se diz. Na religião, o
mais importante é reproduzir, letra a letra, sem qualquer contestação, as
palavras dos livros sagrados. A filosofia não se faz sem um conjunto de
princípios e de conceitos manobrados com rigor. Mas, e a literatura? Tudo o que
se pode fazer é trabalhar com leituras e mais leituras, rascunhos e mais
rascunhos, criando assim uma atmosfera de intimidade e de liberdade interior,
densa de tal modo que facilite (mas nada é garantido, pois não existem regras) o
aparecimento da escrita.
Nunca é demais repetir a sentença genial de
Clarice Lispector: "Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me
escrevem". Tal experiência não comporta transmissão, ou adestramento. Não
existem escritores bem formados, ou bem habilitados. Muitos psicanalistas
acreditam na existência, e na boa prática, de uma psicanálise-didática; mas
pensar numa literatura-didática é um absoluto contra-senso. Até existem
escreventes bem adestrados, com técnica afiada e saberes na ponta da língua: mas
escritores, a rigor, não são. Bons escreventes, eles se contentam em cumprir o
legado da tradição, em criticar o passado, em dialogar com mestres e reverenciar
doutrinas. Literatura isso não é. Fazem lembrar a vida medíocre de um Bartleby,
o célebre escrivão criado por Herman Melville, ou do nosso melancólico
amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. Bartleby foi o mais sábio: um dia descobriu
que, a qualquer pedido de performance, o mais correto era responder: "Acho
melhor não". A partir dele, pode-se entender o sábio silêncio daqueles
escritores taciturnos que o catalão Enrique Villa-Matas retratou em seu Bartleby
& Cia.
O real e a literatura
Outro argentino, Ricardo Piglia, aponta a relação
estreita entre os movimentos do real (esse grande fundo de susto e desconhecimento
que está encoberto pelo que chamamos, trivialmente, de realidade) e a literatura.
Numa das cenas mais comoventes de Crime e castigo, lembra Piglia,
Dostoiévski relata um sonho de seu protagonista, Raskólnikov. No pesadelo,
Raskólnikov vê um grupo de camponeses alcoolizados que surram um cavalo até a
morte. Em desespero, o rapaz se abraça ao cavalo agonizante e lhe dá um beijo. O
romance de Dostoiévski é de 1866. Duas décadas depois, em 3 de janeiro de 1888,
o filósofo Friedrich Nietzsche, um leitor apaixonado de Dostoiévski, repetiu
(encenou) a cena de Raskólnikov. Numa rua de Turim, Itália, ele se abraçou
chorando a um cavalo que um cocheiro castigava brutalmente, e depois o beijou. A
citação de Dostoiévski, transformada em ato, é para alguns o início da
loucura de Nietzsche; na verdade, é o apogeu de sua filosofia. E por que não
dizer: de sua poesia.
No mesmo ano de 1888, surgem dois dos livros mais
radicais de Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos e O
Anti-Cristo. Sua filosofia, embora talhada em forte lastro
crítico, não se baseia em experiências livrescas, mas em uma dolorosa
experiência pessoal. Em vez de manejar conceitos filosóficos, Nietzsche fez de
suas idéias um teatro e, com isso, mais que fazer filosofia, fez poesia. Ele
"sofria" de pensamentos, era objeto e também personagem (vítima) deles
- exatamente como o impulso insano para escrever fez de Clarice Lispector não só
escritora mas, sobretudo, uma personagem, uma vítima de sua literatura.
Franz Kafka gostava de citar um trecho da
correspondência de Gustave Flaubert: "Vivo absolutamente como uma ostra. O
meu romance é a rocha à qual me agrilhôo e não sei nada do que se passa no
mundo". Em seus diários, Kafka anota uma idéia parecida: "Repouso em
cima do meu romance tal como uma estátua que olha para a longe repousa sobre o
soco". Tanto Flaubert, como Kafka se referem à relação enviesada,
sinistra, que os escritores têm com a literatura. Uma relação de "má
índole", que beira o desastre e a ruína - e as vidas tormentosas de
Flaubert e de Kafka, dois homens que viveram para escrever, ilustram bem isso.
Relação de agrilhoamento, em que atuam forças secretas como o desespero, a
obsessão e a solidão. Que Kafka, em outra página de seus diários, descreve
assim: "É num estado convulsivo de dor que se cria".
Só que a dor de Kafka é, para cada escritor, uma
dor diferente, de modo que nem mesmo o teatro da dor pode ajudar alguém a se
tornar escritor. Não é uma questão de fachada - como costumam pensar aqueles
psicanalistas que, empenhados na imitação do mestre, adotam desde logo a barba e
o cachimbo. Nada disso, nenhum ritual, nenhum teatro garante coisa alguma. Então,
de nada serve adotar maneiras dolorosas, ou afetar um grande sofrimento. Um
escritor pode esbanjar alegria, por que não? É Flaubert, ainda, quem anota em
sua Correspondência, em 1853: "Para dizer em estilo
próprio feche a porta, ou ele tinha vontade de dormir é
preciso mais gênio do que fazer todos os cursos de literatura do mundo".
Estilo próprio não diz respeito à moda, nem se refere à última palavra.
Também não trata do "bem feito", ou do "bem acabado". Não
é uma grife, que se negocia no mercado.
Muitos escritores acreditam, ainda, que a
literatura é um grande monstro que avança, compenetrado, sempre em linha reta -
rumo a quê? Caberia ao escritor, nesse caso, situar-se no longo fio da história
da literatura, conhecer na ponta da língua todos os bons e maus antecedentes,
criticá-los, "superá-los" (como uma criança "supera" a fase
oral e chega à genital) para, assim, sabendo exatamente onde pisa, dar o grande
salto à frente. São os fiéis da idéia de ruptura, que atormenta os escritores
desde o modernismo. Ensinar literatura, nesse caso, seria ensinar história da
literatura e, também, adestrar os jovens escritores no pensamento crítico, de
modo que, sabendo onde pisam, e decidindo onde não querem pisar, possam - como
bons estrategistas - dar o passo preciso na direção correta, a caminho, sempre e
sempre, da última novidade. Não é algo parecido que se ouve, por exemplo, no
mundo da publicidade? Tal escova de dente foi ultrapassada por outra, que contém
cerdas mais flexíveis e resistentes. Tal televisão promete imagem mais nítida
que as outras. O último modelo de refrigerador...
"Não se deve confundir a mera mudança com o
progresso", adverte o argentino Ernesto Sabato em um belo ensaio como Heterodoxia.
"Se é fácil provar que uma locomotiva é superior a uma diligência, não
é tão fácil provar que nossa pintura é superior à do Renascimento", ele
diz. E diz mais: "A crença no progresso geral consiste em supor que um
senhor que viaja em um ônibus é espiritualmente melhor do que um grego que se
desloca em um trirreme (embarcação à vela da Grécia Antiga). O que é bastante
duvidoso". Não, não basta conhecer e criticar a história da literatura
para se tornar um escritor. Isso faz, no máximo, um competente professor de
literatura. O que, com todo o respeito ao professor de literatura, é muito
diferente.
Mas, então, o que falta? Na verdade, a matéria da
literatura é essa própria falta. É um enigma, cuja decifração jamais se
conclui. "Todos os romances de todos os tempos se voltam para o enigma do
Eu", diz, a propósito, o escritor checo Milan Kundera. "Desde que você
cria um ser imaginário, um personagem, fica automaticamente confrontado com a
questão: o que é o Eu?" A formulação de Kundera aponta para um aspecto
perturbador da literatura: ela não é feita de respostas (de fórmulas, métodos,
soluções), mas de perguntas (de dúvidas, inquietações, enigmas). E perguntas
perturbadoras, como as formuladas pelos filósofos antigos. O máximo que se pode
fazer numa oficina literária, se não se quer ser só distrair, ou iludir, é
estimular a formulação de perguntas. Fazer perguntas e suportá-las, resistindo
à tentação de responder facilmente para, em vez disso, manter-se aferrado -
como Nietzsche a seu cavalo agonizante - ao que não admite uma solução.
Aqui podemos lembrar o que Herman Hesse, o grande
escritor alemão hoje tão esquecido, diz ao "jovem problemático" que
lhe escreveu uma carta no ano de 1932, pedindo uma resposta do mestre a suas
inquietações. "Sim, diga sim a si mesmo, a suas particularidades, a seus
sentimentos, a seu destino. Não há outro caminho", limitou-se a responder o
escritor. O que lhe sugere Hesse? Que ninguém livra ninguém de si mesmo. É com
isso, com esse "não livrar", com esse fracasso, que a literatura
trabalha. "Ignoro para onde isso conduz", admite Herman Hesse, "mas
leva à vida, à realidade, ao arrebatamento e ao necessário". Sugere ao
rapaz problemático, sobretudo, que não se iluda com a possibilidade de uma
solução. "Sempre que dedico minha fé a uma boa fórmula, ela logo me
parece duvidosa e despropositada e logo passo a buscar novos apoios e novas
fórmulas", admite. Essa matéria inquieta, que não se deixa fixar e que
não se esgota em um nome é, por fim, a matéria da literatura.
O risco de ser um copista
Aferrar-se à própria voz - e, por tabela, à
própria sensibilidade, à própria dor, ao próprio olhar - é, sempre, muito
difícil. É isso que, no entender do filósofo alemão Arthur Schopenhauer,
separa o "pensador de força própria", aquele que pensa por si, do
"filósofo livresco", que se limita a pensar idéias alheias. A
lembrança de Schopenhauer, enquanto revisito idéias a respeito da arte de
escrever, idéias que me marcaram e abalaram muito, não deixa de me meter medo.
Ninguém está livre do risco de se tornar um simples copista. Schopenhauer
(1788-1860) defende suas idéias num pequeno e precioso ensaio, Pensar por si
mesmo, que está em seu Parerga und Paralipomena (algo como Acessórios
e remanescentes), livro de 1851. Cinco capítulos deste livro, todos
dedicados à literatura, aparecem na seleção A arte de escrever,
publicada pela LP&M, sob a coordenação de Pedro Süssekind.
Em Pensar por si mesmo, Schopenhauer faz
uma forte advertência a respeito dos perigos da leitura. "Ler significa
pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria", ele adverte.
"Nada é mais prejudicial ao pensamento próprio." É claro,
Schopenhauer foi, ele também, um grande leitor; não se trata de uma campanha nem
contra a leitura, nem contra a literatura. Mas foi, mais ainda, um leitor sábio.
Em vez de ler para "relatar o que este disse, o que aquele considerou, o que
um terceiro objetou e assim por diante", como fazem os "filósofos
livrescos", o autor de O mundo como vontade e representação
lia para buscar confirmações, variações, sínteses em torno daquilo que ousara
pensar por si. Ele explica a diferença: "Quem pensa por si mesmo só chega a
conhecer as autoridades que comprovam suas opiniões caso elas sirvam apenas para
fortalecer seu pensamento próprio", diz. "Enquanto o filósofo que tira
suas idéias dos livros tem essas autoridades como ponto de partida."
A leitura, diz Schopenhauer, deve ser um ponto de
chegada em que o pensador testa o que já trazia dentro de si. E não uma
atividade erudita, como é para tantos filósofos letrados - e tantos escritores!
- que escrevem para citar, para atestar suas leituras, para agradar e, sobretudo,
para obter aprovação. Estratégia na qual a voz própria tende só a emudecer.
Para chegar a si, é preciso ter paciência, desistir da onipotência e esperar
que algo o atinja. Diz ainda o filósofo: "O pensamento sobre determinado
objeto precisa aparecer por si mesmo, por meio de um encontro feliz e harmonioso
da ocasião exterior com a disposição e o estímulo internos". A conexão
entre o que se lê e aquele que lê define a literatura. "É justamente esse
encontro que nunca chegará a acontecer no caso daqueles filósofos
livrescos."
Aqui cabe voltar a uma bela idéia de Ernesto
Sabato: a de que o diálogo - entre um escritor e seu crítico, entre dois
escritores, entre um leitor e um livro - não se parece nem com a catequese, nem
com a conversão. "Diálogo, sim. Mas não sofístico, nem catequístico, nos
quais sempre sai ganhando o autor do libreto", escreve. "Diálogo livre,
herético, mal-educado." Estão dadas as bases do "quase nada" que
se transmite em uma oficina literária. Em vez de ensinar regras, desmontá-las.
Em vez de aplicar a norma, estimular a experiência da heresia que é a voz
particular. No lugar de uma educação literária, melhor pensar em uma
deseducação, em que o sujeito se dispa de ilusões, afaste-se dos automatismos,
e desista de vez do desejo de brilhar e de agradar. Para, só então, sob sua
conta e risco, chegar a si mesmo.
Volta-se inevitavelmente a Nietzsche: "Toda
conquista, todo passo adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de
valor, de dureza contra si mesmo, de própria depuração". O chegar a si, à
própria voz, não é um embelezamento, ou uma performance, muito menos o fruto
dourado de um adestramento. É um descascar-se, um escavar como o do escultor que
corta e corta a sua pedra, até que, lá de dentro, com as mãos sangrando, tira
sua arte. Mas não existem garantias - pois não estamos no reino pragmático das
transações bancárias e dos acordos comerciais. Dessa experiência pode, até,
sair um escritor. Nada garante que isso acontecerá. Mas, se não sair, ao menos
sairão homens um pouco mais apegados a si mesmos, um pouco mais corajosos.
Fonte: Revista
Rascunho.
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