Por Giovana Girardi
Antes de ler esta reportagem, tente lembrar quantas vezes na última semana
você ouviu música. Não só as baladas do rádio, mas também as pílulas de
sonolência na sala de espera do dentista. Ou o canto de alguém a seu lado no
ônibus. É muito provável que você não tenha passado um único de seus últimos
dias sem escutar alguns acordes. Às vezes nem nos damos conta, mas a música
nos cerca por todos os lados. Há música para dançar, namorar, estudar.
Música para enfrentar o trânsito, trabalhar, fazer ginástica e para relaxar
no final do dia. Música para rezar, curar e memorizar. Para comunicar as
emoções que não conseguimos transmitir só por meio de palavras. E música
simplesmente para ouvir e curtir. Dos aborígines australianos aos esquimós
no Alasca, todas as sociedades do mundo a têm em sua cultura - até porque,
você pode não saber, mas a música está conosco desde quando ainda nem éramos
seres humanos propriamente ditos.
Com base no achado de flautas de ossos feitas há 53 mil anos pelos
neandertais, pesquisadores estimam que a atividade musical deve ter pelo
menos 200 mil anos - contra 100 mil anos de vida do Homo sapiens. É bacana
imaginar que talvez esses hominídeos já buscassem formas de diversão. Mas,
pensando bem, que sentido pode fazer a música em um período no qual nossos
ancestrais estavam muito mais preocupados em não ser devorados por um leão
do que com o próprio prazer? E mesmo na sociedade contemporânea, se nos
cercamos de música com tanto afinco, é de supor que, assim como a fala, ela
sirva para alguma coisa, tenha alguma função específica para a humanidade.
Mas qual?
A pergunta atormenta filósofos e cientistas há séculos e, infelizmente,
ainda não tem resposta conclusiva. Já se imaginou, por exemplo, que a música
é responsável por reger a harmonia entre os homens e os astros que mantém a
ordem do Universo - uma idéia formulada por Pitágoras no século 5 a.C. Hoje,
boa parte da pesquisa científica por explicações tem uma perspectiva
evolutiva e biológica. Muitos ainda a vêem apenas como produto cultural
voltado ao prazer, sem nenhuma importância para o desenvolvimento humano.
"Uma primorosa iguaria que estimula as nossas outras faculdades mentais",
defende o psicólogo Steven Pinker em seu livro Como a Mente Funciona. Apesar
de meramente especulativas, teorias evolutivas são as que parecem estar mais
próximas de nos responder as perguntas acima. Então, vamos a elas.
A primeira hipótese sobre a função da música foi levantada por Charles
Darwin. O biólogo que popularizou o conceito de evolução das espécies dizia
que a música é determinante para a escolha de parceiros sexuais, uma vez que
as fêmeas seriam atraídas pelos melhores cantores. "O homem que canta bem, é
afinado, expõe melhor seus sentimentos. Parece mais sensível, mais
inteligente. E isso agrada as mulheres", afirma o jornalista e músico
brasileiro Paulo Estêvão Andrade, que está escrevendo um livro sobre
pesquisas que relacionam música e cérebro. Isso soa bastante familiar: qual
mulher nunca teve uma quedinha pelos músicos - dos modernosos DJs aos
eternos tocadores de violão em rodas de amigos? "A música sempre está ligada
ao comportamento sexual, desde os rituais de acasalamento, até as conquistas
dos jovens de hoje em danceterias ou shows", afirma o neurocientista
americano Mark Tramo, que coordena o Instituto para Ciências da Música e do
Cérebro, da Universidade Harvard.
Muitos cientistas não se convencem de que essa teoria explica, sozinha, toda
a importância da música para diferentes sociedades do planeta. Uma das
hipóteses mais aceitas hoje é a de que a música teve função primordial na
formação e sobrevivência dos grupos e na amenização de conflitos. Se ela
existe e persiste, é porque provoca respostas que agem como um forte fator
de coesão social. "Precisávamos caçar e nos defender juntos e para isso
tivemos de nos organizar. A música abriu o caminho para nos comunicarmos e
dividir nossas emoções", explica Mark.
Mas como era essa música feita por nossos antepassados? Provavelmente ela
surgiu como uma manifestação das emoções. Uma sofisticação, por exemplo, do
choro e da risada. Principalmente, como uma forma de chamar a atenção do
grupo e motivá-lo para a realização de uma atividade que precisava ser feita
em conjunto. É possível imaginar que um indivíduo batesse palmas, ou pedras
ou gravetos, mas o mais plausível é que o primeiro instrumento musical tenha
sido mesmo a voz humana. O cientista cognitivo William Benzon, autor do
livro Beethoven's Anvil ("A Bigorna de Beethoven", sem tradução para o
português) especula que tudo começou muito tempo antes, com a imitação dos
sons de outros animais.
Benzon sugere que o Homo erectus, ao se espalhar pelo planeta a partir do
leste da África, há 2 milhões de anos, teve de procurar novas formas de se
proteger enquanto atravessava as estepes, já que não contava mais com o
abrigo das árvores das florestas. Entre muitas outras artimanhas, esses
hominídeos teriam começado a emitir chamados ameaçadores. "Se rosnar e rugir
como um leão, você não só vai dispersar as presas naturais dele como também
outras espécies que estejam por perto", afirma. Essa imitação teria
proporcionado o início do controle do aparelho vocal, primeiro passo para a
origem da música e da linguagem. A reprodução dos sons dos animais e da
natureza, como o vento ou os trovões, deve ter evoluído até que as
necessidades passaram a ser outras, e a imitação deu espaço para a criação.
Daí a perceber como o som do "uh-uh-uh" servia para instigar a guerra, por
exemplo, não deve ter demorado. Tudo isso sem que fosse necessário dizer uma
palavra.
Chegamos então a um ponto delicado: a música surgiu antes ou depois da
linguagem falada? Essa é outra pergunta que divide cientistas. As duas
aptidões são universais, mas a linguagem obviamente parece muito mais útil
que a música, o que leva a crer que ela tenha se desenvolvido primeiro, "com
a música ramificando-se da linguagem apenas após ter sido feita boa parte do
trabalho evolucionário pesado", como escreveu o pianista Robert Jourdain em
seu livro Música, Cérebro e Êxtase.
Acreditar que primeiro desenvolvemos a fala e depois apuramos a técnica
musical pode parecer um caminho lógico. Mas a verdade é que não é exatamente
assim que funciona nosso ciclo de aprendizado. Antes de os bebês saberem
falar, eles já balbuciam de uma forma muito musical. "É comum vê-los
inventando musiquinhas mesmo desconhecendo a reprodução dos sons
convencionais", diz a psicóloga Sandra Trehub, da Universidade de Toronto,
que pesquisou a percepção musical em crianças. Isso pode ser um indicativo
de como nossos ancestrais se manifestavam antes de desenvolver a linguagem.
"Talvez as cordas vocais e bocas deles ainda não estivessem prontas para
falar, mas eles tinham ritmo e podiam grunhir e fazer sons. Isso poderia ser
tomado como música, ou ao menos como sua raiz", afirma Mark Tramo.
Mas se o uso da música como ferramenta de comunicação foi ultrapassado pela
linguagem, por que ela continuou existindo? Para essa pergunta nem
precisamos da ajuda dos cientistas. Todo mundo que já se apaixonou e dedicou
uma música ao ser amado pode responder sem medo. É porque ela assumiu um
papel que a fala sozinha não deu conta: transmitir emoções. E essa
característica nós podemos notar independentemente das preferências pessoais
de cada um. Para provar isso o psicólogo John Sloboda, da Universidade de
Keele, na Inglaterra, uma das maiores autoridades em emoção musical do
mundo, fez um teste interessante. Ele colocou 83 voltuntários para ouvir uma
série de peças musicais e depois pediu que eles descrevessem qual sensação
tiveram. Cerca de 90% reportaram "frio na espinha" e "nó na garganta".
Alguns chegaram a chorar. Ao checar quais trechos haviam provocado essas
reações, Sloboda constatou que eram basicamente os mesmos.
Alguns acordes parecerem tristes e outros felizes pode ter também uma
explicação evolutiva. Essa interpretação é relacionada com a forma como o
nosso cérebro processa sons amistosos e ameaçadores desde a época em que
éramos presas fáceis. "Pense num cão. Quando ele quer demostrar carinho faz
um som mais agudo, mais tonal. Quando está agressivo é mais grave e
ruidoso", diz Paulo Estêvão Andrade. Assim, dependendo da combinação de
tons, a música é capaz de provocar uma sensação que vai do prazeroso ao
desagradável. Quanto mais dissonantes forem os intervalos das notas
musicais, maior será a sensação de tensão ou medo. Isso é fácil de ser
identificado se ouvirmos as trilhas sonoras de filmes de terror ou suspense,
como a clássica de Psicose, de Alfred Hitchcock.
Essa função musical de comunicar sentimentos faz sentido não só hoje, mas em
sua própria origem. Se os animais também modificam a expressão vocal para
demonstrar um sinal de pacto, como o ganido de submissão de um cachorro,
"parece inevitável que as expressões formais de emoção sejam aos poucos
fundidas em algo semelhante à melodia", escreve Jourdain. "É exercitando ou
aplacando emoções que estabelecemos relação com outros seres humanos." E a
música corporifica isso.
Para quem começou a reportagem falando que não havia utilidade aparente para
a música, até que já alcançamos uma boa marca. Mas alguns pesquisadores
ainda vão além. Para Ian Cross, diretor do Centro para Música e Ciência da
Universidade de Cambridge, a música também é capaz de ativar capacidades
como a memória e talvez até mesmo a inteligência. O efeito sobre a memória é
facilmente detectado no dia-a-dia. Pegue, por exemplo, a época de eleições.
Quem acompanhou a campanha para a Presidência em 1989 deve se lembrar até
hoje de muitas das musiquinhas dos candidatos, como os clássicos "Lula-lá" e
"Ey, ey, Eymael". Para fixar alguma informação, nada melhor do que
musicá-la - veja as técnicas de alunos de cursinho para decorar fórmulas.
Essa faceta da música parece ter sido útil para a transmissão da cultura na
pré-história, quando ainda não dominávamos a escrita.
Já o impacto sobre a inteligência é mais difícil de constatar. A tentativa
mais famosa ficou conhecida como "efeito Mozart". Quando foi proposta, em
1993, levou a um surto de compras de discos do compositor, mas até hoje é
polêmica. Na ocasião o neurocientista Fran Rauscher, da Universidade de
Wisconsin, e o neurologista Gordon Shaw, da Universidade da Califórnia,
mostraram que crianças apresentavam desempenho matemático melhor após ouvir
sonatas do compositor austríaco. O efeito da simples audição, no entanto,
nunca foi comprovado. O que parece fazer mais sentido é quanto a possíveis
benefícios relacionados ao aprendizado de música, que induz ao prolongamento
dos neurônios e aumento das conexões entre eles. Os cérebros dos músicos,
inclusive, acabam apresentando uma massa maior de neurônios, o que sugere
maior inteligência.
De todas as funções abordadas até agora, nenhuma é tão misteriosa quanto o
possível uso medicinal da música, principalmente para pacientes com mal de
Parkinson ou Alzheimer e vítimas de derrame que só melhoram escutando
música. Histórias complexas são relatadas pelo neurologista Oliver Sacks em
livros como Tempo de Despertar, que foi adaptado para o cinema. É exemplar o
caso da paciente Frances D., que sofria de Parkinson e durante as crises
ficava paralisada, rangendo os dentes e sofrendo muito.
Sacks descobriu que a única coisa que acalmava os sintomas era a música.
Quando Frances ouvia o som, desapareciam completamente todos os fenômenos
"obstrutivo-explosivos" e ela ficava feliz. "A senhora D., repentinamente
livre de seus automatismos, 'regia' sorridente a música ou se levantava e
dançava ao seu som", escreveu Sacks. O médico percebeu o mesmo efeito em
vários outros pacientes. Em alguns casos, só de pensar em música eles
ficavam melhores.
Mas, infelizmente, o remédio é temporário, proporcionando uma espécie de
equilíbrio momentâneo para o cérebro doente. "A música vence os sintomas ao
transportar o cérebro para um nível de integração acima do normal. Ela
estabelece fluxo no cérebro, enquanto, ao mesmo tempo, estimula e coordena
as atividades cerebrais, colocando suas antecipações na marcha correta", diz
Robert Jourdain. Para o pianista - que busca responder em seu livro por que
gostamos tanto de música -, a mágica que ocorre com os pacientes é a mesma
que ocorre com todos nós. "A música nos tira de hábitos mentais congelados e
faz a mente se movimentar como habitualmente não é capaz. Quando somos
envolvidos por música bem escrita, temos entendimentos que superam os da
nossa existência. E quando o som pára, voltamos para nossas cadeiras de
rodas mentais."
World Music
A música cumpre funções sociais importantes para alguns povos do mundo
Nova Guiné
Visitantes homenageiam o povo kaluli cantando e dançando. A platéia se
comove até chorar. Quando a dor se torna excessiva, o público, aborrecido
por ser obrigado a suportar tanto sofrimento, pega as tochas de iluminação e
queima os músicos nos braços e ombros. Os artistas não fogem, nem reclamam
da dor.
Ao amanhecer, apresentam queimaduras de segundo e terceiro graus orgulhosos
da proeza. E voltam para casa exibindo as marcas como uma espécie de aplauso
perpétuo.
Congo (ex-Zaire)
Na tribo bambala, os advogados têm de cantar seus argumentos. De um lado o
queixoso entoa: "Sou como o cão que fica diante da porta até conseguir um
osso". O acusado cantarola: "Ninguém segue ao mesmo tempo por dois caminhos.
Você disse isso e aquilo. Uma das duas coisas deve estar errada. Por isso eu
o ataco". As famílias dos envolvidos fazem coro, literalmente, à cantoria
dos advogados. O veredicto dos anciãos não perde o ritmo e é transmitido a
toda a aldeia com o soar de tambores.
Austrália
Os aborígines descrevem a terra para forasteiros com a ajuda de uma espécie
de mapa musical. A voz se eleva e cai para representar uma montanha, se
achata quando a paisagem fica plana. É preciso extrema sutileza, porque os
viajantes podem morrer no deserto se uma música os desorientar. Por isso, as
canções descrevem os menores detalhes da paisagem e do relevo - até mesmo o
ruído dos passos em cada tipo diferente de solo.
Floresta Amazônica
Durante seis meses, as mulheres da tribo mekranoti se reúnem ao amanhecer e
assim que a noite cai para cantar. O ritual é parte da cerimônia bijok, que
escolhe o nome das meninas. Homens também têm atribuições musicais. Antes do
amanhecer, se reúnem no centro da aldeia para cantar por duas horas. O
objetivo é proteger a vila de ataques inimigos. Uma das maiores diversões
dos cantores é perseguir os homens que ainda estão dormindo, com insultos e
gritos.