Maurício ou Os
Paulistas em São João del Rey
De bandido nada se percebe no herói.
É galhardo, cavalheiroso. Consiste-lhe o crime único em amar d. Leonor, filha de
D. Diogo, capitão-mor de São Josão del Rey, no tempo dos bandeirantes,
disputando-a à ambição de Fernando, primo da mesma.
Deseja Fernando desposar d. Leonor,
com o só intuito de herdar a fortuna e o caro do tio, já idoso.
Abre-se a exposição quando
Maurício, foragido, vai buscar, a Ouro Preto, reforços e munições para atacar
os emboabas capitaneados, em S. João, pelo cruel e ambicioso Fernando, ataque no
qual cumpria proteger ao capitão-mor e à sua mulher.
A Maurício acompanham Itauby, também
chamado de Antonio, índio catequizado, filho de Itapema, ex-chefe de poderosa
tribo Aymoré, e Iamby, negro forte e corajoso.
Itauby, à semelhança de Maurício,
vota ódio de morte aos emboabas; Maurício, pela crueldade com que tratam os
indígenas e desdém que empregam relativamente aos altivos ineolas de São Paulo
de Piratininga; Itauby, porque eles escravizaram Indahyba, aquela a quem adora, a
formosa filha de Irabussú, ex-cacique dos carijós.
Há para Maurício outros motivos de
acometer o arraial: vingar-se de Fernando que insidiosamente convencera Leonor ser
ele, Maurício, traidor e vilão; justificar-se, ante aquela e o
capitão-mor, da morte de Afonso, jovem e impetuoso irmão da moça, que, em
renhido combate entre paulistas e emboabas, sucumbira às mãos do mesmo
Maurício.
Auxiliado por Itapema e Itauby,
alcança Maurício um troço de Aymorés e paulistas fugitivos de S. João. Com
essa diminuta gente, vai investir contra o arraial. Em caminho, sucede topar com o
seu amigo Gil, que lhe vinha ao encalço, comandando um bando de paulistas. À
tropa de Gil agrega-se a de Maurício, formando pequeno exército.
Dirigem-se à gruta do pai de
Indahyba, Irabussú. Devem ali reunir-se ao resto de indígenas e paulistas
escapos de S. João, após a peleja em que expira o irmão de Leonor. Na gruta,
além de Irabussú, o bugre feiticeiro, conforme o alcunhavam os emboabas,
estacionava mestre Bueno, velho mestiço, devotadíssimo a Maurício e inimigo,
por seu turno, dos emboabas, que lhe haviam escravizado a filha, a graciosa
Helena.
Ainda outro afeiçoado de Maurício
ali se via, o capitão Nuno, valente paulista.
Apresentavam-se Maurício e Gil para o
assalto, quando souberam de Irabussú que Fernando se aliara a Caldeira Brant,
celebre bandeirante, orgulhoso e mau, aumentando assim consideravelmente a
guarnição defensora do arraial.
Não desanimam. Enviam Iamby
entender-se com Amador Bueno, outro afamado bandeirante, de índole benévola,
amigo dos paulistas, rival de Caldeira Brant. Propõem-lhe congregar as forças de
todos os grupos.
Amador acede, desejoso de responder a
um desafio do altaneiro Caldeira Brant. Guiado pelo intrépido Iamby, marcha à
frente dos seus, para a gruta de Irabussú, onde este, ao lado de Maurício, Gil,
Itauby e mestre Bueno o aguardam impacientes.
Entretanto, Leonor não olvidara
Maurício, como Indahyba, identicamente, não olvidara Itauby. Julgava a primeira
que Maurício traíra a D. Diogo, pactuando com os indígenas assaltantes do
arraial; supunha-o assassino do irmão. Amava-o, a despeito de tudo; e, ao
anunciar-lhe Fernando de boa fé a morte de Maurício, não vingou a donzela
dissimular o seu desespero. Dai imensa cólera em Fernando. Odiava Maurício,
deplorava não o apanhar vivo, para o torturar à vontade, antes de, com a
própria mão, o trucidar.
Eis o dia da peleja. Leonor e seu pai
vão vê-la do cimo do morro. Indescritível o júbilo da bela, ao avistar na
frente dos contrários o nunca esquecido Maurício. São completamente batidos os
emboabas e Caldeira Brant; Fernando, mortalmente ferido, não tardará a expirar.
Maurício acerca-se do capitão-mor e de sua filha, dando-lhes cabais
explicações, restaurando a verdade, perfidamente falseada por Fernando.
Calixto, outro amigo de Maurício,
noivo de Helena, corrobora as asserções daquele. Termina a história, a contento
geral: mestre Bueno, Itauby e Irabussú abraçam os filhos que choravam; casam-se
os adoradores com as respectivas adoradas.
Nota do site: o relato acima
faz parte do texto "Duas Palavras de Apresentação", de autoria de
Affonso Celso, da edição póstuma do livro que foi custeada
no governo de Minas, em 1905.
O que diz o crítico
Basílio de Magalhães
A vida tradicional na
população rural
"Maurício é romance de
costumes, versando sobre o episódio da guerra dos emboadas, que Júlio Ribeiro
também aproveitou para o seu "Padre Belchior de Pontes". Foi publicado
em dois volumes, anunciando o autor, nas últimas linhas do capítulo final, que a
história se remataria em novo livro, "O Bandido do rio das Mortes".
Nestes trabalhos de Bernardo
Guimarães é que melhor se observa "a junção das duas tendências - a vida
tradicional nas populações rurais".
É a obra de mais fôlego de Bernardo
Guimarães e, no gênero, a mais bela. Embora haja ali pouca psicologia e
excessiva acumulação de personagens, cujas feições psíquicas são, contudo,
bem desenhadas, o romance empolga o leitor, quer pelas cenas da natureza, quer
pela movimentação da vida humana.
Se, no ponto de vista rigorosamente
histórico, há nele erros [por exemplo, dá Arthur de Sá e Menezes como nomeado
governador da capitania de Minas em 1700, quando na verdade é que o foi da
Repartição do Sul, desde 1697], palpita a verdade nas descrições de São João
del Rey e seus arredores (que, que ali nasci, posso fazer com segurança essa
afirmação), particularmente na da nossa calcarea "Casa da Pedra", por
ele chamada "Gruta de Irabussú" (capítulo XII). Poucos escritores
seriam capazes de traçar melhor que o mineiro as páginas referentes à caçada,
que formam os capítulos VI, VII, VIII e IX.
É uma composição em que, sobre o
duplo pedestal da paixão de Maurício por Leonor, filha do capitão-mór, também
requestada pelo fidalgo Fernando, e do insopitável ódio entre os bandeirantes,
conquistadores do hinterland aurífero, e os reinóes, se agrupam e se
agitam, em contornos bem gizados, todos os elementos formadores de nossa
nacionalidade, o português, o índio e o negro, com os seus subprodutos étnicos.
Quem vir o título de "Bandido do
rio das Mortes" esperará ler façanhas truculentas; entretanto, Maurício é
um coração mais dominado pelo amor do que pelo patriotismo, e as suas proezas
são todos atos de guerra leal, em nenhuma das quais se percebe o latrocínio ou a
fúria homicida, índices do verdadeiro chefe de malta do sertão.
No seu alentado romance, Bernardo
Guimarães enxertou algumas superstições religiosas, que vieram de Portugal para
o Brasil, nos tempos coloniais. Assim, no volume I, capítulo XV, o mais fácil
processo de tirar o demônio do corpo de alguém: "Pegue-se ali um cordão
bento de S. Francisco, dobre-se em dois, e soltem com ele duas ou três lambadas
no bruxo; e se ele não se entregar manso e humilde, como um cachorro, o diabo que
me entre também nas tripas!". No capítulo XXII, assustados ante uma
jibóia, que não conheciam, os portugueses murmuravam, a tremer, a oração de S.
Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.
As comparações são tiradas da nossa
fauna. Exemplos: os olhos de Indaíba, filha de Irabussú, "refulgiam
tímidos e deslumbrados, como os da veada prisioneira, que do seio da selvas
natais se vê de repente transportada para os pátios do paço real"; o corpo
de Irabussú, já de si mirrado e esguio, era "flexível como a serpente e
ágil como a cotia", o mameluco Tiago, parente de Antonio, "é velhaco,
como um jacaré velho", "Bueno exalou um gemido surdo e ameaçador, como
o ronco da sucuri no fundo da lagoa, quando ouve o trovão roncar ao longe".
Além de prolóquios lusitanos, a que
deu preferência a linguagem vulgar, "plantar verde para colher maduro",
tão boa é a corda, como a caçamba", encontram-se ali expressões
populares, "lascar guascadas", "ir por súcia", "punir
por alguém", "judiar como" (maltratar), e modismos nossos,
"bandeireiros" (por bandeirantes), "onceiro" (cão),
"ambicioneiro" (ambicioso), "desensarado", "cangapé
(corruptela de "cambapé"), "buracada", malvadeza (malvadez),
"estrafegado", alinhavar" (por matar), "escorvetear",
"prudenciar", "patetear".
Sei que Bernardo Guimarães, para
poder elaborar "Maurício" e "O Bandido do rio das Mortes",
percorreu meticulosamente todo o cenário, São João del Rey, São José del Rey
(hoje Tiradentes) e região. Já havia prometido o primeiro à Casa Garnier, à
qual o vendeu por 800$000. Gastou cerca de quatro meses, escrevendo-o numa fazenda
de sua sogra d. Felicidade, sita no lugar denominado Rancharia, a cerca de duas
léguas de Ouro Preto, faltando-lhe ali papel em branco para terminá-lo,
serviu-se das margens de jornais velhos, o que avolumou consideravelmente o
original.
(A propósito de d. Felicidade:
Bernardo não deixava nunca de fazer espírito até com o belo nome da sogra. Toda
vez que alguém lhe aplaudia pelos triunfos literários - pois outros não
alcançou ele em vida - ponderava sempre que era "genro da
Felicidade...")
Ante as reclamações do editor, meteu
o manuscrito num saco de aniagem e assim o despachou. Imagine-se o espanto do
velho Garnier, quando recebeu tamanho volume!.
"O Bandido do rio das
Mortes" ficou inacabado, mas a dedicada viúva de Bernardo Guimarães, d.
Teresa, cuja memória, ainda hoje feliz, conservava bem os episódios bem os
episódios que o marido lhe expusera para remate do romance, completou-o,
auxiliada nisso, e no conseguimento da impressão, pelo ilustre monsenhor João
Paio de Sousa Reis, cujo talento e patriotismo honram o clero nacional. A
obra, por isso, não veio à luz pública senão em 1905.
Além do mais que tão
enaltecedoramente disse de d. Teresa Guimarães o consagrado poeta e
romancista sr. conde de Afonso Celso, a propósito da salvação do "Bandido
do rio das Martes", faço meu o seu seguinte juízo: "Revelou
inteligente devotamente à obra do esposo morto, equiparável ao de madame
Michelet ou ao de madame Alphonse Daudet, acrescentando que a soma de esforços,
necessária no Brasil, foi incomparavelmente mais meritória do que a reclamada em
Franca".
É irrecusável, nos lineamentos
gerais e em certas particularidades, a semelhança do "Maurício" de
Bernardo Guimarães com "O padre Belchior de Pontes", de Júlio
Ribeiro. O episódio fundamental é o mesmo - o da guerra dos emboabas -- e há
cenas evidentemente comuns às duas obras, como a caçada, a da luta com a onça e
até a descrição da gruta de calcarea, além de que em ambas se encontra a
figura de Amador Bueno, relembrando ainda o Antonio Francisco e a Guiomar da
segunda as personagens de Maurício e Leonor.
A primeira parte, isto é, o prólogo
"O Iluminado", do romance de Júlio Ribeiro, foi escrita em Sorocaba e
inserta no periódico "O Sorocabano", que ele fundou e redigiu ali de
1870 a 1872, tirado logo depois em "raquítico volume", que o próprio
autor inutilizou, quando, em virtude de um incidente com a Casa Garnier, lhe
entrou na alma o desânimo de ver impressa toda a composição; a segunda parte,
"O Sertão", e a terceura, "O Emboabas", foram elaboradas em
Campinas, em 1875.
Incumbiu-se desinteressadamente a
publicação de toda aquela publicação de toda aquela obra do pujante escritor
sabarense e cantor das "Estrelas Errantes" o dr. Francisco Quirino dos
Santos, jornalista republicano, saindo ela dos prelos da "Gazeta de
Campinas" em dois volumes, o primeiro em 1876 e o segundo em 1877.
Os originais de Maurício" deve
ter sido entregues à Casa Garnier em meados de 1876 pelo menos, porque esse
romance, em dois tomos de 340 e 294 páginas, respectivamente, foi impresso no
Havre, e, como os jornais do Rio de Janeiro só se ocupavam dele em começo de
1877, acredito que foi nessa época que os editores puseram no mercado. É
lícito, portanto, presumir que os dois mineiros não se imitaram, nem se
influenciaram, mas convergiram fortuitamente e simultaneamente o espírito para a
explanação do mesmo assunto histórico e ali se congenializaram em quase
forçados aspectos, oriundos dos homens que evocaram e do meio que descreveram.
José Veríssimo ("Estudos de
Literatura Brasileira"), que, divergindo da opinião generalizada, considera
Bernardo Guimarães melhor poeta do que romancista, diz que o
"Maurício" é uma "obra de decadência". Como, porém, o
famoso crítico confessa que, ao reler aquele romance, não passou dos primeiros
capítulos, cumpre não se tenha em conta de firme e valioso o seu infundamentado
laudo.
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