Sem pretensões conceituais


Luis Orlando Carneiro - JB 23/12/04



O documentário Jazz (2000), de Ken Burns, não era, como se pensava, o ponto final da excelente trilogia bancada pelo sistema público da TV norte-americana (PBS), cujos outros capítulos foram Civil war (1990) e Baseball (1994). Está para ser lançado em DVD um novo capítulo da longa novela do cineasta sobre aspectos ao mesmo tempo luminosos e sombrios do ''império americano'' - o documentário Unforgivable blackness: the rise and fall of Jack Johnson.

Jack Johnson (1878-1946) foi o primeiro negro a conquistar o título mundial de boxe na categoria peso-pesado, em 1908. Na época, foi um soco na cara da farisaica sociedade ''WASP'' (White, American, Saxon, Protestant). O nigger Jack Johnson ficou famoso da noite para o dia - como ocorreria anos depois com Joe Louis e Muhammad Ali. Só que, há quase um século, o reinado de sete anos de J.J. não desceu pela goela de uma maioria racista que logo começou a procurar uma great white hope (''grande esperança branca'') para derrubar aquele negro que se recusara a ''ficar no seu lugar''.

Johnson quebrou as regras da sociedade ''WASP'' com seu modo de viver exibicionista, usando roupas caras, desfilando nos primeiros automóveis de luxo e colecionando belas mulheres - inclusive (que ''audácia!'') mulheres brancas.

Já está disponível nas lojas eletrônicas de CDs a trilha sonora do filme de Burns, assinada por Wynton Marsalis - o primeiro negro a conquistar um Prêmio Pulitzer (1997) e a ser, portanto, aceito na galeria dos grandes compositores americanos do século 20, ao lado de Aaron Copland, Charles Ives e Samuel Barber.

O CD (Blue Note 64194) contém 21 faixas. A mais longa, Ghost in the house, dura cinco minutos; a mais breve, But deep down, apenas 50 segundos. A média do álbum é de 2min57s por faixa, o que reflete a idéia do sofisticado Marsalis de ilustrar a gloriosa e trágica vida de Johnson em vinhetas jazzísticas de sabor retrô.

O trompetista-compositor tem a seu lado, em formações diversas, escudeiros fiéis como Eric Lewis (piano), Wes Anderson e Victor Goines (palhetas), Wycliffe Gordon e Lucien Barbarin (trombones), Reginald Veal (baixo) e Herlin Riley (bateria), além da guitarra de Doug Wamble, responsável por referências nostálgicas à raiz forte do jazz - o blues, tal como encontrado in natura, nos tempos de Jack Johnson, no Delta do Mississipi.

Duas das peças da trilha sonora de Unforgivable blackness - Deep creek e New Orleans bump - foram retiradas de Mr. Jelly Lord, sexto volume da série Standard time, de 1999, no qual Marsalis procurava ''reiterar o poder contemporâneo até do jazz mais primitivo'', sobretudo em se tratando da música de Morton. Outras duas faixas integraram o sétimo volume da mesma série, o CD Reeltime, que era, por sua vez, a trilha sonora encomendada a Marsalis por John Singleton para o filme Rosewood, e que não foi usada.

As demais composições do novo CD de Marsalis são novas e mantêm a festividade do jazz coletivo de Nova Orleans (Ghost in the house), o langor do blues rural (What have you done?) ou a solenidade das marching bands no acompanhamento de enterros (The last bell).

Em 1970, Miles Davis gravou A tribute to Jack Johnson, com a guitarra cheia de efeitos eletrônicos de John McLaughlin e a bateria bem rocky de Billy Cobhan. O álbum tornou-se um clássico da fusão jazz-rock que o Miles pós-Bitches brew promoveu, com inegável sucesso, entre os áulicos e consumidores da contracultura.

A trilha sonora concebida por Wynton Marsalis para o documentário de Ken Burns é, musicalmente, jazz mainstream de bom gosto, interpretado por grandes instrumentistas contemporâneos, sem maiores pretensões conceituais. É música composta em função de um filme que, segundo seu próprio autor, trata do problema racial - ''questão que tem sido central em todos os meus projetos''.


Em 1913, J.J. foi condenado por suposto ''transporte interestadual de prostitutas''. Mesmo naquele tempo, como comenta Burns (um liberal branco), o julgamento foi considerado uma ''impostura'', já que o ''crime'' do boxeur seria, na verdade, seu constante envolvimento com mulheres brancas.

Ken Burns e os senadores Ted Kennedy, John McCain e Orrin Hatch vão aproveitar o lançamento de Unforgivable blackness, no canal PBS, a fim de obter um perdão presidencial póstumo para o herói negro americano do início do século passado.

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