Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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Capa em couro do livro
que foi editado em 1905 pela
imprensa oficial de Minas Gerais.

O Bandido do Rio das Mortes

Maurício
ou
os paulistas de S. João de Del-Rey

 

Duas palavras de apresentação

I


Segundo os antigos, os livros, como os homens, têm o seu destino.

Nas velhas cousas há sempre verdade.

Continua cada opúsculo moderno a ser levado  por uma sina, boa ou má. A história de não poucos constitui genuíno romance romance, cheio de peripécias dramáticas. É o caso deste que ides compulsar, leitor. O presente romance tem o seu romance. Baste isto que por ele vos interesseis.

Compô-lo Bernardo Bernardo Guimarães ou, melhor, improvisou-o, não já ao correr, mas ao galopar da pena. Anoitecia-lhe a existência. Deixou apenas em esboço os derradeiros capítulos.

A novela é continuação e conclusão de outra do mesmo genitor: Maurício ou os Paulistas de S. João del Rei. Andou o manuscrito de mão em mão, à procura de quem lhe desse remate. Extraviou-se. Parecia condenada a obra a definitivo desaparecimento.

A isso, porém, não se resignou a digna viúva do morto, d. Tereza Guimarães. Com inexcedível solicitude, com insigne perseverança (que não conseguem as mulheres?) logrou reaver os trechos esparsos. Concatenou-os, recopiou-os, engendrou para a narrativa o desfecho que lhe faltava. Em seguida, graças à dedicada coadjuvação do exmo. e revdmo. padre João Pio de Souza Reis, alcançou o Congresso Mineiro que fosse o trabalho impresso à custa do Estado. Tornou-se, desta forma, d. Tereza Guimarães secretária, colaboradora, editora de seu marido. Mais ainda: salvadora do livro.

Revelou inteligente devotamento à obra do esposo morto, equiparável ao da Madame Michelet ou ao de madame Alphonse Daudet, acrescentando que a soma de esforços necessária no Brasil foi incomparavelmente mais meritória do que a reclamada em França.

De maneira indireta, toda consorte de escritor pode eficazmente cooperar na tarefa de seu companheiro: organizando-lhe os meios de produção fácil e fecunda, quer dizer, poupando-lhe certas preocupações domésticas, mantendo-lhe a serenidade do lar, proporcionando-lhe as condições de espírito indispensáveis à elaboração de primores.

D. Thereza Guimarães foi além. Debateu-se contra a indiferença e a má vontade, superou mil embaraços, para que o último filho intelectual de Bernardo, nascido quase invivedouro, não perecesse à mingua.

Durou nada menos de quatro lustros esse carinhoso labor maternal. Vinte um anos após o falecimento do autor, surge à publicidade, e reconstituído e integrado, o derradeiro volume.

Representa a publicação ingente cabedal de fadigas, sacrifícios, tenacidade. D. Tereza Guimarães fez jus à gratidão das letras mineiras. E d. Thereza Guimarães assim procedeu arcando com óbices de outra ordem. Imaginai: viúva, pobre, educando filhos, sustentando velha mãe enferma!

Deve ser, pois, de agora em diante, lembrada, sempre que se nomear o seu glorioso marido. O nome dela ainda uma vez se enlaçou perpetuamente ao do preclaro autor do "O Seminarista" e do "O Ermitão do Muquém".

Não achais o fato belo e tocante, leitor? Sois mineiro, isto é, acessível a todas as nobres comoções. Vejo-vos, portanto, curvado, qual eu estou, na mais respeitosa reverência, perante d. Tereza Guimarães.

Salve, inclita mineira, excelentíssima senhora!

II

Valeria a pena o empreendimento de d. Tereza Guimarães?

Sem dúvida. Quando menos, assiste ao romance póstumo de Bernardo a valia de curioso documento.  Sucinta resenha do entrecho que será apresentado.

De bandido nada se percebe no herói. É galhardo, cavalheiroso. Consiste-lhe o crime único em amar d. Leonor, filha de D. Diogo, capitão-mor de São Josão del Rey, no tempo dos bandeirantes, disputando-a à ambição de Fernando, primo da mesma.

Deseja Fernando desposar d. Leonor, com o só intuito de herdar a fortuna e o caro do tio, já idoso.

Abre-se a exposição quando Maurício, foragido, vai buscar, a Ouro Preto, reforços e munições para atacar os emboabas capitaneados, em S. João, pelo cruel e ambicioso Fernando, ataque no qual cumpria proteger ao capitão-mor e à sua mulher.

A Maurício acompanham Itauby, também chamado de Antonio, índio catequizado, filho de Itapema, ex-chefe de poderosa tribo Aymoré, e Iamby, negro forte e corajoso.

Itauby, à semelhança de Maurício, vota ódio de morte aos emboabas; Maurício, pela crueldade com que tratam os indígenas e desdém que empregam relativamente aos altivos ineolas de São Paulo de Piratininga; Itauby, porque eles escravizaram Indahyba, aquela a quem adora, a formosa filha de Irabussú, ex-cacique dos carijós.

Há para Maurício outros motivos de acometer o arraial: vingar-se de Fernando que insidiosamente convencera Leonor ser ele, Maurício, traidor e vilão; justificar-se, ante aquela e o capitão-mor,  da morte de Afonso, jovem e impetuoso irmão da moça, que, em renhido combate entre paulistas e emboabas, sucumbira às mãos do mesmo Maurício. 

Auxiliado por Itapema e Itauby, alcança Maurício um troço de Aymorés e paulistas fugitivos de S. João. Com essa diminuta gente, vai investir contra o arraial. Em caminho, sucede topar com o seu amigo Gil, que lhe vinha ao encalço, comandando um bando de paulistas. À tropa de Gil agrega-se a de Maurício, formando pequeno exército.

Dirigem-se à gruta do pai de Indahyba, Irabussú. Devem ali reunir-se ao resto de indígenas e paulistas escapos de S. João, após a peleja em que expira o irmão de Leonor. Na gruta, além de Irabussú, o bugre feiticeiro, conforme o alcunhavam os emboabas, estacionava mestre Bueno, velho mestiço, devotadíssimo a Maurício e inimigo, por seu turno, dos emboabas, que lhe haviam escravizado a filha, a graciosa Helena.

Ainda outro afeiçoado de Maurício ali se via, o capitão Nuno, valente paulista.

Apresentavam-se Maurício e Gil para o assalto, quando souberam de Irabussú que Fernando se aliara a Caldeira Brant, celebre bandeirante, orgulhoso e mau, aumentando assim consideravelmente a guarnição defensora do arraial.

Não desanimam. Enviam Iamby entender-se com Amador Bueno, outro afamado bandeirante, de índole benévola, amigo dos paulistas, rival de Caldeira Brant. Propõem-lhe congregar as forças de todos os grupos.

Amador acede, desejoso de responder a um desafio do altaneiro Caldeira Brant. Guiado pelo intrépido Iamby, marcha à frente dos seus, para a gruta de Irabussú, onde este, ao lado de Maurício, Gil, Itauby e mestre Bueno o aguardam impacientes.

Entretanto, Leonor não olvidara Maurício, como Indahyba, identicamente, não olvidara Itauby. Julgava a primeira que Maurício traíra a D. Diogo, pactuando com os indígenas assaltantes do arraial; supunha-o assassino do irmão. Amava-o, a despeito de tudo; e, ao anunciar-lhe Fernando de boa fé a morte de Maurício, não vingou a donzela dissimular o seu desespero. Dai imensa cólera em Fernando. Odiava Maurício, deplorava não o apanhar vivo, para o torturar à vontade, antes de, com a própria mão, o trucidar.

Eis o dia da peleja. Leonor e seu pai vão vê-la do cimo do morro. Indescritível o júbilo da bela, ao avistar na frente dos contrários o nunca esquecido Maurício. São completamente batidos os emboabas e Caldeira Brant; Fernando, mortalmente ferido, não tardará a expirar. Maurício acerca-se do capitão-mor e de sua filha, dando-lhes cabais explicações, restaurando a verdade, perfidamente falseada por Fernando.

Calixto, outro amigo de Maurício, noivo de Helena, corrobora as asserções daquele. Termina a história, a contento geral: mestre Bueno, Itauby e Irabussú abraçam os filhos que choravam; casam-se os adoradores com as respectivas adoradas.

III

É, como se viu, a um tempo... ingênuo e complicado. Escassa psicologia, violenta ação. Acumulação de personagens, dispersão em escusados episódios, repetições, cousas perfeitamente dispensáveis.

Sem embargo, interessa. O caracter de cada indivíduo desenha-se acentuadamente. Nos incidentes, há seguro colorido e firme perspectiva. Mais que chão, em extremo familiar, encanta o estilo pela espontaneidade borbulhante. Não se azou ao autor ensejo de ser conciso.

Afirmadas em tantos trabalhos anteriores, persistem aqui as qualidades de Bernardo.

Em primeiro lugar, o vivo amor à natureza brasileira, o dom de evocá-la, de lhe interpretar a suavidade e a excelsitude. De quase todas as páginas, evola-se o olor das florestas virgens, com os pios ásperos ou brandos de aves ariscas. De súbito, desvenda-se imenso panorama, impreciso, misterioso e soberbo. Sombra intensa, agora cortilhada de vagas cintilações infinitas...

A par desse amor e dessa evocação, conhecimento dos costumes, das tradições, das particularidades natais. Sente-se que conversou afetuosamente assuntos antigos, viajou, tratou com os moradores, tropeiros e garimpeiros, apresentando-lhes, sobre a linguagem, o modo especial do pensar e do sentir. Dai a apresentação de tipos inconfundíveis, substancialmente nacionais, que perambulam nos volumes.

Em seguida, a graça - graça desajeitada, muita vez - como a das formosas virgens da roça, graça desataviada e fresca, a provocar indulgente sorriso de simpatia.

Dominando, embebendo tudo, acendrada poesia. Porque Bernardo Guimarães foi primordialmente poeta. Poeta pela fina sensibilidade, pela opulência das sensações, pelo transcendente predicado de perceber e traduzir aspectos subtis do mundo material e do mundo íntimo. Não já de seus versos, mas de seus mínimos escritos exala-se poesia. Poesia inconsciente, como a do pássaro trinado, ou a do arrojo a derivar.

Poeta pela maneira como produziu, pelo jeito do seu viver.

Embora desordenado, escreveu bastante. Foi um ativo, um fecundo. Considerando a existência que levou, o meio onde o seu espírito evolveu, desprovido de estudos e de estímulos, ninguém se eximirá a lhe admirar assim a cerebração como a fertilidade dela decorrente.

Ser de eleição, dotado de nobre engenho, não o malbaratou.

Poderia deixar ainda mais e ainda melhor? Poderia, sem dúvida. Abundam em seus livros fragmentos esparsos de obra prima. Coordenados, ajustados com paciência e tempo, eliminadas as excrescências, surdiria a obra prima absoluta e imortal.

Mas o que deixou basta a lhe perpetuar a memória na estima e veneração de quantos o lerem; basta a lhe insculpir a figura na galeria dos brasileiros egrégios.

Jacta-se Minas Gerais das pedras preciosas extraídas de suas entranhas.

Por maioria de razão, deve ufanar-se desta inteligência.

Nascida, lapidada com descuido no solo mineiro, despediu ela fulgurações inefáveis, cristalizadas em livros -- fulgurações mais valiosas que as da gemas riquíssimas.

Affonso Celso

Vila Petiote - Petrópolis - VII - 1905   

  


 
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