Carta a Fernando
Saldanha Moreira, em 6 de fevereiro de 1882
(a ortografia foi atualizada)
"Algum tanto reservada"
................................... (nota galhofeira do autor às margens da
carta)
Saúde e Benção apostólica, Frei d. Saldanha
Moreira [1]
"Cai-me a cara em terra, a pena no chão, os
óculos no nariz .. quero dizer... na testa etc. etc., quando considero os 21 mil
setecentos pecados mortais, que tenho cometido para com V. Revdma., olvidando
responder conscienciosamente as múltiplas e incisivas missivas, com que V.
Revdma. me tem honrado. É isto devido a circunstâncias de cataclismas
horríficos.
Em primeiro lugar recebi um autógrafo, manuscrito,
ou como melhor nome em direito tenha, do sr. Washington Badaró, que li com alguma
dificuldade, e que tenho na gaveta para restituir ao dono sem lhe faltar uma
vírgula. Estrear assim uma carreira qualquer não é bom. Queime esse romanc e
faça outro. Assim fazia eu.
Pouco tempo depois recebemos de vossas sagradas
mãos um mimo preciosíssimo para meus pequenos filhotes __ três
cromos, mas muito de defeituosos. O cão nunca mais levanta a perdiz, e eu de arma
feita! Oh ! isto é desesperador!... E a Constança [2]
com tanta vontade de comer perdiz! E os dois coelhos, coitadinhos! tão medrosos,
tão descuidosos, sem poder serem comidos nem pelo lobo, nem pelo Horacio! [3]
E eu com tanto desejo de comer lombo de veado! Mas um maldito cão, que lá está
de sentinela nem me deixa encostar a mão no chifre do veado! ... O são as coisas
desse mundo!?! Com o bico n’água e morrendo à sede!
As páginas do álbum que V. Revdma. enviou me
estão guardadas cautelosamente para serem enchidas de um modo digno de nós
ambos. São tantas as incumbências, as encomendas de que me encarregam, meu
confrade, que vejo-me atordoado para acudir a tudo e, por isso, não tenho
remédio senão adiar algumas que não são sangria desatada. Desejava bem que V.
Revdma. aparecesse por cá para conversarmos mais de espaço, mas...
Junta, inclusa e autuada, vai a recomendação que
reclama e dirá V. Revdma. de viva voz ao meu antigo colega, amigo e
co-provinciano F. Aurélio [4], que logo que aparecer a Enjeitada
[5], não me esquecerei de enviar-lhe um exemplar
pois é uma recordação dos velhos tempos da antiga Paulicéia. No mais, meu
Reverendo, envia-lhe um abraço na paz do Senhor.
Este seu humilde confrade,
Bernardo Guimarães
Ermitão do Muquém, 6 de fevereiro de
1882. Dia de Santa Dorotéa e do B. Antônio de Amândula, e da Lua no Equador.
- Saldanha Moreira __
Fernando Saldanha Moreira, nascido em Juiz de Fora, MG, advogado que à época
dessa carta ainda era estudante de Direito em São Paulo.
- Constança __
Constança Beatriz da Silva Guimarães, a Constancinha, era filha de B.G.
Morreu aos 17 anos, vítima da tuberculose, tendo sido noiva e musa
inspiradora de seu primo, o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens.
- Horácio __
Horácio Silva Guimarães era filho de B.G. (o mais velho depois da morte de
João Nabor). Jornalista, escritor, poeta, funcionário público e professor,
foi homem de sólida cultura. Em 1901 foi co-fundador da primeira revista
literária em MG: Minas Artística. Morreu em 1959, com quase 90
anos. Não deixou descendentes.
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