Obras indianistas de
BG(*)
por Alphonsus de Guimaraens Filho
O indianista Bernardo Guimarães,
talvez pelo fato de José de Alencar ter alcançado grande notoriedade ao
utilizar-se do aborígene como elemento de ficção, tem passado
propriamente desapercebido, sobretudo se compararmos o êxito de sua literatura
abolicionista com essa que praticou em três dos seus livros: o Ermitão de
Muquém, o Índio Afonso e Jupira.
Bernardo Guimarães estava bem
consciente do que fazia ao abordar a vida dos selvagens. Assim, dirigindo-se ao
leitor em O Ermitão de Muquém, advertirá que, quando o seu herói
Gonçalo passa a viver entre os indígenas, "aqui força é que o meu romance
tome assim ares de poema". Os ares de poema que têm, aduzimos nós, tanto O
Guarani quanto Iracema do nosso Alencar. Mas o que interessa a Bernardo
Guimarães, ao comunicar-se com o leitor antes de narrar a estória da romaria da
cidade goiana de Muquém, é deixar claro que desconhece a vida dos indígenas e
por isso mesmo não poderá andar aí com a mesma segurança com que se houve ao
cuidar dos costumes do sertão. Também, ou principalmente, para considerar que
tal desconhecimento, ao invés de prejudicar, era melhor para o poeta e o
romancista, porque lhe permitiria "desenvolver os recursos de sua
imaginação." Curioso que tenha reunido o poeta e o romancista, como que uma
alusão implícita à sua condição de poeta que derivou para a ficção, já que
principiou ele como poeta antes de revelar o prosador que acabou sendo.
Restava-lhe, diz ele ainda ao se referir à circunstância de não dispor de dados
concretos sobre os usos e costumes dos índios, o idealismo, "e esse mesmo
mui vago, e talvez um grande parte fictício."
Mas se assim se apresenta ele nesse
romance, de modo diferente se apresentará nos outros dois livros em que se ocupou
da vida dos selvagens. Porque em O Índio Afonso tratará de um facínora,
um bandido que realmente existiu, com quem chegou a conversar em Goiás. João
Alphonsus no estudo por nós mencionado, dirá da contrariedade que lhe viria
causar o fato de, depois de publicado o romance, em que descreve o índio Afonso
já tende dele "apenas uma vaga reminiscência" e dentro do que sempre
ouviu dizer em Catalão, ou seja, "de que ele só havia cometido um
homicídio, e isso para defender ou vingar um seu amigo ou pessoa de sua
família", depois de publicado o romance, como dizíamos, ter o seu
personagem cometido um "atentado horroroso." Essa explicação, que
houve por bem dar no prefácio ao romance, destinava-se a servir de sua defesa
quanto ao fato de ter um jornalista, ao descrever o atentado, se referir ao índio
Afonso como "herói de um dos contos de Bernardo Guimarães." O
romancista cuidou logo de prefaciar o seu romance para esclarecer que em absoluto
tivera "o propósito de fazer a apologia de um fascínora."
Sempre, como se infere, a
preocupação de ser fiel aos fatos, de não falsear a descrição de usos e
costumes, de não se deixar empolgar impunemente pela fantasia.
Daí o realismo que existe em Jupira
[esse conto faz parte do livro História e Tradições da Província de Minas
Gerais], trabalho que se distingue na sua literatura indianista e na verdade
em toda a sua obra de contador de casos.
Olívio Montenegro, ao estudar o
romantismo no seu livro O Romance Brasileiro, se deterá, como ninguém o
fez antes ou depois dele, no exame da novela indianista de Bernardo Guimarães:
"Jupira é uma novela do tipo de Iracema, de José de Alencar. Indianista.
Mas ao contrário de Iracema, a exaltação poética que a anima de um grande
lirismo não absorve nem enfraquece o realismo de sua concepção. De todas as
tentativas no Brasil para o romance indianista, não sei de outra que resultasse
em uma tão notável realização como desta novela de Bernardo Guimarães. Uma
novela para se ler de um fôlego, mas de uma intensidade dramática, e com uma
sugestão de verdade que não encontramos nos romances mais indianistas de José
de Alencar."
Aqui poderíamos abrir um parêntese
para mais uma vez insistir na preocupação de Bernardo Guimarães de não
derivar, na sua novelística, para o idealismo puro, de refrear os ímpetos da
imaginação, de não se perder em pura fantasia.
"Não falo do caráter das cenas
- prossegue Olívio Montenegro -, do tipo de aventura que elas reproduzem; mas do
caráter dos personagem. De Jupira, sobretudo. O autor não transforma com o
despotismo de sua poesia os personagens de sua novela em figura de relevo apenas
decorativo. Os índios não são retóricos quando falam nem se parece com os
heróis de Homero. Jupira, a índia que tem o orgulho da sua tribo e a coragem
ardente dos seus próprios sentimentos o autor a apresenta com uma humanidade que
é a que se encontra no nosso sangue e na nossa carne. / O que há de encantamento
poético nesta novela não dissipa e antes aumenta o relevo sólido dos fatos.
/ Tudo o que o ódio e o amor selvagens têm de mais corajoso e
instintivo ao mesmo tempo, o autor encarna em Jupira. A beleza de Jupira também o
autor não artificializa em nenhum traço de arianismo; e é de uma atração
perigosa. Com um não sei quê de felino e súbito e terrível na sua compleição
ardente. / É uma novela sem vícios de muitos outros romances deste autor; sem a
imprecisão de caráter que eles em geral têm, nem a borra sentimental que os
fazem muitas vezes de um invenção pueril."
A restrição final feita ao
romancista ainda mais torna importante esse juízo sobre Jupira. O autor tratará,
nessa excelente novela, de Campo Belo, em cujo seminário estudou. Como dono, por
conseguinte, do meio em que pôs a viver, com toda autenticidade, personagens
fixados muito bem em seu caráter, como fez ver Olívio Montenegro. João
Alphonsus, em seu estudo várias vezes referido, está mais certo quanto assinala,
como "uma superioridade do romancista", o fato de que "não
homenageia o bom selvagem, não adere à convicção na pureza do estado natural,
que Rousseau insinuou aos indianistas românticos."
E, se não homenageia o bom selvagem,
não irá cercar a sua Jupira de cores outras que não aquelas que decorrem da sua
natureza mesma de selvagem, atraente mais sanguinária na sua condição de animal
primitivo, de um primitivismo que se mantém intato mesmo na sua passagem pela
civilização, pelo convívio com os civilizados.
Parece-nos perfeito o confronto que
Olívio Montenegro faz de Jupira com Iracema. Nesta novela, das
quais mais lhe deram fama, José de Alencar desenvolve conscientemente um poema em
prosa. Machado de Assis resumirá o que na verdade contém e representa a novela
de Alencar: "O livro do sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não
é destinado a cantar lutas heróicas, nem cabos de guerra; se há aí algum
episódio, nesse sentido, se alguma vez troa nos vales do Ceará o pocema da
guerra, nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente votado à história
tocante de uma virgem indiana, dos seus amores, e dos seus infortúnios."
Também Jupira é a estória de uma
virgem indiana, mas bem diferente. Se Iracema é ternura e fidelidade ao guerreiro
branco Martim, Jupira é de "uma atração perigosa": provoca a
tragédia, incita à morte. Em vão se tentou adaptá-la aos "costumes
civilizados"; nela prevalecem os "instintos selvagens".
A nova de Bernardo Guimarães merecia
melhor destino, nunca o quase absoluto esquecimento em que caiu.Quando Machado de
Assis escrever o estudo citado, recordou-se do seu colega de jornalismo:
"Não está aí a própria natureza, opulenta, fulgurante, vivaz, atraindo os
olhos dos poetas, e produzindo páginas como as de Porto Alegre e Bernardo
Guimarães?" Até então, 1866, Bernardo Guimarães publicara apenas poesia.
O novelista se revelaria a partir de 1869, com o Ermitão de Muquém. Se o
sertanista obteve sucesso, o mesmo não se pode dizer do indianista. Mais que
oportuna é, pois, a reedição do Jupira, para dar ao leitor a possibilidade de
conhecer um dos melhores trabalhos de Bernardo Guimarães e verificar ele próprio
se Olívio Montenegro não veio em boa hora chamar a atenção para "tão
notável realização".
(¨*) Este texto faz parte da
introdução que Alphonsus de Guimarães Filho escreveu para o livro de BG
História e Tradições da Província de Minas Gerais, do qual faz parte o conto
Jupira.
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