O prosador
por Basílio de Magalhães
(1874-1957)
[...]
Dividindo, de acordo com Clóvis Bevilaqua, o naturalismo em duas correntes, uma
tradicionalista, a outra aldeã e campesina, afirma Silvio Romero que essas
tendências se uniram em Bernardo Guimarães, que foi assim, no Brasil, "um
dos predecessores do naturalismo contemporâneo", irmanando-se nisso com o
autor do "Cabeleira", do "Matuto" e de "Lourenço".
E José Veríssimo ("História da literatura brasileira, pág. 290)
considera-o como "o criador do romance sertanejo e regional, sob o seu puro
aspecto brasileiro".
Quer na romanceação das tradições
(a guerra dos emboabas em "Maurício" e em "O bandido do rio das
Mortes", a exploração do ouro e dos diamantes em "A Garganta do
Inferno" e "O garimpeiro", a conjuração mineira em "A
Cabeça do Tiradentes"), quer no limitado aproveitamento dos temas
aborígines ("Jupira" e "O Índio Afonso"), quer quando visou
pôr em foco os males de escravidão africana ("Uma história de
quilombolas", "A Escrava Isaura" e "Rosaura, a
enjeitada"), quer no aproveitamento de lendas antigas ("O Ermitão de
Muquém" e "A Dança dos Ossos"), quer, finalmente, na mais detida
observação da vida rural e da vida aldeã ("A Filha do Fazendeiro" e
"O Seminarista"), -- sempre o escritor ouropretano se serviu de assuntos
brasileiros, e, o que é mais importante ainda, em geral descreveu cenários que
pessoalmente viu e detalhamente percorreu. Assim, excetuando-se "A Escrava
Isaura", "A Ilha Maldita" e "O Pão-de-Ouro", -- que
presumo serem as suas únicas produções de mera fantasia, -- todas as outras se
desdobram em paisagens dele conhecidas a palmo, pintadas com tintas verdadeiras e
traços fiéis. "A cabeça do Tiradentes", "Uma História de
Quilombolas e "A Garganta do Inferno" têm por palco Ouro Preto, sua
terra natal, ou as cercanias da capital mineira; "O Ermitão de
Muquém", "A Dança dos Ossos", "Jupira" e "O Índio
Afonso" são narrações que ouviu e desenvolveu nos seus pontos originais,
Goiás ou a região entre fronteiras goianas e mineira, zona onde viveu alguns
anos ou que perlustrou; "O Garimpeiro" e "A Filha do
Fazendeiro" são episódio ocorridos em Uberaba, Araxá, Patrocínio e
Bagagem, lugares onde estacionou, tendo morado bastante tempo no primeiro; "O
Seminarista" relembra Itapecerica (antiga Tamunduá), perto de Formiga, e
Congonhas do Campo, povoações que visitou; "Maurício" e "O
Bandido do rio das Mortes" demonstram as impressões reais de sua demorada
inspeção ocular de São João Del Rey e arredores; "Rosaura, a
enjeitada", em fim, recorda quanto se lhe gravara na memória a velha
Paulicéia, onde esteve cinco anos, como aluno da Faculdade de Direito.
Por isso é que puderam os seus mais
competentes críticos encomiar-lhe a perfeita delineação do meio em que dispôs
e movimentou as personagens dos seus contos e romances. Para não citar mais o
erudito sergipano , apoiar-me-ei agora no seguinte juízo que, a esse propósito,
formulou Ronald de Carvalho: "As suas descrições são agradáveis e até
justas algumas vezes: ele sabia evocar admiravelmente os aspectos da natureza,
animava com espontaneidade as formas mudas da paisagem, mostrava-se carinhoso para
com as aves e as plantas, pintava com voluptuoso encanto a verdura buliçosa dos
campos, a curva das colinas no horizonte e o sedoso rumor das frondes, balançadas
pelo vento morno do sertão".
Pondere-se, por outro lado, que ele,
nos poucos aborígines que estudou, preferiu aos tipos dificilmente
"psychologaveis" das matas virgens (como são maus os seus chavantes do
"Ermitão de Muquém"!), os já educados ao conato da gente civilizada;
e, melhor ainda, integrou o matuto em nossa literatura, precedendo nisso a
Franklin Tavora.
Não pode, todavia, o romancista
mineiro ser apontado como seguro modelo aos que amam e cultivam o apura da nossa
língua. Com efeito, nunca se preocupou com as louçanias de estilo, nem com as
frases feitas, tomadas de empréstimo aos mestres de além-Atlântico, nem tão
pouco com as regras sintáticas vernaculares. Creio que ele não ignorava os
mandamentos do idioma pátrio, pois sabia e ensinou latim, fonte do português.
Suponho, portanto, que timbrava em escrever sem acatamento às normas da
toponímia pronominal e outras, ou afim de concorrer dessa arte com a formação
do dialeto brasileiro (tão malsinado pela formidável pena de Rui Barbosa), ou,
então, o que é mais provável, para ser mais facilmente lido e compreendido.
Confrontem-se, por exemplo, dois trabalhos inspirados por igual motivo,
"Eurico, o presbítero", de Alexandre Herculano, e "O
Seminarista", de Bernardo Guimarães: -- aquele é mole granítica, de arte
ogival, em que todas as linhas e ornatos exibem impecável pureza, travamento e
proporções de peregrina pefeição e rara grandiosidade; este é como uma
capelinha rústica, em que tudo se assingela, traços, decoração, enredo e
perspectiva. O nosso roceiro, que apenas pôde cursar uma boa escola primária,
não é capaz de ler o "Eurico", sem que recorra freqüentemente a um
léxico português, e só o entenderá a preceito se souber um pouco da invasão
árabe e das intrusões visigóticas na península ibérica; entretanto, de nada
disso precisa para ler e entender "O Seminarista".
Eis por que se tornou Bernardo
Guimarães um dos novelistas mais popularizados do Brasil.
Além do caráter nacional de todas as
suas produções em prosa, como atiladamente assevera Silvio Romero, "o
escritor mineiro pode ser tomado como um documento para se estudarem as
transformações da língua portuguesa na América". Tentarei evidenciar
dentro em pouco, ao analisar, embora muito de vôo, cada uma das suas obras que,
pela utilização de vocábulos e modismos fraseológicos, ouvido de gente
sertaneja com que conviveu, pela metáforas e pelo registro das crendices ainda
hoje existentes no interior, foi Bernardo Guimarães, indubitavelmente, o mais
brasileiro dos nossos prosadores. E isso, -- o que mais é para admirar, -- sem
haver molhado a pena no tinteiro, tão usado em sua época, do
"indianismo" literariamente falsificado, porém vantajoso, de certo,
para a nossa vigorosa reação do século findo contra a absorvente e
desnacionalizante pressão do "lusismo".
Se José Veríssimo tem pela razão,
quanto assegura que "Bernardo Guimarães, como romancista, é um espontâneo,
em alguma prevenção literária, propósito estético ou filiação consciente a
nenhuma escola", não mesmo acerta Ronald de Carvalho ao afirmar que o
escritor mineiro não conseguiu "fixar um só tipo, realmente perfeito",
pois "todos eles são mais ou menos postiços, convencionais, muito embora
houvesse da parte de Bernardo uma decidida vontade de pintar ao natural as
criaturas que lhe passaram sob os olhos". Não foi um criador, pois para
tanto lhe faltou ali a imprescindível genialidade; foi, sim, um observador probo,
simples e arguto.
O movimento romântico foi intenso em
nosso país e, como em toda a parte, foi essencialmente nacionalista.
[...] Eis aí a plêiade de prosadores
[citados em trecho que os editores deste site suprimiram], em cujo meio repontou
Bernardo Guimarães, para luzir como estrela de primeira grandeza, porquanto, na
opinião dos competente, acorde com o consenso geral, é ele, entre os nossos
três grandes escritórios do período romântico, inferior a Alencar e superior a
Macedo.
Que desses intelectuais, muitos, antes
dele, abrasileiraram a novela, -- é fato indiscutível, atestado pelas datas. Mas
esse abrasileiramento ou foi incompleto ou não passou de pastiche. Considere-se
o caso de Alencar. A um espírito de portentoso talento, qual o imortal cearense,
era possível estilizar índios, gaúchos e sertanejos, que não observou nunca no
hinterland pátrio; não, porém, fixar-lhes as características reais, de
tão difícil apreensão para quem não as perscrutar, de visu, no seu meio
existencial.
Por isso a Bernardo Guimarães , --
"um benemérito interprete dos sentimentos do nosso povo", na luminosa
expressão de Clóvis Bevilaqua -- que nele preferia o romancista ao poeta,
-- foi que couberam a primazia e a glória de haver integrado nas letras nacionais
o homem do interior, estancieiro ou garimpeiro, campônio ou matuto, quilombola ou
mameluco, com todas as suas virtudes e com todos os seus defeitos, com todos os
seus traços éticos e com todas as suas usanças materiais, cada qual em nítido
destaque no seu nativo ambiente físico e social.
Quando Bernardo Guimarães expirou,
já o romantismo havia entrado em dissolução e se iniciava o franco domínio do
naturalismo. Ele próprio, qual bem o assinalou Silvio Romero, foi um
pré-naturaliza, como também não o deixaram de ser Araripe Júnior, Franklin
Távora, Inglês de Sousa, João Adolfo Ribeiro, José do Patrocínio e Júlio
Ribeiro.[...]
Este texto é do livro
"Bernardo Guimarães - esboço biográficos e crítico", de Basílio de
Magalhães.
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