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- 2 de junho de 2004
Isaura e 'Isóla'
Roberto
Pompeu de Toledo
Considerações em torno de uma famosa
escrava e o que ela representa, no Brasil e na China
É uma injustiça considerar que na China os
direitos humanos não têm vez. Os chineses em peso, as autoridades inclusive, há
anos dão mostras de uma militância apaixonada em favor dos direitos humanos de
alguém muito conhecido dos brasileiros: a escrava Isaura. A novela da Globo que,
com Lucélia Santos no papel principal, retomou o clássico romance de Bernardo
Guimarães foi, como se sabe, um sucesso de arrasar quarteirão no país de Mao
Tsé-tung. Seguiram-se a tradução do romance, a adaptação para fotonovela e
outros subprodutos – tudo consumido na escala dos milhões de cópias, como é
praxe na China. "Baxi? Isóla, Isóla", costumam dizer, até hoje, vinte
anos passados, os chineses, quando identificam nossos nacionais. "Baxi"
é Brasil, e "Isóla" é Isaura. Na China, Pelé não está com nada –
inclusive porque chinês não é muito de futebol. Isaura faz as vezes de Pelé.
Na semana passada, em companhia dos ministros,
governadores, parlamentares e empresários que compunham a comitiva do presidente
Lula à China, lá estava ela, de novo – Isaura, em pessoa. Ou melhor, Lucélia
Santos. Talvez ela não cause mais nas ruas, depois de tantas visitas ao país, o
mesmo tumulto que provocava vinte anos atrás. Mas o mito continua vivo a ponto de
justificar nova empreitada no ramo da teledramaturgia, uma série com uma
história de amor entre uma brasileira e um chinês. A série será filmada no
Brasil e na China, e a Lucélia, claro, caberá o papel principal. Ela continua a
namoradinha da China.
Deixemos Lucélia, que não faz mais que o seu
papel. Falemos de Isaura, por quem os chineses derramaram lágrimas que, se
canalizadas para o conveniente leito, teriam rasgado um novo Yang Tsé, o rio que
corta o país de uma ponta a outra. Isaura é uma personagem tão pitoresca quanto
reveladora. Logo no primeiro capítulo do livro de Bernardo Guimarães, publicado
em 1875, ela surge tocando piano, na sala da casa. Uma escrava que toca piano! E
na sala! O autor a descreve como bela e bondosa. Ficamos sabendo que teve
educação esmerada e, entre outras prendas, aprendeu a falar francês. Uma
escrava que fala francês! Isso ainda é pouco. A "tez", nos revela
Bernardo Guimarães, enquanto a bela continua a encher a sala com os sons do
piano, "é como o marfim do teclado". Eis o máximo: Isaura é branca!
Uma interlocutora lhe diz: "És formosa, e tens uma cor tão linda que
ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano".
O romance pretendia ser um libelo contra a
escravidão. Foi publicado ainda antes que a campanha abolicionista tomasse corpo
e nesse sentido lhe cabe, como aos versos de Castro Alves, certo pioneirismo.
Guardadas as proporções, exerceria no Brasil a função que exerceu, nos Estados
Unidos, A Cabana do Pai Tomás, publicado em folhetins, entre 1851 e 1852,
pela escritora H.B. Stowe. Ambos os livros tinham por alvo passar a mensagem de
quão infame é a escravidão ao apresentar, para surpresa de muitos, a novidade
de que os escravos eram seres humanos. Sim, seres humanos, capazes de sentimento e
de nobres atitudes! O Pai Tomás que tanta comoção causou em seu tempo é hoje
um personagem desmoralizado. É o protótipo do "preto bom". Não passa
de um colaboracionista do sistema escravista. Mas, pelo menos, é negro. Já
Isaura nem negra é. Nem nisso conseguimos ganhar dos americanos. Para tornar sua
personagem palatável aos leitores, Bernardo Guimarães a criou filha de branco
com mulata. A cor da pele não lhe permitiria passar por negra nem pelos frouxos
critérios adotados, em seu sistema de cotas, pela Universidade de Brasília.
A circunstância de Isaura ser branca, e tão
branca quanto as teclas baixas do piano, subverte os propósitos iniciais do
romance. No fundo, o autor está reclamando, e convidando os leitores a reclamar
com ele, não da injustiça de Isaura ser escrava – mas da injustiça de ser
considerada negra. Permeia o romance de Bernardo Guimarães um racismo que nem por
ser ingênuo e inconsciente é menos racismo. O autor julgou – e, provavelmente,
julgou certo – precisar pintar sua escrava de branco para obter os efeitos
desejados. Se negra, ela não mereceria a mesma simpatia e a mesma compaixão. A
novela da Globo, um século depois, conservou-a branca. Quem ganhou o papel foi
Lucélia Santos, não Ruth de Souza.
E os chineses com isso? Por que teriam caído de
amores por Isaura? Quem já viu uma representação desse gênero campeão de
preferência, no país, que é a ópera chinesa, tem um começo de resposta. As
histórias são sempre meio descabeladas e infantis, como a de Bernardo
Guimarães. No tempo do comunismo brabo, o regime aproveitou tal preferência
popular para sapecar-lhe O Oriente É Vermelho, um épico da adesão ao
maoísmo. A peça ficou anos em cartaz, e dela não foram poupados nem os
visitantes estrangeiros, a quem se reservava sempre uma noite para vê-la. Com A
Escrava Isaura, os chineses acompanharam a luta de certo povo distante –
não pelo vermelho, mas pela cor branca. Sem entender bem o que isso significava,
gostaram.
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