Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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veja - 2 de junho de 2004
Isaura e 'Isóla'

Roberto Pompeu de Toledo

Considerações em torno de uma famosa escrava e o que ela representa, no Brasil e na China

É uma injustiça considerar que na China os direitos humanos não têm vez. Os chineses em peso, as autoridades inclusive, há anos dão mostras de uma militância apaixonada em favor dos direitos humanos de alguém muito conhecido dos brasileiros: a escrava Isaura. A novela da Globo que, com Lucélia Santos no papel principal, retomou o clássico romance de Bernardo Guimarães foi, como se sabe, um sucesso de arrasar quarteirão no país de Mao Tsé-tung. Seguiram-se a tradução do romance, a adaptação para fotonovela e outros subprodutos – tudo consumido na escala dos milhões de cópias, como é praxe na China. "Baxi? Isóla, Isóla", costumam dizer, até hoje, vinte anos passados, os chineses, quando identificam nossos nacionais. "Baxi" é Brasil, e "Isóla" é Isaura. Na China, Pelé não está com nada – inclusive porque chinês não é muito de futebol. Isaura faz as vezes de Pelé.

Na semana passada, em companhia dos ministros, governadores, parlamentares e empresários que compunham a comitiva do presidente Lula à China, lá estava ela, de novo – Isaura, em pessoa. Ou melhor, Lucélia Santos. Talvez ela não cause mais nas ruas, depois de tantas visitas ao país, o mesmo tumulto que provocava vinte anos atrás. Mas o mito continua vivo a ponto de justificar nova empreitada no ramo da teledramaturgia, uma série com uma história de amor entre uma brasileira e um chinês. A série será filmada no Brasil e na China, e a Lucélia, claro, caberá o papel principal. Ela continua a namoradinha da China.

Deixemos Lucélia, que não faz mais que o seu papel. Falemos de Isaura, por quem os chineses derramaram lágrimas que, se canalizadas para o conveniente leito, teriam rasgado um novo Yang Tsé, o rio que corta o país de uma ponta a outra. Isaura é uma personagem tão pitoresca quanto reveladora. Logo no primeiro capítulo do livro de Bernardo Guimarães, publicado em 1875, ela surge tocando piano, na sala da casa. Uma escrava que toca piano! E na sala! O autor a descreve como bela e bondosa. Ficamos sabendo que teve educação esmerada e, entre outras prendas, aprendeu a falar francês. Uma escrava que fala francês! Isso ainda é pouco. A "tez", nos revela Bernardo Guimarães, enquanto a bela continua a encher a sala com os sons do piano, "é como o marfim do teclado". Eis o máximo: Isaura é branca! Uma interlocutora lhe diz: "És formosa, e tens uma cor tão linda que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano".

O romance pretendia ser um libelo contra a escravidão. Foi publicado ainda antes que a campanha abolicionista tomasse corpo e nesse sentido lhe cabe, como aos versos de Castro Alves, certo pioneirismo. Guardadas as proporções, exerceria no Brasil a função que exerceu, nos Estados Unidos, A Cabana do Pai Tomás, publicado em folhetins, entre 1851 e 1852, pela escritora H.B. Stowe. Ambos os livros tinham por alvo passar a mensagem de quão infame é a escravidão ao apresentar, para surpresa de muitos, a novidade de que os escravos eram seres humanos. Sim, seres humanos, capazes de sentimento e de nobres atitudes! O Pai Tomás que tanta comoção causou em seu tempo é hoje um personagem desmoralizado. É o protótipo do "preto bom". Não passa de um colaboracionista do sistema escravista. Mas, pelo menos, é negro. Já Isaura nem negra é. Nem nisso conseguimos ganhar dos americanos. Para tornar sua personagem palatável aos leitores, Bernardo Guimarães a criou filha de branco com mulata. A cor da pele não lhe permitiria passar por negra nem pelos frouxos critérios adotados, em seu sistema de cotas, pela Universidade de Brasília.

A circunstância de Isaura ser branca, e tão branca quanto as teclas baixas do piano, subverte os propósitos iniciais do romance. No fundo, o autor está reclamando, e convidando os leitores a reclamar com ele, não da injustiça de Isaura ser escrava – mas da injustiça de ser considerada negra. Permeia o romance de Bernardo Guimarães um racismo que nem por ser ingênuo e inconsciente é menos racismo. O autor julgou – e, provavelmente, julgou certo – precisar pintar sua escrava de branco para obter os efeitos desejados. Se negra, ela não mereceria a mesma simpatia e a mesma compaixão. A novela da Globo, um século depois, conservou-a branca. Quem ganhou o papel foi Lucélia Santos, não Ruth de Souza.

E os chineses com isso? Por que teriam caído de amores por Isaura? Quem já viu uma representação desse gênero campeão de preferência, no país, que é a ópera chinesa, tem um começo de resposta. As histórias são sempre meio descabeladas e infantis, como a de Bernardo Guimarães. No tempo do comunismo brabo, o regime aproveitou tal preferência popular para sapecar-lhe O Oriente É Vermelho, um épico da adesão ao maoísmo. A peça ficou anos em cartaz, e dela não foram poupados nem os visitantes estrangeiros, a quem se reservava sempre uma noite para vê-la. Com A Escrava Isaura, os chineses acompanharam a luta de certo povo distante – não pelo vermelho, mas pela cor branca. Sem entender bem o que isso significava, gostaram.

 
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