Instinto de
nacionalidade
Ensaio escrito em 1873 por Machado de
Assis (foto)
sobre as suas expectativas para a literatura brasileira.
Machado de Assis
NOTÍCIA
DA ATUAL LITERATURA BRASILEIRA
Quem
examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do
pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante
preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de
Gonçalves Dias, Porto Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração
já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José
Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal
acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas
acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao
pensamento nacional.
Esta
outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se
fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma
geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.
Sente-se
aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás mal formada ainda,
restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de
poesia e literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as
obras que trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste
ponto uma questão de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os
poemas de Uruguai e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo;
mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados e amados, como precursores
da poesia brasileira.
A
razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram
os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto que outros, Gonzaga
por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das
faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não
se lhes perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto.
Dado
que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa
do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu
nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura
aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não
haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência
política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo a metrópole e a
colônia criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da
educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar
certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que
não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.
Reconhecido
o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos tempos,
conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma
nacionalidade literária, esta investigação (ponto de divergência entre
literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado levar-me
longe dos limites deste escrito. Meu principal objeto é atestar o fato atual;
ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura
mais independente.
A
aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a
história e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros
poemas do egrégio poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas
há muito pela civilização, foi estudada nas memórias que nos deixaram os
cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um
idílio, qual um canto épico.
Houve
depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava
toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que
era verdade, - e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a
existência da raça extinta, tão diferente da raça triunfante, - o que parece
um erro.
É
certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem
dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos
vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade,
não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as
condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que, como o Sr.
Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país, esses podem logicamente
excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que, depois das
memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias,
não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro
seria constitui-lo um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual
fora certamente a sua absoluta exclusão. As tribos indígenas, cujos usos e
costumes João Francisco Lisboa cotejava com o livro de Tácito e os achava tão
semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é certo, da região que por
tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as freqüentou colheu
informações preciosas e no-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos.
A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar
a imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas
regiões, consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.
Esta
é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais
os vemos n'Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro
com o civilizado, tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns
quadros de singular efeito dos quais
citarei,
por exemplo, a lracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e
brilhante escritor.
Compreendendo
que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas
apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos
escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do
tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e
larga matéria de estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana
cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam a poetas é prosadores. O
romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que
devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e
ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de Alencar,
Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora, e alguns mais.
Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho
por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de
assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa
literatura. Gonçalves Dias por exemplo, com poesias próprias, seria admitido no
panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros poemas americanos e certo
número de composições, pertencem os seus verses pelo assunto a toda a mais
humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e
excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à
literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores
lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado.
O
mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria
longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse
necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra
americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não
é o mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e
cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio
César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o
território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio
universal, um poeta essencialmente inglês. Não há dúvida que uma literatura,
sobretudo uma literatura nascente, deve principal- mente alimentar-se dos assuntos
que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas
que a empobreçam.
O
que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o
torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no
tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um
escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia
ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer
palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo
interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial. Estes e outros
pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos uma crítica
doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não
a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços,
sem a influência quotidiana e profunda que deveram exercer.
A
falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa
literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos
de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os
senões se apontem, que o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos
altos destinos que a esperam.
O
ROMANCE
De
todas as formas várias as mais cultivadas atualmente no Brasil são o romance e a
poesia lírica; a mais apreciada é o romance, como aliás acontece em toda a
parte, creio eu. São fáceis de perceber as causas desta preferência da
opinião, e por isso não me demoro em apontá-las. Não se fazem aqui (falo
sempre genericamente) livros de filosofia, de lingüística, de crítica
histórica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil
acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado
delas. O romance pode-se dizer que domina quase exclusivamente. Não há nisto
motivo de admiração nem de censura, tratando-se de um país que apenas entra na
primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é
desmerecer o romance, obra d'arte como qualquer outra, e que exige da parte do
escritor qualidades de boa nota.
Aqui
o romance, como tive ocasião de dizer busca sempre a cor local. A substância,
não menos que os acessórios, reproduzem geralmente a vida brasileira em seus
diferentes aspectos e situações. Naturalmente os costumes do interior são os
que conservam melhor a tradição nacional; os da capital do país, e em parte, os
de alguma cidades, muito mais chegados à influência européia, trazem já uma
feição mista e ademanes diferentes. Por outro lado, penetrando no tempo
colonial, vamos achar uma sociedade diferente, e dos livros em que ela é tratada,
alguns há de mérito real.
Não
faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e de análise, e
um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achara muita página
instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque
a nossa índole não nos chame para aí, ou porque seja esta casta de obras ainda
incompatível com a nossa adolescência literária.
O
romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do sentimento, quadros
da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo mui adequada ao espírito do
nosso povo. Há em verdade ocasiões em que essas qualidades parecem sair da sua
medida natural, mas em regra conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita
coisa interessante, muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o
assunto o pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e
pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste escrito,
que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me demorar em
pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio até que um grande amor a este
recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas (como dizem os mestres) de
mediano efeito, se não avultam no escritor outras qualidades essenciais.
Pelo
que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comuns os
exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento
incontestável.
Esta
é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das
mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de
observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem
são a partilha do maior número.
As
tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles
serão de princípio a fim irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica
austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa
escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura
brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já
notável mérito. As obras de que falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como
hóspedes, mas não se aliaram à família nem tomaram o governo da casa Os nomes
que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico, os
escritores que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, - porque há
aqui muito amor a essas comparações - são ainda aqueles com que o nosso
espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os Gozlans, os
Nervals.
Isento
por esse lado o romance brasileiro, não menos o está de tendências políticas,
e geralmente de todas as questões sociais, - o que não digo por fazer elogio,
nem ainda censura, mas unicamente para atestar o fato. Esta casta de obras,
conserva-se aqui no puro domínio de imaginação, desinteressada dos problemas do
dia e do século, alheia às crises sociais e filosóficas. Seus principais
elementos são, como disse, a pintura dos costumes, e luta das paixões, os
quadros da natureza, alguma vez o estudo dos sentimentos e dos caracteres; com
esses elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria numerosa e a
muitos respeitos notável.
No
gênero dos contos, à maneira de Henri Murger, ou à de Trueba, ou à de Ch.
Dickens, que tão diversos são entre si, têm havido tentativas mais ou menos
felizes, porém raras, cumprindo citar, entre outros, o nome do Sr. Luís
Guimarães Júnior, igualmente folhetinista elegante e jovial. É gênero
difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência
lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o
público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.
Em
resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma
extensão, é um dos títulos da presente geração literária. Nem todos os
livros, repito, deixam de se prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a
houvéssemos em condições regulares creio que os defeitos se corrigiriam, e as
boas qualidades adquiririam maior realce. Há geralmente viva imaginação,
instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias e
além de tudo isto agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos
excelentes e os há de dar em muito maior escala.
A POESIA
A
ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que
apareceram no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos
anos, como Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes
excitam na nossa mocidade legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de
não menor porte. Os que sobreviveram calaram as liras; e se uns voltaram as suas
atenções para outro gênero literário, como Bernardo Guimarães, outros vivem
dos louros colhidos, se é que não preparam obras de maior tomo, como se diz de
Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste último prazo
outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra, um
Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães,
um Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para
mostrar que a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como
Castro Alves, pertence à eternidade, seus versos podem servir e servem de
incentivo às vocações nascentes.
Competindo-me
dizer o que cho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de recentíssima data,
melhor direi a uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem graves, cujos
dotes - valiosos e que poderá dar muito de si, no caso de adotar a necessária
emenda.
Não
faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente
ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima
disse, todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado,
bastando-me citar neste caso as outras duas recentes obras, as Miniaturas de
Gonçalves Crespo e os Quadros de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou
assinalar. Acrescentarei que também não falta à poesia atual o sentimento da
harmonia exterior. Que precisa ela então? Em que peca a geração presente?
Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na intrepidez às vezes da
expressão, na impropriedade das imagens na obscuridade do pensamento. A
imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à
obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na
alta poesia lírica, - na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética;
na poesia íntima e elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um
amaneirado no dizer e no sentir, o que tudo mostra na poesia contemporânea grave
doença, que é força combater.
Bem
sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e
expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os
campos do Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de
vegetação, - não há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por
isso mesmo que são grandes, devem ser trazidos com oportunidade e expressos com
simplicidade.
Ambas
essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem
modelos, que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo
Guimarães, Varela e Álvares de Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar
que a oportunidade e a simplicidade são cabais para reproduzir uma grande imagem
ou exprimir uma grande idéia. N'Os Timbiras, há uma passagem em que o velho Ogib
ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos outros guerreiros e vive só. A
fala do ancião começa com estes primorosos versos:
São
torpes os anuns, que em bandos folgam.
São
maus os caititus que em varas pascem:
Somente
o sabiá geme sozinho,
E
sozinho o condor aos céus remonta.
Nada
mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não exprimiria a
idéia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora para
desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a
literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse,
imaginação; mas esta tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles
rompem as leis e as regras, é porque as fazem novas, é porque se chamam
Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.
Indiquei
os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por
exemplo, a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho
menos condenável o abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz
grandes efeitos, não pode constituir objeto de imitação, nem sobretudo
elementos de escola.
Há
também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas
vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus
versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade
de vocabulário e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a
imaginação lhe dê os seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto.
Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho por incorrigíveis; a crítica
os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às vocações as
melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente
escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande
vocação poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons
elementos entrariam em melhor caminho, e à poesia nacional restariam as
tradições do período romântico.
O TEATRO
Esta
parte pode reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro
brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se
representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que
não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje,
que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma
esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte.
Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a
mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?
E
todavia a continuar o teatro, teriam as vocações novas alguns exemplos não
remotos, que muito as haviam de animar. Não falo das comédias do Pena, talento
sincero e original, a quem só faltou viver mais para aperfeiçoar-se e empreender
obras de maior vulto; nem também das tragédias de Magalhães e dos dramas de
Gonçalves Dias, Porto Alegre e Agrário. Mais recentemente, nestes últimos doze
ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram então os dramas e
comédias do Sr. J. de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola
realista e cujas obras Demônio Familiar e Mãe são de notável merecimento. Logo
em seguida apareceram várias outras composições dignas do aplauso que tiveram
tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimarães,
Quintino Bocaiúva e alguns mais, mas nada disso foi adiante. Os autores cedo se
enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos
hoje, que é nada.
A
província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá
se representa o drama e a comédia, - mas não aparece, que me conste, nenhuma
obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado este ponto.
A LÍNGUA
Entre
os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da pureza da linguagem.
Não é raro ver intercalados em bom estilo os solecismos da linguagem comum,
defeito grave, a que se junta o da excessiva influência da língua francesa. Este
ponto é objeto de divergência entre os nossos escritores. Divergência digo,
porque, se alguns caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros há
que os adotam por princípio, ou antes por uma exageração de princípio.
Não
há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades
dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é um erro
igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu
riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto,
certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do
estilo e ganham direito de cidade.
Mas
se isto é um fato incontestável, e se é verdadeiro o principio que dele se
deduz, não me parece aceitável a opinião que admite todas as alterações da
linguagem, ainda aquelas que destroem as leis da sintaxe e a essencial pureza do
idioma. A influência popular tem um limite, e o escritor não está obrigado a
receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem
correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este
respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.
Feitas
as exceções devidas não se lêem muito os clássicos no Brasil. Entre as
exceções poderia eu citar até alguns escritores cuja opinião é diversa da
minha neste ponto, mas que sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém,
não se lêem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje
um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as
formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força
de velhas se fazem novas, - não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham
os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se
enriquece o pecúlio comum.
Outra
coisa de que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe
afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e
depressa; tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos.
Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se
elas não fossem neste caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta
ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns
mais.
Aqui
termino esta notícia. Viva imaginação, delicadeza e força de sentimentos,
graças de estilo, dotes de observação e analise, ausência às vezes de
reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local,
eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literaturas brasileira,
que há dado bastante e tem certíssimo futuro. Aqui termino esta notícia. Viva
imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de
observação e analise, ausência às vezes de reflexão e pausa, língua nem
sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e
as excelências da atual literaturas brasileira, que há dado bastante e tem
certíssimo futuro.
|