O Índio Afonso -
romance
O que diz o
crítico
Basílio de
Magalhães
"O Índio Afonso" é uma
novela na qual o autor começa confessando que a sua musa "é essencialmente
sertaneja: sertaneja de nascimento, sertaneja de hábito, sertaneja por
inclinação".
Bernardo Guimarães não se filiou na
escola indianista pura; ao contrário, marca a diferenciação da mesma, pelo
escopo de integrar nossa literatura, em vez dos tipos extremes de mescla, os de
cruzamento mais comum, isto é, o mameluco e o cafuzo, nos quais são
categorizáveis "Jupira" e "O Índio Afonso".
Este último não pertence àquela
famosa escola, como parece indicar o título: porque Affonso é um mestiço já
semi-civilizado, que apenas conserva dos instintos de herança ou atavismo éticos
o apego fetíchico ao Paranaíba, seu rio natal e tutelar, assim com o fazer
justiça pelas próprias mãos. É uma violento drama rústico, que se passa em
Goiás, nas circunvizinhas de Catalão, tão conhecidas de Bernardo Guimarães.
Mais do que a patentear o pouco influxo da civilização no cabal desbaste das
arestas morais do mestiço, afeito antes à vida soturna das matas do que ao
ruído das cidades, -- visou quiçá o novelista a mostrar como é que surge no
interior o "bandido", ou out-low, cuja geratriz, quase sempre, é
a vingança seguida de homicídio, quando não é uma forma de reação contra a
injustiça social ou contra a inércia das autoridades.
As cenas mais cuidadas são a do
bárbaro mutilamento de Toruma, praticado por Afonso (capítulo V), e a da
perseguição deste pela escolta encarregada de aprisioná-lo (capítulo VIII).
Esta última tem algo de semelhante à de Ajuricaba, morubixada dos índios
manáus, precipitando-se nas águas do rio Negro (ver José Coutinho de Oliveira
em "Lendas Amazônicas, páginas 59-63).
Em Minas, na minha meninice, ouvi
muitas vezes empregar-se "turuna" no sentido de "valentão".
Teria Bernardo Guimarães aproveitado o termo popular para a denominação daquela
personagem, ou foi a sua novela que lhe deu origem? Consigna ele, no seu livro, as
expressões "botar sentido" e cueté de cachaça", bem como, entre
outros do calão vulgar, os termos "melro" (na accepção de esperto) e
"mangoala" (espécie de cacete, que comumente se pronuncia
"manguára").
Prefácio do O Índio Afonso
Ao leitor
A notícia começa por estas palavras: — Índio
Afonso, herói de um dos contos de Bernardo Guimarães, etc... — Semelhante
notícia a ser exata vem desmanchar completamente a figura do meu herói, a quem
atribuí caráter magnânimo, índole bondosa e sentimentos generosos.
Ora, em vista disto, para que não se pense que em
meu conto tive o propósito de fazer a apologia de um facínora, cumpre-me
declarar o que há de real e de fictício em minha narrativa, e em que baseei para
prestar ao Índio Afonso o caráter com que aparece em meu romance.
Como se vê, o Índio Afonso é personagem real e
vivo ainda. Sua figura, costumes, maneiras, tom de voz, modo de vida são tais
quais os descrevi, pois tive ocasião de vê-lo e conversar com ele.
Os dois sobrinhos que andam sempre em sua companhia
também realmente existem; Caluta, Batista e Toruna são porém meras criações
de minha imaginação, assim como o são quase todos os feitos e proezas que faço
o meu herói praticar.
É verdade que quando estive na província de
Goiás em 1860 e 1861, ouvi contar diversas façanhas do afamado caboclo; mas
quando me lembrei, há pouco mais ou menos um ano, de escrever este romance, já
delas me restava apenas uma vaga-reminiscência e, por isso é possível que uma
ou outra tenha algum laivo de veracidade.
Para desenhar-lhe o caráter baseei-me no que em
Catalão ouvia dizer a todo o mundo. Todos o pintavam com o caráter e o costumes
que lhe atribuo, e era voz geral que ele só havia cometido um homicídio, e isso
para defender ou vingar um seu amigo ou pessoa de família.
A descrição dos lugares também é feita ao
natural, pois os percorri e observei mais de uma vez. Com o judicioso e ilustrado
crítico o Sr. Dr. J. C. Fernandes Pinheiro, entendo que a pintura exata, viva e
bem traçada dos lugares deve constituir um dos mais importantes empenhos do
romancista brasileiro, que assim prestará um importante serviço tornando mais
conhecida a tão ignorada topografia deste vasto e belo país.
Por isso faço sempre passar a ação dos meus
romances em lugares que me são conhecidos, ou pelo menos de que tenho as mais
minuciosas informações, e me esforço por dar às descrições locais um
traçado e colorido o mais exato e preciso, o menos vago que me é possível.
Eis o que há de real em meu romance. Se porém o
Índio Afonso é um bandido ordinário, um facínora feroz e ignóbil como tantos
outros, pouco me importa.
O Índio Afonso de meu romance não é o facínora
de Goiás; é pura criação de minha fantasia.
Ouro Preto, 28 de fevereiro de 1873.
Bernardo Guimarães
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