Leitura na poltrona
Uma defesa da volta à experiência íntima
e direta da literatura,
sem o apoio de intermediários, sem manuais de leitura,
sem muletas, ou precauções. Ensaio publicado no jornal
Rascunho de abril de 2006.
por José Castello
A
notícia é recente. O governo cubano decidiu reformar o bote pesqueiro
"Pilar", que o escritor norte-americano Ernest Hemingway usava em suas
viagens pelo mar do Caribe e que está guardado em uma praia da ilha. A casa que o
escritor comprou a leste de Havana, onde ele viveu entre 1949 e 1960 e em cujos
porões foram descobertos os manuscritos de O velho e o mar, conhecida como Finca
Vigia, passará também por uma restauração. Depois da morte do escritor, em
1961, ela foi cedida pela viúva ao governo cubano e transformada em museu.
Recentemente, um furacão destruiu parte dos telhados e das paredes.O pesqueiro de
Hemingway, a casa de Hemingway - tudo isso costuma ser arrolado na lista,
exótica, do folclore literário.
Curiosidades jornalísticas,
fofocas de biógrafos, relíquias para turistas, objetos de exploração
comercial, pensa-se - coisas, enfim, que nenhuma relação importante teriam com a
literatura. O mesmo desprezo afeta, por exemplo, as três famosas casas que o
poeta Pablo Neruda deixou no Chile - La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em
Valparaíso, e a casa mais célebre de Isla Negra. Visitam-se as casas, rendem-se
homenagens, tiram-se fotografias, compram-se suvenires, ou livros. Está bem, que
seja assim. Mas a literatura, se diz, está em outro lugar, muito longe dali. Mas
será?
Esse desprezo pelos objetos,
pelos restos existenciais, pelas circunstâncias, pelos vestígios da história
pessoal, desprezo enfim pelo modo como o escritor se situa no mundo e na
história, e pelos embates reais que travou para chegar a escrever, isso não
significaria, na verdade, outra coisa? Podemos tomá-lo como o reflexo de uma
maneira "técnica" e "profissional" de ler a literatura. Uma
visão purista do literário. Até porque escritores estão sempre contaminados
pelo real. "Ó vos, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/ E em cujos olhos
queima um lento fogo frio/ Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ Capaz de
não rir durante anos a fio", escreveu Vinicius de Moraes em sua célebre
Carta aos puros, poema dos anos 50, em Montevidéu. "Ó vós que só viveis
nos vórtices da morte/ E vos enclausurais no instinto que vos ceva/ Vós que
vedes na luz o antônimo da treva/ E acreditais que o amor é o túmulo do
forte".
Vinicius falava do homem
"comum", de qualquer homem - mas é claro que falava na posição de
poeta. Falava daquilo que, para o poeta, é essencial, e que grande parte dos
homens que estão fora não podem compreender. Sujar-se na inconstância da vida,
fazer da escrita um instrumento de escavação do real, não deixar que escape o
vínculo difícil que une a literatura ao mundo. Apegar-se a ele, sempre.
Esta contaminação de que fala
Vinicius de Moraes não é um defeito, uma fraqueza, ou uma deficiência; ao
contrário, é dela e através dela que a literatura se encorpa e se faz. Mais
ainda: esse contágio é, também, um efeito do modo como a literatura, quando
lida com liberdade, se derrama sobre a vida e arrasta, no roldão das palavras,
todo um mundo. Só uma leitura dogmática, só leitores insensíveis e
pernósticos poderiam imaginar que o pesqueiro de Hemingway, onde ele rascunhou o
extraordinário O velho e o mar, ou a casa em que se refugiou do mundo, até
retornar aos EUA para cometer suicídio, são apenas curiosidades, ou relíquias
de um morto. São bem mais que isso: são lugares do literário.
Mas quem observa a literatura
desde a perspectiva fria dos escritórios não consegue ver isso. Voltar à
experiência íntima e direta da literatura, sem o apoio de intermediários, sem
manuais de leitura, sem muletas, ou precauções. Regressar à leitura dos grandes
livros, retomar a experiência - prazerosa, mas atordoante - do puro prazer de
ler. Recuperar o impacto, a desordem íntima, a devastação interior que a
leitura de um grande livro sempre provoca. Expor-se: entender que ler é, também,
ser lido.
Nada se assemelha ao contato
silencioso e misterioso, mas intenso, que liga o leitor a um livro. Trata-se de
uma experiência íntima, secreta, em que a inteligência e a sensibilidade se
expandem, mas também se apequenam. Hoje, infelizmente, a idéia desta colisão
com o real, do impacto contido nesta experiência particular, da exposição sem
defesas ao calor do texto, parece perdida. As leituras, hoje em dia, ou são
técnicas, ou burocráticas, ou didáticas, isso quando não geridas pelos
modismos, pelas agências literárias e pelo marketing.
Quem está preparado?
Vivemos, nesse início de
século, em um universo literário dominado pelas teorias, pelas leituras
dirigidas, pela especialização, pela luta de prestígio entre as várias escolas
de interpretação. Universo ocupado pela figura do leitor especialista, do
erudito, do doutor de escola, daquele que "sabe o que lê", a literatura
se apequena. Ela é transferida para a esfera do conhecimento - mas, na
literatura, não é do conhecimento que se trata. Esfera do saber - mas, na
literatura, é bem mais importante não saber. Nesse cenário hiperespecializado,
muitos leitores não se julgam prontos, ou capacitados, para ler um grande autor
como Pessoa, ou Kafka, ou Rosa, ou Clarice. Esses grandes escritores parecem estar
acima, ou além, de suas possibilidades; como se eles, leitores, não estivessem
autorizados para o ato da leitura. No entanto, quem pode ser dizer preparado para
ler um livro? Quem está realmente pronto para ler O castelo, de Kafka, ou O livro
do desassossego, de Pessoa, ou A paixão segundo G. H., de Clarice, ou o Ulisses,
de Joyce? Se tais leitores existem, eles não interessam à literatura. Se é que
existem, se é que podem existir, pois parece que não.
Houvesse uma sincronia perfeita
entre o grande livro e o grande leitor, e só chegaríamos a leituras
previsíveis, a releituras, e com isso afundaríamos na repetição. Ficaria de
fora, assim, aquilo que a leitura de um grande livro guarda de mais fundamental: o
susto. Tanto na leitura, como na escrita, existem muitos elementos fora de
controle. O despreparo, a insuficiência, o vazio não são obstáculos, ao
contrário, são condições fundamentais para a aventura da leitura. Não só
para a leitura, mas para a escrita. São peças chaves na construção da
literatura.
Os escritores conhecem isso muito
bem. No ato da escrita, fatores incertos, invisíveis, não detectáveis, dominam
a frente da cena.
Não existe também o escritor
preparado para escrever - e justamente por isso que não existem escolas, ou
universidades para a formação de escritores. Não há "ciência da
literatura" e, por isso, já no século 19, Edgar Allan Paul, no conhecido
soneto À ciência, escreveu: "Ciência! Do velho Tempo és filha predileta!/
Tudo alteras, com o olhar que tudo inquire e invade!/ Por que rasgas assim o
coração do poeta,/ abutre, que asas tens de triste Realidade?" Nada contra
a ciência, é claro; mas que ela não ocupe, não se aposse, de um lugar que não
é o seu.
Adélia Prado em sua cozinha
católica de Divinópolis. Nelson Rodrigues, em meio à zoeira da redação de O
Globo, concentrado em sua dramaturgia. Clarice atônita, a máquina de escrever no
colo, escrevendo enquanto vigia as crianças. Franz Kafka abatido em sua mesa de
burocrata no ministério de Seguros Gerais, em Praga. Pessoa, metido em uma capa
preta, um corvo no balcão de um café do Chiado. Hemingway em seu barco
navegando, cheio de bravatas, pela costa de Havana. Ricardo Piglia em um intervalo
de aula nos Estados Unidos, ou em um seminário em La Plata. João Gilberto Noll,
em pleno inverno, solitário, caminhando por uma praia deserta do norte do Rio
Grande. Virginia Woolf, apavorada, ouvindo vozes em seu quarto. João Cabral, de
paletó e gravata, despachando em um consulado na África. Qual deles está na
situação ideal para escrever?
Todos estão, e nenhum está, já
que a literatura é, antes de tudo, o universo do particular. E é também o lugar
das experiências incompletas, das situações deficitárias, dos grandes
transtornos, das palavras que não dão conta do real mas que, ainda assim, ou por
isso, se tornam preciosas. É uma tolice julgar que o ideal para um escritor seria
trabalhar das oito ao meio-dia, ou ler as obras completas dos grandes autores, ou
se preparar numa especialização antes de enfrentar a página em branco. Há algo
de íntimo e intransferível que, por fim, é o que sustenta a literatura. Algo
que escapa aos dois lados do jogo literário, escapa ao leitor e escapa ao
escritor. "Se a obra de arte proviesse da intenção de fazê-la, podia ser
produto da vontade", escreveu Fernando Pessoa. "Como não provém, só
pode ser, essencialmente, produto do instinto."
Há toda uma parte fluida e
disforme que, para além das estratégias narrativas ou poéticas, muito além da
sofisticação técnica e da influência das tradições literárias, comanda o
ato de escrever. Muitos, sem levar isso em conta, tomam a literatura como uma
experiência elevada e especializada, um ofício para escolhidos, ou bem
adestrados. Voltando a Pessoa. Depois de dizer que a arte média eleva, enquanto a
arte superior liberta, ele faz a distinção: "Elevar e libertar não são a
mesma coisa. (...) A libertação é uma elevação para dentro, como se
crescêssemos em vez de nos alçarmos". Está marcada aí a diferença que
delimita o literário. A literatura não é só o que se escreve, é um mergulho
interior.
O impacto
Grandes escritores conhecem bem
essa zona cinzenta e disforme, que só se manifesta através de vestígios
imprecisos, como o impacto que uma história é capaz de provocar no leitor. Os
escritores mais sábios, como o argentino Adolfo Bioy Casares, em vez de temê-la,
dela tiram partido. Já velho e doente, recolhido em seu apartamento de Buenos
Aires e cercado de criados e enfermeiras, Bioy Casares, já sem forças para
enfrentar a escrita de longos romances, dedicou-se exclusivamente ao conto - ele
que, desde jovem, foi um estupendo contista. Toda manhã, logo após o café,
vestia seu terno e gravata, barbeava-se, perfumava-se, não para sair, mas para
pular da cama de doente para uma poltrona colocada bem a seus pés.
Ali, escrevendo à mão, em
cadernos de espiral, como um escolar, ele rascunhava um novo conto. Mas como saber
se o que escrevia ainda prestava? Como ter certeza de que, apesar da doença e das
limitações físicas, Adolfo Bioy Casares continuava a ser Adolfo Bioy Casares?
Nessas horas, em que temia já não ser capaz de fazer o que sempre soube fazer,
Bioy não recorria a nenhum leitor especializado, a nenhum crítico literário de
renome, ou especialista competente - como, nas horas graves, se procura um médico
especialista no fígado, ou nos pulmões. Isso embora tivesse muitos amigos, em
Buenos Aires, que se encaixavam nessas categorias.
Bioy Casares preferia, em vez
deles, os leitores comuns, os leitores "despreparados". Quase sempre,
mulheres, que ele julgava menos dogmáticas e mais abertas ao novo. Ao fim da
manhã, Bioy pegava sua agenda e, ao acaso, escolhia o nome de uma amiga.
Telefonava e a convidava para almoçar em um pequeno restaurante de bairro, a
três passos de seu apartamento. Sorvia esses momentos de intimidade com
elegância e prazer, tomava seu cálice de vinho mas, em vez da sobremesa,
encerrava o encontro, sempre, com uma leitura. Serenamente, Bioy abria o caderno e
se punha a ler em voz alta o conto que rascunhara naquela manhã. Lia lentamente,
fazendo muitas pausas para observar o semblante, a atenção, as reações
faciais, os rumores da amiga. Ao fim da leitura, esperava um comentário, qualquer
comentário. Contudo, não era exatamente ele que o interessava, mas sim os sinais
mais discretos e invisíveis do impacto que aquela história provocara em sua
ouvinte. Se a reação era forte, apaixonada, o conto valia a pena e ele o
guardava para continuar a escrever em outra ocasião. Se, ao contrário, recebia
em troca o silêncio e a apatia, ao voltar para seu quarto de velho, limitava-se a
arrancar a página do caderno e atirá-la no lixo, entre restos de esparadrapos e
caixas vazias de remédio.
O impacto, sua presença, ou
ausência: isso era tudo o que interessava a Bioy Casares. Muitos críticos o
descrevem como um escritor cerebral e dotado de técnica impecável, o que de fato
foi. Mas, muito mais que isso, Bioy foi um escritor atento às sutilezas e
imprecisões que cercam o ato de escrever. O que se perdeu, na trilha da
literatura especializada, é justamente este contato com o imprevisto, que Bioy
Casares prezava tanto e que, por fim, define a própria literatura - e demarca a
diferença entre ela e outros escritos. Perdido este elo, desprezado, a literatura
passou a ser observada a distância, como um objeto gelado ou, ao contrário, um
objeto ameaçador. Romper com essa separação, desvencilhar-se da perspectiva
especializada e voltar à força sedutora dos livros, é, hoje, a grande
subversão. Basta lembrar de Bioy, em sua mesa de restaurante, lendo e sorvendo as
reações da amiga, para entender que, na literatura, o que interessa mesmo é
muito pouco, e é quase invisível, e é absolutamente secreto.
Há uma imagem que ajuda a
entender o que aconteceu. Imaginemos que, depois dos anos 50, com a expansão das
teorias literárias, dos estudos em semiologia e lingüística, das escolas
estruturalistas, da semântica e da análise genética, a literatura - pobre
literatura - foi levada, como os célebres neuróticos que batiam à porta de
Sigmund Freud, a se deitar em um divã. Ela se tornou, desde então, matéria de
análise - objeto (e vítima, podemos acrescentar) de um sofisticado processo de
dissecação. Desde então, uma plêiade de especialistas, de formação e
prestígio variados - lingüistas, semiólogos, historiadores, sociólogos,
psicanalistas, críticos literários, doutores em teoria, biógrafos, resenhistas
de jornal, etc. - se acha autorizada a interpretar, a dissecar, a
"analisar" a literatura. Romances, contos, poemas se tornaram, a partir
daí, e mais que nunca, objetos de investigação e de inquirição, figuras
passivas e submissas diante de seus sofisticados interrogadores. Objetos nobres, e
enobrecedores, de análise, de comentário e de explicação.
Pois é hora de pedir à
literatura que se erga, que abandone a passividade, e que volte a ocupar o lugar
que, de fato, lhe cabe; que renuncie ao divã e venha se sentar, ela sim, na
poltrona do analista. Que volte ao barco de Hemingway, aos delírios de Virginia,
ao escritório de Kafka, à cozinha de Adélia, ao balcão de Pessoa. Que volte a
viver - e a dar as cartas. E que simplesmente esqueça de nós, intérpretes bem
treinados, arrogantes com nossos títulos e nossas referências, interrogadores e
investigadores profissionais. E que nós tenhamos a coragem de retomar nosso
posto, mais humilde e mais perturbador, de leitores; que tenhamos a humildade, e
mais que isso, a ousadia, de deitar no divã, deixando que grandes ficções e
grandes poemas nos interpretem, e não o contrário. A nós, enquanto sujeitos, e
à realidade que habitamos, ao mundo de que fazemos parte, ao real.
Não somos nós que analisamos a
literatura, que a interpretamos. É ela que nos analisa e nos interpreta. Se lemos
o Doutor Fausto, de Goethe, ou Madame Bovary, de Flaubert, ou o Hamlet de
Shakespeare, ou o Quixote, ou os poemas de um John Ashbery, de um Rimbaud, de um
Neruda, de um João Cabral, na verdade não somos nós que lemos; são esses
escritos extraordinários que nos lêem e nos decifram. São eles que nos arrancam
de nossos sonhos e ilusões, onde estamos imobilizados pela rotina e pela
preguiça, para nos confrontar com o grande rombo, o grande escândalo da vida,
que a palavra sintetiza, metaforiza e carrega. Para que possamos chegar àquele
osso das coisas que, em um texto dos anos 70, Caio Fernando Abreu assim descreveu:
"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é
cada vez mais essencial e verdadeiro". O naufrágio, a tempestade: é a
literatura.
São esses grandes livros que,
lidos, de nosso modo particular, secreto e íntimo, vêm deslocar nossas visões
de mundo, são eles que abalam nossa sensibilidade, que descortinam novas
perspectivas e novas misérias, são eles que nos lêem. Nós, leitores, somos
abalados e devassados pela experiência dessa leitura. Nós, sim, se é que
alguém pode ser reduzido a isso, nos tornamos objetos. Nós sim somos lidos. Como
sair ileso da leitura de G. H.? Como retornar sereno da leitura de Perturbação,
de Thomas Bernhard, ou de Molloy, de Samuel Beckett, ou dos contos de Roberto
Arlt, dos poemas de Herberto Helder, das narrativas de Jorge Luis Borges? Quem
acha que sai, é porque realmente não entrou.
Aqueles que, como Lucia Cherem,
uma das mais sensíveis leitoras de Clarice Lispector, freqüentaram em Paris os
seminários de Hélène Cixous - a mais importante leitora francesa de Clarice -
puderam entender, um pouco melhor, o que realmente se passa. Nos anos 80, Lúcia
participou dos círculos de leitura de Clarice Lispector coordenados por Cixous.
Neles, a francesa pedia a seus parceiros que, depois de ler um trecho qualquer da
escritora, se esforçasse para reproduzir o impacto pessoal, o golpe - as
"facadas", podemos sugerir - que a literatura de Clarice neles
provocara. Alguns choravam, outros se desesperavam, muitos se afundavam em
recordações antigas, ou em meditações perigosas. Nessas horas, Clarice neles
se encarnava. A literatura, que está nos livros, estava muito além dos livros.
Ali, sob a regência de Cixous, se reproduzia o choque que a literatura vem
promover. Ali a literatura tomava corpo - tomava um corpo, vários corpos - e se
mostrava viva. Ali a coisa se encenava, o "isso" de que Clarice falava,
aquilo que, ainda que estando dentro de um livro, não pode ser lido.
Um livro para cada leitor
É essa relação visceral com a
literatura, relação secreta e não-especializada, que agora devemos recuperar.
Na era dos best sellers, das listas de mais vendidos, dos livros de auto-ajuda,
dos manuais do bem viver, dos escritores "de cinema", dos bajuladores de
críticos, dos livros "de escritor para escritor", nessa época
insuportável, é isso que precisamos reencontrar. A leitura é um ato silencioso,
íntimo e intraduzível. O Grande sertão que eu leio não é o Grande sertão que
você lê; nem as Ficções do interlúdio, ou o Bartleby & Cia, ou o
Coração das trevas, ou o Harmada. Livros, grandes ou pequenos livros, só
existem na cabeça do leitor - sempre no singular. Mais ainda: existem, em cada
cabeça, de uma maneira. Daí que cada leitor "lê" um livro diferente,
ainda que leia o mesmo livro. Cada livro, para cada leitor, é um livro. Essa
experiência secreta se ampara nos instrumentos - afetivos, intelectuais,
pessoais, culturais, psicológicos - que cada um de nós carrega consigo. E é por
definição e continua a ser, sempre, secreta.
Secreta e inalienável.
Ninguém precisa conhecer teoria
do cinema para se emocionar, para se deixar abalar por um grande filme. Não é
preciso conhecer teoria musical, nem mesmo saber a existência de fusas e
semifusas, para "embarcar" em uma sinfonia de Malher, ou numa fuga de
Bach. A experiência estética é secreta porque é interior; ela é pessoal
porque a literatura só toma corpo na mente e nos nervos de cada leitor. Submetido
ao impacto de um livro, cada leitor a ele se abre (ou se fecha) e permite (ou
recusa) que ele o abale. Por muito tempo, li José Saramago com grande
desinteresse; seus romances me pareciam artificiais e cansativos; eu avançava com
grande desânimo e só porque me parecia obrigatório (mas uma leitura pode ser
obrigatória?) ler. Até que um dia, pouco antes de embarcar em uma longa viagem
aérea, ganhei de presente o Ensaio sobre a cegueira, que Saramago publicou em
1995. Sem pensar muito no que fazia, atirei-o em minha mala de mão. Após a
decolagem, sem coisa melhor para fazer, comecei a lê-lo - e não o larguei mais.
Naquele dia, naquele vôo, naquela leitura (e não em outra) alguma coisa se
rompeu dentro de mim. Em mim, e não no livro, que sempre esteve ali à minha
espera. Alguma coisa se desarticulou, e dessa ruptura, através dela, consegui -
enfim! - entrar na obra fabulosa de Saramago. De volta para casa, retomei livros
que havia largado pelo meio, como O ano da morte de Ricardo Reis, ou O evangelho
segundo Jesus Cristo. E cada um deles me pareceu melhor que o outro.
Se relato essa pequena
experiência pessoal, não é porque ela seja emblemática, ou especular, mas só
porque ela ilustra, penso, o modo como um livro bate - ou rebate - em nós. Para
um mesmo leitor, em momentos diferentes, um livro é um outro livro. A literatura
(a arte) é um terreno instável, movediço, que não suporta medições. É o
terreno da complexidade, como num puzzle em que as peças nunca se encaixam e,
mais que isso, em vez de permanecerem imóveis à espera de nossa ação, se
deslocam, se tragam, se anulam. Para cada livro, um leitor é um leitor diferente.
Não existe O Leitor, nem existe O Livro, existem leitores e livros. Um, e outro,
e outro - e nada mais.
Ainda assim, a partir da segunda
metade do século 20, com a expansão da teoria literária, a literatura se
converteu em um objeto "de" e "para" especialistas. Existem
hoje muitos escritores que declaram, serenamente, que escrevem "para outros
escritores". Existem ficcionistas e poetas, alguns de sucesso e prestígio,
que escrevem para os críticos - isto é, para responder a suas expectativas e
para seduzi-los com aquilo que supostamente desejam ler. Em palavras simples: que
escrevem para agradar. Muitos escritores, sobretudo aqueles formados nos bancos
das faculdades de Letras, tendem a achar que a literatura é matéria de
conhecimento. Matéria fria e impessoal, que deve ser manipulada, classificada e
vigiada. Ela se tornou, assim, um mundo fechado em que poetas dialogam com outros
poetas, tradições influenciam e interferem em outras tradições, vozes
especializadas se comunicam e disputam espaços de prestígio - enquanto o leitor,
o leitor comum de romances e poemas, o sujeito miserável (porque ele se torna
miserável em sua solidão) fica simplesmente de fora.
No entanto, a leitura é tudo
aquilo que resta não só para muitos leitores, mas também para muitos
personagens, como a célebre Emma Bovary. Ocorre que a entrega de Bovary aos
livros, o modo que ela se deixa afetar, enlouquecer mesmo por eles, costumam ser
tratados como uma doença, ou ao menos um mal psíquico. Até o dicionário já se
refere ao "bovarismo" como a tendência de certos espíritos a se
deixarem invadir por ficções - quer dizer (assim se pensa), por mentiras. Mas é
claro que ficções e mentiras não são a mesma coisa. E, no entanto, se as
ficções e os poemas não nos invadissem, se não nos agitassem e tumultuassem
nosso interior, para que mais poderiam servir? Para render direitos autorais? Para
enriquecer editores e editoras? Para alimentar a fome da crítica e da imprensa
literária? Para a felicidade dos livreiros?
Experiências
Vem-me aqui, é inevitável
- pois a literatura é mesmo o lugar da intimidade -, uma outra história pessoal.
Lembro-me quando, aos dezessete anos de idade, por mero acaso, li pela primeira
vez A paixão segundo G. H., o grande romance de Clarice. A primeira vez em que li
uma novela de João Gilberto Noll, um grande poema de Pessoa, a primeira vez em
que li um romance de Virginia Woolf, ou um poema de João Cabral. Todos nos
lembramos da situação em que estávamos quando recebemos uma notícia forte -
como, para nós que vivemos em um mundo norte-americano, foram o assassinato de
Kennedy, ou o ataque ao World Trade Center. No primeiro caso, eu estava na casa de
meus pais, em meu quarto de menino, montado sobre um banquinho de cozinha,
procurando um livro em uma prateleira mais alta. No segundo, saía de uma sessão
de psicanálise e entrei em uma farmácia para comprar um medicamento; na fila do
caixa, vi na TV aqueles aviões que se chocavam contra as torres, e perguntei ao
atendente, só por perguntar, que filme espantoso era aquele.
Também me lembro que comecei a
ler G. H., e não parei mais, em uma tarde de sol que passei, sozinho, no Jardim
Botânico do Rio de Janeiro. Li pela primeira vez uma novela de Noll, Hotel
Atlântico, num fôlego só, durante uma noite de chuva forte, em meu apartamento
em Botafogo, no Rio. O primeiro romance de Virginia Woolf que li foi Orlando, em
uma praia de Santa Catarina, durante um estranho carnaval. O primeiro poema de
João Cabral, O cão sem plumas - até hoje meu poema preferido entre tantos que
ele escreveu -, que li nos bancos do Colégio Santo Inácio, no Rio, onde estudei.
Foram, todas elas, experiências marcantes e devastadoras, tão inesperadas quanto
saber que um presidente foi assassinado, ou um grande edifício destruído por
aviões.
A leitura é uma experiência
misteriosa, de que participam não só o texto que se lê, mas a imaginação, a
memória, a história, a sensibilidade de quem lê. Na "decifração" de
um escrito, mesmo entre especialistas, não entram em jogo apenas a bagagem
literária, a erudição acumulada e a perícia técnica, mas também o rasto
existencial. Cada um lê com o que tem, lê com o que é, lê como pode. Não
existe leitura perfeita, nem completa; muita coisa, mesmo para os leitores
treinados, sempre fica de fora. É esse aspecto inesgotável da literatura que lhe
confere um caráter mágico. Não é preciso fazer "realismo mágico",
ou "literatura fantástica" para estar brincando com fogo quando se
escreve.
Voltando a Pessoa - agora
encarnado em Alberto Caeiro, seu heterônimo mais forte. Em um de seus fabulosos
poemas, ele diz: "Assim como falham as palavras quando queremos exprimir
qualquer pensamento,/ Assim faltam os pensamentos quando queremos pensar qualquer
realidade". É nessa falha que a literatura se impõe; é dessa falha, dessa
lacuna inevitável, que sempre se trata. Toda leitura é feita de mal-entendidos.
Isto é, de imagens trocadas, de falhas, de imprecisões, de suposições. Toda
literatura se faz disso também. Clarice Lispector dizia: "Não sou eu quem
escrevo, é o livro que me escreve". Podemos dar um salto e pensar em um
conto de Frans Kafka, O abutre: "Era um abutre que me dava grandes picadas
nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em
quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina".
Esse abutre, que escava e dilacera, mas fascina, é a literatura.
Tudo
aquilo que julgamos "entender bem", quer dizer, finalizar, dominar,
possuir, está fora do literário. A leitura de um grande livro mexe com o que
temos de mais instável e de mais buliçoso, pois joga com o inacessível e o
remoto. Não é fácil ler um grande livro, mas é inesquecível. Que a literatura
volte para a poltrona, e que, expostos à sua força, nos sobre coragem para
suportar, mas também para sorver, a grande devastação.
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