Capa
em couro do livro
que foi editado em 1905 pela
imprensa oficial de Minas Gerais.
O Bandido do Rio
das Mortes
Maurício
ou
os paulistas de S. João de Del-Rey
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Duas palavras de apresentação
I
Segundo os antigos, os livros, como os homens, têm o seu destino.
Nas velhas cousas há
sempre verdade.
Continua cada
opúsculo moderno a ser levado por uma sina, boa ou má. A história de não
poucos constitui genuíno romance romance, cheio de peripécias dramáticas. É o
caso deste que ides compulsar, leitor. O presente romance tem o seu romance. Baste
isto que por ele vos interesseis.
Compô-lo Bernardo Bernardo Guimarães ou, melhor, improvisou-o, não já ao
correr, mas ao galopar da pena. Anoitecia-lhe a existência. Deixou apenas em
esboço os derradeiros capítulos.
A novela é
continuação e conclusão de outra do mesmo genitor: Maurício ou os Paulistas de
S. João del Rei. Andou o manuscrito de mão em mão, à procura de quem lhe desse
remate. Extraviou-se. Parecia condenada a obra a definitivo desaparecimento.
A isso, porém, não
se resignou a digna viúva do morto, d. Tereza Guimarães. Com inexcedível
solicitude, com insigne perseverança (que não conseguem as mulheres?) logrou
reaver os trechos esparsos. Concatenou-os, recopiou-os, engendrou para a narrativa
o desfecho que lhe faltava. Em seguida, graças à dedicada coadjuvação do exmo.
e revdmo. padre João Pio de Souza Reis, alcançou o Congresso Mineiro que fosse o
trabalho impresso à custa do Estado. Tornou-se, desta forma, d. Tereza Guimarães
secretária, colaboradora, editora de seu marido. Mais ainda: salvadora do livro.
Revelou inteligente
devotamento à obra do esposo morto, equiparável ao da Madame Michelet ou ao de
madame Alphonse Daudet, acrescentando que a soma de esforços necessária no
Brasil foi incomparavelmente mais meritória do que a reclamada em França.
De maneira indireta,
toda consorte de escritor pode eficazmente cooperar na tarefa de seu companheiro:
organizando-lhe os meios de produção fácil e fecunda, quer dizer, poupando-lhe
certas preocupações domésticas, mantendo-lhe a serenidade do lar,
proporcionando-lhe as condições de espírito indispensáveis à elaboração de
primores.
D. Thereza Guimarães
foi além. Debateu-se contra a indiferença e a má vontade, superou mil
embaraços, para que o último filho intelectual de Bernardo, nascido quase
invivedouro, não perecesse à mingua.
Durou nada menos de
quatro lustros esse carinhoso labor maternal. Vinte um anos após o falecimento do
autor, surge à publicidade, e reconstituído e integrado, o derradeiro volume.
Representa a
publicação ingente cabedal de fadigas, sacrifícios, tenacidade. D. Tereza
Guimarães fez jus à gratidão das letras mineiras. E d. Thereza Guimarães assim
procedeu arcando com óbices de outra ordem. Imaginai: viúva, pobre, educando
filhos, sustentando velha mãe enferma!
Deve ser, pois, de
agora em diante, lembrada, sempre que se nomear o seu glorioso marido. O nome dela
ainda uma vez se enlaçou perpetuamente ao do preclaro autor do "O
Seminarista" e do "O Ermitão do Muquém".
Não achais o fato
belo e tocante, leitor? Sois mineiro, isto é, acessível a todas as nobres
comoções. Vejo-vos, portanto, curvado, qual eu estou, na mais respeitosa
reverência, perante d. Tereza Guimarães.
Salve, inclita
mineira, excelentíssima senhora!
Valeria a pena o empreendimento de d.
Tereza Guimarães?
Sem dúvida. Quando menos, assiste ao
romance póstumo de Bernardo a valia de curioso documento. Sucinta resenha
do entrecho que será apresentado.
De bandido nada se percebe no herói.
É galhardo, cavalheiroso. Consiste-lhe o crime único em amar d. Leonor, filha de
D. Diogo, capitão-mor de São Josão del Rey, no tempo dos bandeirantes,
disputando-a à ambição de Fernando, primo da mesma.
Deseja Fernando desposar d. Leonor,
com o só intuito de herdar a fortuna e o caro do tio, já idoso.
Abre-se a exposição quando
Maurício, foragido, vai buscar, a Ouro Preto, reforços e munições para atacar
os emboabas capitaneados, em S. João, pelo cruel e ambicioso Fernando, ataque no
qual cumpria proteger ao capitão-mor e à sua mulher.
A Maurício acompanham Itauby, também
chamado de Antonio, índio catequizado, filho de Itapema, ex-chefe de poderosa
tribo Aymoré, e Iamby, negro forte e corajoso.
Itauby, à semelhança de Maurício,
vota ódio de morte aos emboabas; Maurício, pela crueldade com que tratam os
indígenas e desdém que empregam relativamente aos altivos ineolas de São Paulo
de Piratininga; Itauby, porque eles escravizaram Indahyba, aquela a quem adora, a
formosa filha de Irabussú, ex-cacique dos carijós.
Há para Maurício outros motivos de
acometer o arraial: vingar-se de Fernando que insidiosamente convencera Leonor ser
ele, Maurício, traidor e vilão; justificar-se, ante aquela e o
capitão-mor, da morte de Afonso, jovem e impetuoso irmão da moça, que, em
renhido combate entre paulistas e emboabas, sucumbira às mãos do mesmo
Maurício.
Auxiliado por Itapema e Itauby,
alcança Maurício um troço de Aymorés e paulistas fugitivos de S. João. Com
essa diminuta gente, vai investir contra o arraial. Em caminho, sucede topar com o
seu amigo Gil, que lhe vinha ao encalço, comandando um bando de paulistas. À
tropa de Gil agrega-se a de Maurício, formando pequeno exército.
Dirigem-se à gruta do pai de
Indahyba, Irabussú. Devem ali reunir-se ao resto de indígenas e paulistas
escapos de S. João, após a peleja em que expira o irmão de Leonor. Na gruta,
além de Irabussú, o bugre feiticeiro, conforme o alcunhavam os emboabas,
estacionava mestre Bueno, velho mestiço, devotadíssimo a Maurício e inimigo,
por seu turno, dos emboabas, que lhe haviam escravizado a filha, a graciosa
Helena.
Ainda outro afeiçoado de Maurício
ali se via, o capitão Nuno, valente paulista.
Apresentavam-se Maurício e Gil para o
assalto, quando souberam de Irabussú que Fernando se aliara a Caldeira Brant,
celebre bandeirante, orgulhoso e mau, aumentando assim consideravelmente a
guarnição defensora do arraial.
Não desanimam. Enviam Iamby
entender-se com Amador Bueno, outro afamado bandeirante, de índole benévola,
amigo dos paulistas, rival de Caldeira Brant. Propõem-lhe congregar as forças de
todos os grupos.
Amador acede, desejoso de responder a
um desafio do altaneiro Caldeira Brant. Guiado pelo intrépido Iamby, marcha à
frente dos seus, para a gruta de Irabussú, onde este, ao lado de Maurício, Gil,
Itauby e mestre Bueno o aguardam impacientes.
Entretanto, Leonor não olvidara
Maurício, como Indahyba, identicamente, não olvidara Itauby. Julgava a primeira
que Maurício traíra a D. Diogo, pactuando com os indígenas assaltantes do
arraial; supunha-o assassino do irmão. Amava-o, a despeito de tudo; e, ao
anunciar-lhe Fernando de boa fé a morte de Maurício, não vingou a donzela
dissimular o seu desespero. Dai imensa cólera em Fernando. Odiava Maurício,
deplorava não o apanhar vivo, para o torturar à vontade, antes de, com a
própria mão, o trucidar.
Eis o dia da peleja. Leonor e seu pai
vão vê-la do cimo do morro. Indescritível o júbilo da bela, ao avistar na
frente dos contrários o nunca esquecido Maurício. São completamente batidos os
emboabas e Caldeira Brant; Fernando, mortalmente ferido, não tardará a expirar.
Maurício acerca-se do capitão-mor e de sua filha, dando-lhes cabais
explicações, restaurando a verdade, perfidamente falseada por Fernando.
Calixto, outro amigo de Maurício,
noivo de Helena, corrobora as asserções daquele. Termina a história, a contento
geral: mestre Bueno, Itauby e Irabussú abraçam os filhos que choravam; casam-se
os adoradores com as respectivas adoradas.
É, como se viu, a um tempo...
ingênuo e complicado. Escassa psicologia, violenta ação. Acumulação de
personagens, dispersão em escusados episódios, repetições, cousas
perfeitamente dispensáveis.
Sem embargo, interessa. O caracter de
cada indivíduo desenha-se acentuadamente. Nos incidentes, há seguro colorido e
firme perspectiva. Mais que chão, em extremo familiar, encanta o estilo pela
espontaneidade borbulhante. Não se azou ao autor ensejo de ser conciso.
Afirmadas em tantos trabalhos
anteriores, persistem aqui as qualidades de Bernardo.
Em primeiro lugar, o vivo amor à
natureza brasileira, o dom de evocá-la, de lhe interpretar a suavidade e a
excelsitude. De quase todas as páginas, evola-se o olor das florestas virgens,
com os pios ásperos ou brandos de aves ariscas. De súbito, desvenda-se imenso
panorama, impreciso, misterioso e soberbo. Sombra intensa, agora cortilhada de
vagas cintilações infinitas...
A par desse amor e dessa evocação,
conhecimento dos costumes, das tradições, das particularidades natais. Sente-se
que conversou afetuosamente assuntos antigos, viajou, tratou com os moradores,
tropeiros e garimpeiros, apresentando-lhes, sobre a linguagem, o modo especial do
pensar e do sentir. Dai a apresentação de tipos inconfundíveis,
substancialmente nacionais, que perambulam nos volumes.
Em seguida, a graça - graça
desajeitada, muita vez - como a das formosas virgens da roça, graça desataviada
e fresca, a provocar indulgente sorriso de simpatia.
Dominando, embebendo tudo, acendrada
poesia. Porque Bernardo Guimarães foi primordialmente poeta. Poeta pela fina
sensibilidade, pela opulência das sensações, pelo transcendente predicado de
perceber e traduzir aspectos subtis do mundo material e do mundo íntimo. Não já
de seus versos, mas de seus mínimos escritos exala-se poesia. Poesia
inconsciente, como a do pássaro trinado, ou a do arrojo a derivar.
Poeta pela maneira como produziu, pelo
jeito do seu viver.
Embora desordenado, escreveu bastante.
Foi um ativo, um fecundo. Considerando a existência que levou, o meio onde o seu
espírito evolveu, desprovido de estudos e de estímulos, ninguém se eximirá a
lhe admirar assim a cerebração como a fertilidade dela decorrente.
Ser de eleição, dotado de nobre
engenho, não o malbaratou.
Poderia deixar ainda mais e ainda
melhor? Poderia, sem dúvida. Abundam em seus livros fragmentos esparsos de obra
prima. Coordenados, ajustados com paciência e tempo, eliminadas as
excrescências, surdiria a obra prima absoluta e imortal.
Mas o que deixou basta a lhe perpetuar
a memória na estima e veneração de quantos o lerem; basta a lhe insculpir a
figura na galeria dos brasileiros egrégios.
Jacta-se Minas Gerais das pedras
preciosas extraídas de suas entranhas.
Por maioria de razão, deve ufanar-se
desta inteligência.
Nascida, lapidada com descuido no solo
mineiro, despediu ela fulgurações inefáveis, cristalizadas em livros --
fulgurações mais valiosas que as da gemas riquíssimas.
Affonso Celso
Vila Petiote - Petrópolis - VII -
1905
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