Processos Cerebrais Cognitivos e Afetivos na Percepção Musical: Por Que Reagimos Emocionalmente À Música?

Eduardo Bernini



A percepção musical, como a percepção da fala, envolve tarefas cognitivas complexas, em que a informação levada por sinais acústicos é analisada, armazenada, recuperada, intercomparada e interpretada – embora todo o propósito da música pareça estar bem mais relacionada aos estados afetivos que ela nos evoca do que ao conteúdo informativo básico das mensagens musicais que ela transmite. Talvez a demonstração mais convincente disso seja o fato de gostarmos de uma gravação musical em particular todas as vezes que a ouvimos, não importando o nosso grau de familiaridade com a obra.

Para compreender a percepção musical como processo cognitivo, é necessário analisar em termos gerais o papel da motivação e da emoção nas tarefas cognitivas. Esta ainda é uma área um pouco desprezada: o estudo do comportamento inteligente se direciona principalmente para o conteúdo, para a lógica e para a organização do processamento de informação pelo cérebro e a resposta comportamental resultante, com uma atenção menos explícita aos impulsos somáticos que motivam a aquisição da informação, seu processamento e armazenagem, e os estados afetivos geralmente descritos como emoção. Todavia, esta última é justamente o que diferencia a “função cerebral” da “computação neural”: ao que se sabe, os computadores, por mais sofisticados que sejam, não estão preocupados com a sobrevivência (por enquanto)! Em todos os atos perceptivos conscientes é sempre alguma motivação que conduz a cognição; a cognição leva a algum estado afetivo, que por sua vez conduz, reforça ou modifica a motivação e a atenção perceptivas. Nos animais, essa relação circular é iniciada e controlada pela combinação de uma entrada ambiental de momento e uma necessidade somática corrente. Nos humanos, porém, ela também pode ser iniciada e controlada exclusivamente por uma atividade cerebral interna, sendo a informação sobre o ambiente e o organismo inteiramente regatada da memória, em vez de adquirida no momento real.

As funções cognitivas do cérebro são controladas principalmente pelas redes corticais frontal e de associação, enquanto o impulso motivador e a resposta emocional são controlados pelo sistema límbico – mas essas estruturas cerebrais trabalham inextricavelmente juntas, como está fisiologicamente manifesto pelas interconexões neurais inatas entre elas. O sistema límbico é uma parte filogeneticamente antiga do cérebro, que compreende várias estruturas que se situam entre as áreas de associação cortical e o hipotálamo (hipocampo, amígdala, vários núcleos talâmicos). Em conjunção com o hipotálamo (a parte do cérebro que integra as funções do sistema nervoso autônomo e regula o sistema de informação neuroquímico), o sistema límbico “policia” a entrada sensorial, dirige seletivamente a armazenagem na memória, de acordo com a relevância da informação, e mobiliza a saída motora com o objetivo específico de assegurar uma resposta que seja a mais benéfica para a preservação do organismo e a perpetuação da espécie num ambiente complexo. Ao contrário das redes corticais que controlam o comportamento inteligente, boa parte do circuito neural do sistema límbico já está, no nascimento, “pré-conectada” a funções programadas durante o lento curso da evolução filogenética. A motivação e a emoção são manifestações integrais da função límbica, manifestações do princípio-guia do sistema límbico de assegurar que todos os processos corticais sejam realizados para o máximo benefício do organismo (p.ex., Panksepp, 1982, e as referências aí contidas). Nisso o sistema límbico trabalha maravilhosamente, dispensando as sensações de recompensa (ou punição) sempre que o organismo se engaja em atos comportamentais que, de acordo com comandos genéticos, são avaliados para melhorar (ou agir contra) as chances de sobrevivência do organismo e/ou espécie e para incrementar (ou agir contra) a diversificação.

O sistema límbico é ativado por entradas somáticas e ambientais. Nos humanos, porém, ele igualmente pode responder de modo exclusivo a imagens evocadas internamente e exibidas no córtex durante o processo de pensamento. Em outras palavras, a motivação e a emoção nos seres humanos podem ser provocadas sem nenhuma relação com o estado instantâneo do ambiente ou do organismo. Da mesma forma, os humanos podem deliberadamente invalidar as ordens do sistema límbico.

Vamos voltar à música. Parece que as mensagens musicais não transportam informações biologicamente relevantes, como no caso da fala, das elocuções animais e dos sons ambientais – embora as pessoas em todas as culturas rejam às mensagens musicais. O que, na evolução humana, pode ter levado a isso? Será a música uma vantagem da raça humana, específica da espécie? Obviamente, essa questão deve ser considerada parte de uma questão mais abrangente, relativa ao surgimento da motivação, resposta e criatividade estéticas. Em busca dessas repostas (Roederer, 1984), devemos primeiro nos voltar à habilidade individual mais característica dos seres humanos: a fala. A fala envolve o sistema auditivo e redes neurais centrais correlatas – não existe equivalente na visão ou em outro sentido. (A linguagem escrita é relativamente recente na história humana – algumas culturas até hoje não possuem linguagem escrita – e não requer o surgimento de centros corticais especializados nesse tipo de processamento de informação óptica).

Na percepção da fala humana, o sistema auditivo é levado ao seu limite de percepção acústica e interpretação. Portanto, é concebível que, com a evolução da linguagem humana e o surgimento de áreas corticais especializadas na percepção da fala, uma diretriz tenha surgido para treinar o sentido acústico no reconhecimento de padrões sonoros sofisticados, como parte de um instinto humano inato de adquirir a linguagem desde o momento do nascimento. Durante os estágios finais do desenvolvimento intra-uterino, o sentido acústico do feto começa a registrar passivamente o ambiente sonoro intra-uterino. No nascimento existe uma transição súbita para uma resposta comportamental ativa em que a comunicação acústica com a mãe ou seu substituto tem um papel fundamental. Desse modo se estabelece um ciclo de realimentação de comunicação acústica que pode contribuir tanto para a relação emocional com a mãe como para o impulso motivador para a aquisição da linguagem. Os sons “musicais” simples e as sucessões rítmicas de sons (como as que são vocalizadas pela mãe) despertam a atenção da criança para ouvir, analisar e armazenar esses sons como prelúdio para a aquisição da linguagem. Isso pode ter levado ao surgimento da motivação para ouvir, analisar, armazenar e também vocalizar sons “musicais”, bem como da reação emocional ou recompensa límbica quando esses atos são realizados.

A motivação para descobrir simetrias e regularidades, para extrapolar, prever, lidar com a surpresa de uma mudança súbita ou a familiaridade da redundância e da repetição, e o impulso para explorar, diversificar e priorizar também contribuem com os elementos afetivos da música, que vão desde os instantâneos ou de curta duração até as sensações subjetivas de timbre, consonância, expectativa tonal, senso de retorno tonal e estruturas de longa duração ligadas às linhas melódicas. Esses elementos afetivos podem ser manifestações de recompensas límbicas em busca de um conteúdo fonético ou fonêmico do som e da identificação da organização gramatical e do conteúdo lógico dos sinais acústicos. O afortunado fato de que eles são irreprimíveis e ocorrem o tempo todo encontra-se como verdadeiro fundamento da moderna teoria musical (p.ex., Lerdahl e Jackendoff, 1983; Barucha, 1994).

De modo geral, é possível que o efeito combinado da complexidade da identificação da mensagem sonora (i.e., o número total de operações neurais necessárias por unidade de tempo) e as associações provocadas em outros centros cerebrais sejam a “causa” definitiva das sensações musicais evocadas por uma certa mensagem musical. Por exemplo, quando a tonalidade de uma peça musical é modulada, o sistema nervoso auditivo deve rapidamente elaborar uma nova “lista de checagem” para as operações de identificação tonal que virão. Essa rápida elaboração, uma carga extra de milhares de operações individuais, forneceria a sensação musical peculiar relacionada à mudança de tonalidade. Os indivíduos não-musicais, que não conseguem experimentar essas sensações, são provavelmente pessoas cujo mecanismo de identificação de mensagens musicais não teve chance de desenvolver totalmente sua capacidade. Assim, embora eles ouçam tudo o que uma pessoa altamente musical ouve, o sistema auditivo central desses indivíduos não desenvolveu a habilidade de extrair informação musicalmente relevante de seqüências e superposições de sons não relacionados com a fala. Eventos musicais como mudanças de tonalidade são ouvidos, mas não interpretados, e por isso não provocam nenhuma resposta afetiva.

Desde o início da vida, a maioria das pessoas está exposta a um conjunto limitado de estímulos musicais. O condicionamento cultural rapidamente se impõe, e a resposta emocional começa a ser influenciada por fatores externos, alguns fortuitos, como o estado emocional experimentado por uma pessoa durante a primeira audição de uma certa obra musical ou um certo trecho; alguns mais controláveis, como o grau de repetição de formas musicais características pendentes a um certo estilo musical; alguns induzidos pelo impulso inato de diversificar as possibilidades do empenho humano, que, no caso da música, tira proveito do desenvolvimento tecnológico, como o surgimento dos instrumentos de teclado ou, mais recentemente, dos sintetizadores eletrônicos. Isso pode determinar afinal por que um determinado estilo ou tipo de música é preferido. O que permanece invariante quanto aos instintos originais é:

1.O fato de que existe motivação para prestar atenção nos sons e formas musicais.
2.O fato de que uma reação emocional pode ser provocada.
3.O fato de que existem alguns componentes da música que são comuns a todas as culturas musicais.

Mas, mesmo num desenvolvimento posterior, culturalmente condicionado, podemos procurar outros elementos representativos de um valor perene da música.

Como um bom discurso público, a música pode ter sucesso em despertar e manter a atenção de grandes quantidades de pessoas, neutralizando os seus impulsos límbicos “normais” por longos períodos de tempo. Todos nós sabemos o que é o conteúdo informativo da linguagem falada, mas o que é transmitido na música? A música transmite informação sobre estados afetivos. Ela pode contribuir para a equalização dos estados emocionais de um grupo de ouvintes, assim como um discurso pode contribuir para a equalização do estado intelectual (conhecimento) do público. Infelizmente, não temos paradigmas quantitativos para descrever estados emocionais, como podemos fazer com os estado s informativos relacionados com a linguagem. Mas o papel da música em rituais sexuais e de superstição, na religião, no proselitismo ideológico, nos movimentos militares, e mesmo em comportamentos anti-sociais, demonstra claramente o valor da música como meio de se alcançar uma coerência comportamental em grandes grupos de pessoas. Num passado distante, já que o ambiente humano cada vez mais complexo demandava ações coletivas coerentes por parte de grandes grupos da sociedade humana.

Até agora, deixamos de lado qualquer referência ao ritmo, um dos componentes fundamentais da música. Esta é uma omissão particularmente crítica, porque parece que o surgimento do ritmo tem sido sempre o primeiro passo na evolução de uma cultura musical. A propagação, pelo tecido cerebral, de um fluxo ciclicamente variável de sinais neurais disparados por padrões sonoros rítmicos pode de alguma forma entrar em “ressonância” com os “relógios” naturais do cérebro, que controlam as funções do corpo e as respostas comportamentais. Esses relógios provavelmente trabalham com base na atividade neural que se propaga em circuitos fechados, ou engramas, ou quaisquer outros sistemas de interligação neural que têm períodos naturais de resposta cíclica. Ainda é necessária muita pesquisa antes que possamos nos aventurar a dar uma resposta precisa à questão formulada no título desta seção: por que respondemos emocionalmente à música?

Bibliografia

ROEDERER, J. G. Introdução à Física e Psicofísica da Música, 1a edição, editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.

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