"Rosaura, a
Enjeitada"
O que diz o crítico
Basílio de
Magalhães
Autor se autoretratou neste romance
"Em Rosaura, a Enjeitada" - o último romance publicada em vida de
Bernardo Guimarães - fiz um interessante descobrimento que escapou a todos
quantos se ocuparam da genial personalidade do escritor mineiro. Dos mais antigos
e competentes críticos patrícios, Silvio Romero e José Veríssimo, nem um nem
outro ligaram a este romance a devida importância. Chego até a crer que não o
leram.
Dos novos, só lhe faz referência
Dilermando Cruz, limitando-se a rasgados elogios, numa breve apreciação geral e
vaga.
Entretanto, encerra este livro uma
particularidade preciosa, que o extrema de todos os outros, já por mim
perfunctoriamente analisados: é que nele inseriu o escritor ouropretano notas
curiosas sobre si mesmo, bem como sobre dois dos seus mais diletos companheiros do
curso acadêmico e de glória na poesia brasileira.
Quem quer que conheça as biografias
da tríade famosa, facilmente verá com que fidelidade Bernardo se autoretratou
nas páginas de "Rosaura", onde figura de Belmiro, mal disfarçando
Aureliano Lessa e não ocultando Álvares de Azevedo, senão a primeira parte
desse cognome.
Além de pôr em evidência as suas
prendas de hábil tocador de violão e exímio cantador de modinhas sentimentais
ou humorísticas, diz ele de si próprio, no capítulo V, que era "alto,
corado, de cabelos pretos... e cara de lobisomem (atribuindo, todavia, esta
última observação ao autor da Noite na Taverna); posto que não disforme, não
era bonito; como estudante pobre, que era, não podia trajar-se com a elegância e
primor de seus companheiros; de mais a mais, era sumamente ingênuo e acanhado, e
muito pouco afeito a esses jogos de espírito, a esses galanteios delicados e
lisonjeiras frivolidades, que tanto agradam às moças...". E conclui
asseverando que também era um "temperamento sanguíneo, ardente e
impressionável, abandonando a alma às emoções do momento".
De Álvares Azevedo assim fala nos
capítulos I e VI: "Era um belo mocinho moreno, de pequena estatura, de
fisionomia radiante e prazenteira, a fronte larga, onde fulgurava o gênio, como
na de Aurélio" (Aureliano Lessa); tinha, porém, "a imaginação sempre
sinistra e propensa ao lívido e ao fúnebre..."
É preciso ler a maior parte do
começo do romance, para que se veja com que exatidão ele retratou os seus dois
inseparáveis amigos, com um dos quais (Álvaro de Azevedo) entrou em competição
amorosa, por causa da tentadora Adelaide.
Parece-me que Bernardo esboçou
"Rosaura, a enjeitada" ainda no seu tempo de estudante da faculdade
paulista, compondo e retocando mais tarde a obra, quando resolveu entregá-la ao
prelos. Percebe-se claramente nela que votava maior afeição a Aureliano Lessa do
que a Álvares Azevedo. Lobrigou-o sem esforço Sílvio Romero ("História da
Literatura Brasileira"), quando, ao tratar do poeta diamantinense, assim se
exprimiu: "Bernardo e Aureliano eram mineiros e amavam-se extremamente. A
estima entre ambos era mais profunda do que entre qualquer deles e Azevedo.
Razões psicológicas havia para isto: os dois mineiros eram plácidos, avessos a
essa turbulência de idéias, adequada à índole do moço autor dos
Boêmios". O depoimento de Bernardo Guimarães, nas páginas de Rosaura,
confirma esse juízo.
À "Rosaura" e ao
"Seminarista" é que deve o escritor mineiro a título de precursor da
escola realista no Brasil.
Não são apenas os protagonistas
daquele romance que se acham bem focalizados, ao seu aspecto moral, no meio
físico, e ambiente social. As próprias personagens secundárias são desenhadas
com um admirável poder de sugestão. Além dos estudantes, cujo caráter se
inspirava, ao tempo, no deliqüescente exemplo, teórico e prático, de Byron,
Musset e Espronceda, conglobou o autor de "Rosaura" as virtudes e
vícios do orgulho paulista no major Damasio e em Conrado as energias fecundas de
um descendente dos bandeirantes, subindo, mercê do estímulo pujante da paixão
por Adelaide, da miséria à riqueza.
A ampla e rigorosa descrição da
Paulicéia, qual era em meados do século findo, merece lida ainda hoje, para
confronto com a radical transformação que lhe imprimiu o seu vertiginoso
progresso. Às margens do Tietê, do Tamanduateí e do Anhangabaú, não mais
veria Bernardo Guimarães, se ressuscitasse e ali voltasse a pôr os pés,
"caipiras papudas", mas com incontável cardume de lindas
italo-paulistas, exibindo gentileza e perfeições plásticas, que desafiam os
pincéis dos modernos Buonarottis e Da Vincis... Nem se lhe antolhariam mais ali
as taípas, que ele conceituosamente qualificou de abomináveis relíquias da
estúpida e grosseira tiranua dos nossos antepassados..."
Encontraria, porém, como triste
sobrevivência de eras ascéticas, já condenadas desde muito tempo por quantos
põem a alma e o coração acima de crenças irracionais, "o pitoresco
conventinho de Nossa Senhora da Luz, ao qual atira esta justa e vibrante
abjurgatória: "... resto de um passado odioso, fantasma hediondo do
claustro, em que o fanatismo sepultava em vida, sem dó nem piedade, as mais
mimosas flores da juventude e da beleza, flores que Deus criou para os prazeres e
os carinhos do amor, e não para as estúpidas macerações do monarquismo; para
se espanejarem ao sol da primavera, ao sopro livre das virações do céu, e não
para murcharem tristemente na sombra lúgubre de perpétua reclusão..."
Há neste livro agora a delineação
de costumes da época, o registro de vocábulos e expressões, quer peculiares da
terra de Amador Bueno, que já acidadanados no Brasil. Assim, os tratamentos
"nhô" e "mecê" e a interjeição "ché!", ainda
vivos no idioma familiar e vulgar de S. Paulo, e os modismos "capira",
"estrepolia", "paréba" (por peréba), "pesticar de
música", "engulir araras", "futrica", "grosar na
pele" (falar mal de alguém), "chuchas caladas", "frango
nuélo", para só fazer cita dos mais importantes.
Nas comparações, ainda recorrer aos
elementos nacionais: "tagarelas, com um bando de maitacás"; o Tietê
correndo como jibóia preguiçosa"; "teimoso como a anta disparada pelo
mato, esbarrando furiosamente em quanto obstáculo encontra e levando tudo de
vencida"; e, finalmente, "paixão antiga é como gameleira: por mais que
se corte, sempre fica uma raizinha, que brota de novo" (outra linda e
expressiva imagem!).
No capítulo IV, epigrafado
"Entre as jaboticabeiras", eis como Bernardo Guimarães parodiou os dois
conhecidos versos de Malherbe sobre a efêmera existência das rosas:
Jaboticaba, ela viveu somente
Como a jaboticaba;
Foi comida e deixou só a semente:
Assim tudo se acaba"
Em "Rosaura", além dos
traços gerais de "Isaura", há uma repetição do
"Garimpeiro", na utilização do Sincorá, onde então se exploravam
diamantes. Bernardo Guimarães tinha, como escritor, suas muletas e bordões.
Deixo de indigitá-los, para não alongar demasiadamente esta rápida apreciação
das suas obras. Não se importava também com a reiteração de imagens, pois a
comparação do Tietê com a jibóia é a mesma do Paranaíba, no "Ermitão
do Muquém".
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