Escritor recomenda
romances clássicos aos novos leitores
Por Moacyr Scliar
Acontece
da maneira mais inesperada. Você está num bar, conversando com amigos, um jantar
com familiares, no vestiário do clube, e de repente pessoas começam a falar
sobre os livros que já leram. E aí você se dá conta de que é como se morasse
em um outro planeta: você não sabe absolutamente nada do que eles estão
falando. Isso, é lógico, lhe deixa muito chateado. Você, como milhões ou bilhões
de outros, criou-se acreditando que a palavra escrita é coisa fundamental. E, de
fato, é. Para começar, muitas religiões têm em livros sagrados o seu
referencial mais importante: a Torá para o judaísmo, o Novo Testamento para o
cristianismo, o Corão para o islamismo. O livro sagrado é, para seus leitores,
uma fonte de inspiração, um guia ético.
Mas a gente lê também por
outras razões. Sobretudo quando se trata de ficção. Lemos porque gostamos de
histórias: é algo embutido em nosso genoma. Todo pai ou toda mãe sabe que as
crianças protestam quando, à noite, são mandadas para a cama; e todo pai ou
toda mãe sabe que há uma maneira irresistível de convencer o filho ou a filha a
fazê-lo: contando ou lendo uma história.
Ouvir histórias ajuda a criança
a vencer a ansiedade inevitável que surge quando ela abandona o convívio da família
e penetra no misterioso mundo dos sonhos (ou dos pesadelos). É a mesma ansiedade
que explica também a origem dos mitos, aquelas narrativas fantasiosas que, nas
culturas ditas primitivas, procuravam dar conta dos porquês dos fenômenos da
natureza, do surgimento do universo. Uma ansiedade que
explica ainda as lendas que passam de geração em geração e que serviram
de base para as grandes obras. É delas, as grandes obras, que queremos falar.
Mas, por onde devemos começar?
O
melhor é começar... do começo. Isto é, dos clássicos.
Entre os grandes clássicos da
literatura universal, é imprescindível citar Odisséia, de
Homero, poeta grego sobre o qual não sabemos muito e que é também o
presumível autor de Ilíada. Esses dois poemas épicos foram escritos por volta
de 750 a.C. e falam-nos da Guerra de Tróia, travada entre gregos e troianos. Tudo
começa, segundo Homero, quando Helena, a bela esposa do rei grego Menelau, é seqüestrada
e levada para Tróia por Páris, filho de Príamo, rei troiano. Menelau, como é fácil
imaginar, ficou furioso e mobilizou um exército, pedindo auxílio a seu irmão, Agamenon, e aos
amigos Aquiles e Ulisses. Muitas aventuras acontecerão a partir daí - o episódio
do cavalo de Tróia é um dos mais famosos. Enquanto Ilíada fala sobretudo da
guerra, de Aquiles e do herói troiano Heitor, Odisséia descreve as aventuras de
Ulisses voltando para casa. “Um clássico é um livro que nunca terminou de
dizer aquilo que tinha para dizer”, dizia Italo Calvino.
Dissemos que não sabemos muito
sobre Homero, o autor de Ilíada e de Odisséia. É verdade. Homero é uma figura
um tanto quanto misteriosa. É que, no passado, o autor de uma história não
tinha tanta importância assim. À medida que surgiu a modernidade, isso mudou
radicalmente. Primeiro porque, na modernidade, houve uma afirmação do indivíduo
- a palavra “eu” passou a ser importante. Depois porque, com a invenção da
imprensa, o livro virou um produto vendável. E é aí que surgiu o autor. Os
temas já não eram apenas a religião ou as aventuras épicas, descritas como se
fossem verdadeiras.
Com a modernidade, admitiu-se
também a ficção. E o grande gênero para a ficção será o romance, escrito
nas línguas derivadas do latim, as chamadas línguas “românicas”, como o
francês, o italiano e o português. Daí vem o nome “romance”.
O romance tem origem em vários gêneros
da Idade Média, entre eles as histórias de cavalaria, protagonizadas por aquelas
figuras de armadura, escudo e lança, que, com o advento dos tempos modernos,
tornaram-se figuras caricaturais.
O primeiro grande romance da
modernidade (o livro completou quatrocentos anos em 2005) é Dom Quixote, do
espanhol Miguel de Cervantes. Livro concebido apenas como uma sátira das novelas
de cavalaria, mas que se tornou uma obra-prima da literatura universal.
Cervantes, a propósito, teve uma
vida cheia de aventuras. Nascido em uma Espanha que era a nação mais rica e
poderosa da Europa, vinha de uma família nobre, mas empobrecida: o pai fora preso
por dívidas. Cervantes entrou no exército e participou na batalha de Lepanto
contra os turcos, onde foi ferido na perna e ficou com a mão esquerda paralisada.
Depois, foi capturado por piratas turcos e só libertado após cinco anos de
cativeiro. Apesar de todas essas desventuras, Dom Quixote é um livro cômico; mas
é também um retrato da condição humana, tanto que “quixotesco” tornou-se
um adjetivo incorporado ao nosso vocabulário como sinônimo de “sonhador”,
aquele que é “generosamente impulsivo, romântico, nobre, mas um pouco
desligado da realidade”, segundo nos explica o Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa.
Dom Quixote é um anti-herói,
enfrentando os gigantes imaginários que vê nos moinhos de vento. Já Robinson
Crusoé (1719), do inglês Daniel Defoe, marinheiro náufrago, encontra perigos
reais e mostra qual é a primeira regra da modernidade: “Vire-se”. Aliás,
viagens marítimas seriam o ponto de partida para muitos livros, inclusive satíricos,
como é o caso de As viagens de Gulliver (1726), do irlandês Jonathan Swift, que
conta as fantásticas viagens do médico naval Lemuel Gulliver. Na primeira
viagem, a mais famosa delas, nosso herói naufraga em Lilliput, uma terra cujos
habitantes são bem pequeninos, o que faz de Gulliver um gigante e faria do termo
“liliputiano” mais um adjetivo que a literatura incorporaria ao vocabulário
universal como sinônimo de alguém ou algo extremamente pequeno” e, no sentido
figurado, de quem tem “falta de grandeza”, isto é, de quem é mesquinho.
Robinson Crusoé e Viagens de
Gulliver não são livros para crianças?
Curiosamente, alguns dos maiores
clássicos da literatura universal, por causa das muitas adaptações que foram
feitas ao longo dos anos, são vistos hoje, por muita gente, como livros infantis.
Mas, no original, atrás das narrativas eletrizantes, esses livros contêm
contundentes reflexões políticas e filosóficas.
Aos poucos, o romance em geral
foi se transformando em um gênero literário extremamente popular. Numa época em
que a psicologia e as ciências sociais ainda estavam engatinhando, a literatura
ensinava as pessoas a viver. Exemplo clássico são Os anos de aprendizagem de
Wilhelm Meister (1796), o chamado “romance de formação” do alemão Johann
Wolfgang von Goethe, que acompanha um jovem no seu aprendizado da vida. Mas o
grande século do romance será mesmo o XIX. E aí temos, em inglês, uma espécie
de equivalente de Wilhelm Meister: Oliver Twist (1837), que o inglês Charles
Dickens publicou quando tinha apenas 25 anos.
Oliver Twist conta a história do
garoto Oliver, que, recolhido a um asilo de órfãos, cansado da tirania do
administrador do lugar, resolve fugir, mas descobre que a vida nas ruas de Londres
também não é nenhum piquenique. Para sobreviver, tem até de se juntar a uma
gangue infantil liderada pelo velho Fagin. Dickens conhecia bem essa situação.
De família pobre, jornalista de profissão, escrevera inflamados artigos em
jornais denunciando a miséria na Inglaterra. Oliver Twist foi publicado na forma
de folhetim, isto é, em capítulos diários no jornal, aguardados pelos leitores
da época com tanta ansiedade quanto hoje os telespectadores aguardam os próximos
capítulos de uma novela de TV.
Vinte anos depois de Oliver
Twist, surge na França uma obra-prima do gênero: Madame Bovary (1857), de
Gustave Flaubert, que conta a história de Emma Bovary, mulher de um patético médico
do interior francês, Charles Bovary. Cansada do tedioso casamento, ela procura
emoção em aventuras extraconjugais, o que termina em desastre. Flaubert era um
estilista perfeito e um grande conhecedor da alma feminina. Quando lhe perguntavam
quem havia inspirado a personagem, respondia: “Madame Bovary sou eu”.
A essa altura, o romance era tão
popular que os leitores (e escritores) já não se contentavam com um só volume:
surgiu então o roman-fleuve (“romance-rio”), seqüência de obras que se
desenvolvem em um longo espaço de tempo e que abarcam várias
tramas, formando um verdadeiro painel da sociedade da época. O melhor
exemplo de todos é A comédia humana, do francês Honoré de Balzac, composta por
17 volumes, incluindo mais de 80 obras, entre romances e contos.
Um dos romances mais famosos de A
comédia humana, de Balzac, é A mulher de trinta anos. Daí vem o termo
“balzaquiana”, adjetivo utilizado no mundo todo, até por quem nunca ouviu
falar de Balzac.
Há outros clássicos fora da
Europa ocidental?
De fato, até aqui, só falamos
em autores da Europa ocidental. Mas na Europa oriental, na Rússia sobretudo, também
surgiram grandes romancistas, a começar por Leon Tolstoi.
De família nobre, Tolstoi foi
militar, participou em combates, mas depois se tornou um pacifista, descrevendo em
várias obras os horrores da guerra. O exemplo maior é
Guerra e paz (1865), um épico
com quase seiscentos personagens, históricos ou ficcionais. Tendo como cenário a
guerra que colocou a França de Napoleão contra outra nações européias,
incluindo a Rússia, a narrativa move-se do campo de batalha para a vida familiar
dos personagens. Anna Karenina (1877), também de Tolstoi, conta a história de
uma mulher aprisionada por convenções sociais.
Outro grande romancista russo foi
Fiodor Dostoievski, autor de Crime e castigo (1866): Raskolnikov, estudante pobre,
decide resolver seus aflitivos problemas de dinheiro matando a velha e repelente
dona de uma casa de penhores, que ele vê como uma parasita desprezível e descartável.
O castigo começa com remorso, mas vai bem mais além, e o livro acaba resultando
em uma profunda reflexão sobre dilemas éticos.
Outros livros de Dostoievski:
Recordação da casa dos mortos, Memórias do subsolo, Os possessos, Os irmãos
Karamazov, O idiota.
Enquanto isso, do outro lado do
oceano, um país começava a mostrar seu poder. Poder econômico, poder militar,
mas também poder cultural: os Estados Unidos. Um país jovem, com muita gente e
com um grande escritor para o público igualmente jovem: Samuel Langhorne Clemens,
mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain, um sujeito que fez de tudo na vida
para sobreviver. Depois de abandonar a escola, foi tipógrafo, piloto de barcos
(“Mark Twain” era uma expressão para indicar a profundidade de um rio),
soldado, mineiro, jornalista. Publicou dois livros que o tornaram rico e famoso:
As aventuras de Tom Sawyer (1876) e sua continuação, As aventuras de Huckleberry
Finn (1884). Tom e Huck fazem parte de uma galeria de personagens que Mark Twain
conheceu nas suas andanças. Os dois livros comovem-nos pela autenticidade e
divertem-nos pelas pitorescas aventuras.
Dez clássicos indispensáveis:
Ilíada – Homero, As aventuras de Tom Sawyer - Mark Twain, As ilusões perdidas
– Balzac, As viagens de Gulliver - Jonathan Swift, Crime e castigo –
Dostoievski, Dom Quixote - Miguel de Cervantes, Guerra e paz - Tolstoi, Madame
Bovary – Flaubert, Oliver Twist - Charles Dickens, Os anos de aprendizagem de
Wilhelm Meister - Goethe
E quais os autores fundamentais
do século XX?
A transição do século XIX para
o XX se fez sob o signo do progresso, da renovação. As ferrovias se expandem,
surgem o automóvel, o motor a diesel e o avião; o telégrafo e o telefone; o
cinema e a psicanálise. Novas correntes de pensamento, novas formas de expressão
artística e cultural emergiam. Nas artes, é a época do impressionismo, do
expressionismo e do cubismo. Mas é também uma época de conflito: o novo século
verá, já em seu início, a eclosão da Primeira Guerra Mundial e da Revolução
Russa, de 1917.
Conflito e renovação é o binômio
que também vigorará na literatura. Merecem aqui destaque especial, inicialmente,
três renovadores do romance universal. O primeiro deles é o francês Marcel
Proust, autor de sete romances, que, tendo um só narrador, formam um conjunto: Em
busca do tempo perdido (1913-1927). Proust traça um quadro da sociedade francesa
em sua época, ao mesmo tempo em que reflete sobre a memória e o efeito do tempo
na condição humana.
Os sete volumes de Em busca do
tempo perdido: O caminho de Swann, À sombra das moças em flor, O caminho de
Guermantes, Sodoma e Gomorra, A prisioneira, A fugitiva, O tempo recuperado.
O segundo renovador é o irlandês
James Joyce, que em Ulisses (publicado em 1922, mesmo ano da Semana de Arte
Moderna de São Paulo, que revolucionou a cultura brasileira) faz uma espécie de
paródia de Odisséia de Homero, da qual falamos antes - os escritores sempre se
influenciam mutuamente. É um livrão, um tijolaço, mas toda a ação se passa em
um único dia, 16 de junho de 1904. Ao longo desse dia, Joyce acompanhará a
trajetória dos dois personagens, Leopold Bloom e Stephen Dedalus, em vários
lugares de Dublin, capital da Irlanda. Ao fazê-lo, cria e combina palavras, muda
a forma de narrativa e no final introduz o fluxo de consciência, o monólogo
interior de uma terceira personagem, Molly Bloom, antes de adormecer. É um livro
tão inovador que, apesar de sempre citado, foram poucos os que realmente
conseguiram lê-lo até o fim.
O terceiro renovador é o tcheco
Franz Kafka, que era advogado de uma companhia semi-estatal de seguros, por isso
bastante familiarizado com a burocracia que viria a se tornar o pesadelo de nosso
tempo. Em O processo, Kafka narra a história de Josef K., que está sendo
processado. Não se sabe quem é o acusador, não se sabe de que o réu é
acusado, não se sabe nem mesmo onde fica o tribunal. Mas, no final, o coitado é
executado assim mesmo.
Franz Kafka é autor ainda de A
metamorfose, que conta a história de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que, numa
certa manhã, acorda de um sono intranqüilo e se vê
transformado em um inseto monstruoso. O livro é, na verdade, uma metáfora
para denunciar os mecanismos de alienação e de dominação da mente humana. Do
nome de Franz Kafka vem o adjetivo “kafkiano”, que, segundo o Dicionário
Houaiss, “evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um
contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade”.
Aliás, a violência grotesca,
sem sentido, passará a ser tema recorrente da literatura no século XX. Exemplo
disso é O coração das trevas (1902), de Joseph Conrad. O autor viveu na
Inglaterra, mas não era inglês, era polonês (seu nome de batismo era Jozef
Teodor Konrad Korzeniowski). Órfão, muito cedo deixou a Polônia e acabou por
radicar-se na Inglaterra. Apaixonado pelo mar, engajou-se na marinha comercial
britânica e chegou a comandar seu próprio navio. Viajou pelo mundo todo e subiu
o rio Congo, na África, jornada que inspirou O coração das trevas. A obra gira
em torno a uma figura trágica, o demente Kurtz, que, em meio à selva africana,
vivendo numa cabana decorada com crânios humanos, comanda os nativos como se
fosse um deus, uma versão enlouquecida do colonialismo, então no auge.
O livro O coração nas trevas,
de Joseph Conrad, inspirou Apocalipse Now, filme de Francis Ford Coppola, que
transferiu a narrativa original do Congo para as selvas do Vietnã.
Mas, além de mergulhar no coração
das trevas, o gênero romance continuou fiel à sua premissa de mergulhar no coração
humano. É o caso de A montanha mágica (1924), do alemão Thomas Mann. Visitando
um primo num sanatório para tuberculosos, Hans Castorp contrai a doença. Hoje
provavelmente ele seria tratado e curado, mas naquela época tuberculose
significava uma longa internação, durante a qual Castorp e outros personagens
mantêm um permanente debate de idéias filosóficas contraditórias.
Já Doutor Fausto (1947), do
mesmo Thomas Mann, é uma espécie de biografia maginária do compositor Adrian
Leverkühn, tal como vista pelo amigo Serenus Zeitblom. O livro é, e novo, uma
profunda reflexão, desta vez sobre a arte.
Outro escritor alemão importante
no período é Robert Musil. O jovem Törless (1906) tem como cenário uma
elitista academia militar e os conflitos entre os jovens alunos. Já em O homem
sem qualidades (1930), Musil apresenta-nos o ex-oficial Ulrich, homem de
grandes potencialidades intelectuais, mas incapaz de aplicá-las à vida
real: uma reflexão sobre a crise social e espiritual do século.
Em matéria de decadência de
elites, O leopardo (1958), do italiano Tomaso di Lampedusa, com sua memorável
frase (“É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”), é
outra obra fundamental.
O clima de desesperança que
invadiu a Europa - e que se agravou com a Segunda
Guerra Mundial - foi retratado por dois grandes escritores franceses. O
primeiro é Jean-Paul Sartre, em A idade da razão (1945). O outro, Albert Camus
(na realidade nascido na Argélia, então colônia francesa na África), criador
de dois personagens paradigmáticos: Meursault, de O estrangeiro (1942), que chega
ao crime numa tentativa desesperada de vencer a alienação; e o Dr. Rieux, de A
peste (1947), que, ao contrário, esforça-se por salvar as vítimas de uma
epidemia: “Nós nos recusamos a desesperar da humanidade. Mesmo renunciando à
irracional ambição de recuperar os seres humanos, ainda assim queremos
servi-los.”
As obras de Jean-Paul Sartre e de
Albert Camus seguem os pressupostos do existencialismo, escola filosófica surgida
em meados do século XX, com o pensador dinamarquês Kierkegaard, e que atingiu
seu apogeu nos anos 50 e 60. Para os existencialistas, “o homem não foi
planejado por alguém para uma finalidade; ao contrário, o homem se faz em sua própria
existência”.
Boa parte da ficção do século
XX é obra de militantes políticos. Foi o caso do russo Isaac Babel. Judeu,
membro, portanto, de um grupo perseguido, Babel viu na Revolução Russa, de 1917,
a esperança de um futuro melhor para sua gente. Combatente de primeira hora,
relatou suas experiências nos contos de Cavalaria vermelha (1926). Apesar disso,
acabou morrendo num campo de concentração stalinista.
O inglês Eric Blair, que
escreveu sob o pseudônimo de George Orwell, também foi militante comunista e
igualmente passou por uma amarga desilusão, da qual dão testemunho duas obras tão
fantasiosas quanto satíricas. A primeira é A revolução dos bichos (1945), que,
publicada no início da Guerra Fria entre o Ocidente e os países comunistas, fez
enorme sucesso. A história ocorre na fazenda do cruel Mr. Jones. Os animais se
revoltam, tomam o poder, mas o resultado é uma tirania ainda pior: uma alusão ao
que aconteceu na época de Stalin. A segunda, publicada em 1949, tem como título
1984. Nesse ano, segundo Orwell, o futuro já teria chegado sob a forma de
distopia, ou seja, uma utopia transformada em pesadelo: um mundo em que o Estado,
governado por um ditador, o Big Brother (sim, daí vem o título do programa de
TV), controla todas as pessoas. Frases como “Todos são iguais, mas alguns são
mais iguais” ajudaram a transformar Orwell num autor imensamente popular, num
mundo em que o autoritarismo, sob variadas formas, ainda se faz presente.
O comunismo traduziu-se em uma
revolução política, mas revoluções culturais também não faltaram no século
XX. Uma delas foi a psicanálise, tema de A consciência de Zeno (1923), cujo
autor é Italo Svevo, pseudônimo
do triestino Aron Hector Schmitz. No romance, acompanhamos o frustrado
namoro de Zeno com a psicanálise, “tola ilusão, um truque capaz de comover
apenas solteironas histéricas”, que no entanto o motiva a empreender um
doloroso processo de autodescoberta, não no divã, mas no texto. A propósito, o
tema da psicanálise seria retomado por muitos outros escritores, entre eles o
norte-americano Philip Roth em O complexo de Portnoy (1969), no qual o
protagonista queixa-se ao psicanalista de sua dominadora mãe judia.
Dez clássicos do século XX:
1984 - George Orwell, A idade da razão
- Jean-Paul Sartre, A montanha mágica
- Thomas Mann, Em busca do tempo
perdido - Marcel Proust, O complexo
de Portnoy - Philip Roth, O coração
das trevas - Joseph Conrad, O estrangeiro - Albert Camus,
O homem sem qualidades - Robert Musil,
O processo - Franz Kafka, Ulisses - James Joyce
E as mulheres?
Tem razão. A esta altura de
nosso muito rápido passeio pela literatura, você deve estar se perguntando se as
mulheres só entram na literatura como personagens tipo Madame Bovary, ou tipo mãe
do Portnoy, ou ainda a ninfeta que em Lolita (1958), do russo naturalizado
americano Vladimir Nabokov, atormenta um sisudo professor.
No passado, de fato, mulheres
escreviam pouco - aliás, as mulheres faziam pouca coisa além de engravidar,
cuidar das crianças, da casa e agüentar os maridos. A presença da mulher na
literatura tornou-se, assim, um sinal de afirmação. E de talento. O melhor
exemplo é a inglesa Virginia Woolf, que se consagrou com obras como Mrs. Dalloway
(1925), Rumo ao farol (1927), Orlando (1928) e As ondas (1931). Woolf tornou-se
expoente da literatura feminina. Rumo ao farol, um de seus melhores livros,
apresenta-nos a família Ramsay: a senhora Ramsay, seus oito filhos e o culto,
autoritário e ausente marido. Ela é uma mulher muito preocupada em
organizar a vida de todos que estão a seu redor, e é nesse cenário que surge a
proposta de uma viagem até a pequena ilha em que está o farol. O marido pondera
que a jornada é perigosa. A viagem é cancelada, o que causa frustração na família.
Finalmente, o objetivo é atingido, mas sem a sra. Ramsay e três dos filhos, que
morreram. Uma trama minimalista, na qual o simbolismo é importante. Apesar de
tudo, diz-nos Virginia Woolf, há uma luz - a luz do farol - brilhando em meio às
trevas.
Muitos livros de Virginia Woolf
foram adaptados para o cinema, mas foi a sua atormentada existência que inspirou
uma obra-prima da sétima arte, As horas, dirigido por Stephen Daldry, com Nicole
Kidman no papel da escritora.
O que significa “realismo mágico”?
O nosso continente, que durante
muito tempo foi reduto de pobreza e atraso, foi também o berço de um original
movimento literário. Tudo começou quanto o escritor cubano Alejo Carpentier
publicou o romance O reino deste mundo (1949), em cujo prefácio discutia o
chamado “real maravilhoso” (duas expressões equivalentes surgiriam depois,
“realismo mágico” e “realismo fantástico”), conceito que ampliou num
artigo de 1964, em que diz: “A América é o único continente onde diferentes
eras coexistem”, isto é, onde os avanços tecnológicos da modernidade convivem
com o primitivo. Essa situação configura o choque cultural do qual nasce a
fantasia que alimentará a nova vertente literária latinoamericana.
Em termos de literatura, é
claro, o fantasioso não era novidade. Afinal, a fantasia é a matéria-prima da
ficção. Mas o realismo mágico latino-americano tem características próprias.
Nasceu do quadro político, econômico e social vigente na América Latina dos
anos 60 e 70. É então que o atraso da região fica mais evidente, que os
movimentos reivindicatórios crescem - e é o momento também em que ditaduras
militares tomam o poder em quase todos os países - uma decorrência da Guerra
Fria - e o momento da revolução cubana, vista como ameaça pelos setores
conservadores.
Obras como Pedro Páramo (1955),
do mexicano Juan Rulfo; Paraíso (1960), do cubano José Lezama Lima; O jogo da
amarelinha (1963), do argentino Julio Cortázar; Cem anos de solidão (1967) e O
outono do patriarca (1975), do colombiano Gabriel García Márquez, vão chamar a
atenção do público mundial e consolidar o gênero, que será também
representado por autores europeus como o italiano Italo Calvino de O visconde
partido ao meio (1952) e de Cidades invisíveis (1972), o alemão Günter Grass de
O tambor (1959), o hindu Salman Rushdie de Os versos satânicos (1988) e o português
José Saramago de A jangada de pedra (1988). O realismo mágico é literatura de
denúncia, mas não de denúncia carrancuda, é antes uma denúncia satírica, irônica.
Cinco clássicos do realismo mágico:
Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez, O jogo da amarelinha - Julio Cortázar,
O outono do patriarca - Gabriel García Márquez, Paraíso - José Lezama Lima,
Pedro Páramo - Juan Rulfo.
Que brasileiros não podem faltar
na nossa lista?
E já que estamos na América
Latina, vamos, enfim, ver algo da nossa literatura brasileira. Temos de começar
reconhecendo a dívida com o país que nos deu o idioma, Portugal, e com grandes
autores portugueses como Eça de Queirós de Os maias (1888), obra adaptada para
uma minissérie de sucesso na TV. É uma tragédia que nasce do incesto
inconsciente entre Carlos Eduardo e Maria Eduarda da Maia. Já A cidade e as
serras (1901), também de Eça de Queirós, tem como personagem principal Jacinto,
um rico aristocrata. Deixando seu palacete de Paris, Jacinto volta a Portugal com
o velho amigo Zé Fernandes e descobre na sua antiga mansão senhorial de Tormes
as suas raízes, o que o liberta do tédio e dá sentido à sua existência.
Dez clássicos brasileiros: A
hora da estrela - Clarice Lispector, Dom Casmurro - Machado de Assis, Grande sertão:
veredas - Guimarães Rosa, Macunaíma - Mário de Andrade, Mar morto - Jorge Amado,
O guarani - José de Alencar, O quinze - Rachel de Queiroz, O tempo e o vento - Érico
Veríssimo, Triste fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto, Vidas secas -
Graciliano Ramos.
É uma literatura vigorosa, a
nossa, e mereceria uma enciclopédia inteira, mas, como temos de sintetizar, vamos
começar já no século XIX, com O guarani (1857), de José Alencar, obra
conhecida de todo brasileiro que passa pela escola e que marca o apogeu do
romantismo no Brasil. Em nosso país, além da valorização do indivíduo,
característica geral das obras românticas, o romantismo foi a expressão de um
“nacionalismo literário”, identificado tanto no indianismo alencarino quanto
na prosa histórica e regionalista.
O guarani é um romance
autenticamente brasileiro, colocando - pela primeira vez em nossa história - o índio
como herói. Como Oliver Twist, foi publicado em jornal na forma de capítulos,
que sempre terminavam com um suspense destinado a manter a atenção do leitor
para o capítulo do dia seguinte. E O guarani tem ação para dar inveja a
qualquer filme de Indiana Jones. Claro, é linguagem do século XIX, e às vezes a
gente tem de ir ao dicionário para descobrir o significado de um ou outro termo.
Mas é, sem dúvida, um grande romance.
Quando foi lançado, em 1857, o
romance O guarani, de José de Alencar, fez tanto sucesso que se formavam grupos
de curiosos na rua para ouvir alguém ler, em voz alta, o capítulo do dia
publicado pelo jornal Diário do Rio de Janeiro.
Grande mesmo foi Machado de
Assis. O indispensável Dom Casmurro (1900) é considerado sua obra-prima.
Bentinho, o narrador, busca obsessivamente saber se sua mulher, Capitu, o traiu. A
dúvida até hoje atormenta os leitores e estudiosos que se debruçam sobre o
livro de Machado. Em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), o próprio
falecido (e isso, diga-se, é originalíssimo: um narrador que já morreu), Brás
Cubas, relembra sua vida, traçando um retrato perfeito e mordaz da sociedade
brasileira de fins do século XIX. Em Quincas Borba (1891), Rubião, que, tendo
recebido uma grande herança do dito Quincas Borba, vagueia com seu cão
defendendo uma filosofia que chama de “Humanitismo”, delirante união de todas
as teorias existentes.
Igualmente delirante é o Doutor
Bacamarte de O alienista (1882), um psiquiatra maluco que mete todo mundo no hospício,
naquela que é, em realidade, uma das melhores sátiras políticas já escritas no
Brasil, uma tremenda gozação sobre o poder.
Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915) é a obra mais importante de Lima Barreto. Nacionalista extremado, como o
próprio Lima Barreto, o funcionário público Policarpo Quaresma tem uma proposta
revolucionária: adotar o tupi-guarani como idioma pátrio. Acaba internado em um
hospício de onde sai para viver estranhas aventuras.
Outro livro delicioso é Macunaíma
(1928), de Mário de Andrade, o romance mais importante do modernismo brasileiro,
aquele que surgiu em cena na Semana de 1922. Através de Macunaíma, o “herói
sem nenhum caráter”, descobrimos uma série de mitos, de lendas e de fatos
sobre o Brasil. Mário tem um prazer de narrar que contagia irresistivelmente o
leitor. Outra obra importante do movimento modernista é Memórias sentimentais de
João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, em que o debochado Miramar evoca suas
aventuras na Europa.
Muito diferente de todos esses é
Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, livro que fala do Nordeste brasileiro,
com sua aridez, sua miséria, mas também seu estoicismo e sua bravura. Vidas
secas, sim, mas heróicas, também. Brutalizada pela extrema miséria, uma família
(Fabiano, sinhá Vitória, os dois filhos e a cadela Baleia) foge da seca. Já a
temática de São Bernardo (1934), também de Graciliano Ramos, é outra: a relação
conflituosa entre o autoritário fazendeiro Paulo Honório e sua mulher, a
resignada professora Madalena.
Do Nordeste vamos para o Sul e aí
encontramos a figura gigantesca de Érico Veríssimo, autor de O tempo e o vento,
trilogia publicada entre 1949 e 1961, e que se constitui em uma verdadeira saga gaúcha:
o pampa dos caudilhos, o pampa dos sofridos seres humanos que, com seu trabalho e
seu sacrifício, ajudaram a criar o Rio Grande. Trilogia: Os livros de O
tempo e o vento, de Érico Veríssimo: O continente, O retrato, O
arquipélago.
E já que estamos falando em gaúchos,
mencionemos outro escritor do Sul, desta vez um escritor urbano (embora nascido
numa pequena cidade da fronteira): Dyonélio Machado, autor de um admirável
romance chamado Os ratos, que gira em torno de um personagem obcecado com a idéia
de que os ratos vão roer o seu dinheiro. Dyonélio, pode-se dizer, é o
Graciliano do Rio Grande do Sul.
Agora vamos nos permitir abrir um
parêntese e falar de um autor clássico da literatura infantil: Monteiro Lobato,
o escritor que mobilizou a imaginação de várias gerações em nosso país. A
chave do tamanho (1942), uma fantástica aventura da instigante boneca Emília,
poderia lembrar Querida, encolhi as crianças; mas além de ter escrito o livro décadas
antes do filme, Monteiro Lobato usa o “encolhimento” da humanidade como base
para uma grande e bem-humorada sátira política e social. Um livro imperdível,
para crianças ou adultos.
Em 2002, numa enquete realizada
com escritores e críticos literários brasileiros, a boneca Emília, do Sítio do
Pica-Pau Amarelo, foi considerada um dos dez principais personagens da literatura
brasileira de todos os tempos, ao lado de Capitu, Brás Cubas, Policarpo Quaresma
e outros.
O Brasil também produziu um
mestre da linguagem. Guimarães Rosa é, acreditem, um demônio com as palavras.
Rosa recriou o nosso idioma e trouxe para a ficção o sertão mineiro, com seus
incríveis personagens, seus mitos, suas lendas. Grande sertão: veredas (1956) é
o melhor exemplo disso. O jagunço Riobaldo narra para um anônimo a história de
suas aventuras e de seu amor pelo jagunço Diadorim, na realidade uma mulher, que,
para vingar a morte do pai, disfarça-se de homem.
A propósito de mitos e lendas,
temos de falar na Bahia. E falando na Bahia, temos de falar do mestre Jorge Amado,
consagrado por obras como Mar morto (1936) e Terras do sem fim (1942). Mas
imprescindível é também Tenda dos milagres (1969), em que Jorge Amado
desmascara alguns empolados doutores baianos, mostrando o ridículo do preconceito
racial.
Não estão faltando escritoras,
de novo? Claro que sim. E aqui emerge o nome da cearense Rachel de Queiroz,
primeira escritora a entrar na Academia Brasileira de Letras e que, aos dezenove
anos, surpreendeu críticos e leitores com o romance O quinze (1930), contribuição
expressiva à chamada literatura da seca (1915 foi um ano de terrível seca no
Nordeste). É literatura engajada, mas combina a descrição do drama social com a
análise psicológica dos personagens.
Já Clarice Lispector nos
apresenta, em A hora da estrela (1977), aquela personagem patética, sofrida, mas
ao mesmo tempo gloriosa, que é Macabéa.
Ler e coçar, é só começar.
O passeio poderia, e deveria,
continuar, mas fica aqui o desafio: faça-o por conta própria. O que você viu até
aqui foram dicas, e dicas sobretudo de romances: faltou conto, faltou poesia,
faltou crônica...
Descubra mais autores. É uma emoção
inigualável ler um livro e constatar, no final: “Essa pessoa faz minha cabeça,
é uma alma-irmã”.
Literatura é aventura, é emoção,
é prazer.
“Há livros de que apenas é
preciso provar, outros que têm de se devorar, outros, enfim, mas são poucos, que
se tornam indispensáveis, por assim dizer, mastigar e digerir”, disse Francis
Bacon.
“Meu Deus, eu não sei nada de
literatura!”, você poderia ainda pensar. Sabe, sim. No mínimo dos mínimos,
você sabe agora por onde começar. E depois que começar, você nunca mais vai
querer parar.
Palavra de escritor. E,
principalmente, palavra de leitor.
(Este texto foi publicado originalmente no site
da loja virtual Submarino (www.submarino.com.br)
A importância de ler os
clássicos nesta época de hipertexo (Umberco Eco)
A importância da literatura para a humanidade (Mario Vargas Llosa)
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