Abel Cardoso Junior
Francisca Edwiges Neves Gonzaga nasceu em 17.10.1847
na cidade do Rio de Janeiro, filha de José Basileu,
então 1º tenente, mais tarde marechal, e da modesta
mestiça Maria. O casamento de ambos só seria
formalizado 3 anos depois. A avó paterna de Chiquinha
tinha parentesco com a avó paterna do então Marquês de
Caxias.
Chiquinha recebeu boa educação geral e adequada
formação musical, tendo aulas provavelmente com o
maestro Elias Álvares Lobo. Com 16 anos, em 1863,
casa-se com Jacinto do Amaral, 8 anos mais velho, moço
de posses e projetos ambiciosos, nascendo-lhes logo 2
filhos: João Gualberto e Maria do Patrocínio. Jacinto,
muito ciumento, obrigou-a e o filho João Gualberto a
acompanhá-los em penosas viagens do seu navio
cargueiro até o Paraguai durante a guerra de Solano
Lopes, que fretava para transportar armas, soldados e
escravos.
O casamento não era feliz, pois Jacinto,
intransigente, não admitia que Chiquinha cultivasse a
música, que tanto amava, no piano que levara no dote.
Por fim, impõe-lhe um dilema: ele ou a música!
Chiquinha não tem dúvidas: "Pois, senhor meu marido,
eu não entendo a vida sem harmonia!"
Deixa então a casa, mas volta porque se descobre
grávida de um terceiro filho: Hilário. Pouco depois,
contudo, abandona de vez o lar, para escândalo da
sociedade patriarcal e repúdio do pai, que a "declara
morta e de nome impronunciável".
Nessa ocasião, passa a freqüentar o ambiente masculino
e nada recomendável dos músicos populares tornando-se
amiga do grande flautista e compositor Calado,
considerado o Pai dos Chorões Brasileiros, que muito a
estimava. Também se liga apaixonadamente a João
Batista, jovem e rico engenheiro de inclinação boêmia.
Para continuar junto dele, e ao mesmo tempo aliviar as
pressões na Corte, não hesita em acompanhá-lo quando é
contratado para dirigir a construção de linha férrea
no interior de Minas Gerais.
Terminado o contrato em 1875, voltam para o Rio de
Janeiro havendo o nascimento de uma filha de ambos:
Alice. João Batista resolve de novo fixar-se em Minas,
numa fazenda de sua propriedade. Chiquinha, cansada do
seu comportamento mulherengo, logo o deixa, sendo a
gota d'água o episódio em que o surpreende com outra.
Apesar dos pesares, João Batista foi o grande amor de
sua vida.
Com o primogênito João Gualberto, Chiquinha vai
residir no bairro de São Cristóvão, no Rio. Precisa
trabalhar para sobreviver e, para isso, ministra aulas
particulares de disciplinas escolares e de piano.
Reaproxima-se do amigo Calado, com quem consegue
alunos de piano e a oportunidade de tocar em grupos de
choro. Historicamente, é a primeira mulher e o
primeiro pianista do choro. Ao mesmo tempo, encontra
na composição de músicas outro caminho para algum
ganho e expressão de sua arte.
Com a primeira música que consegue imprimir, a polca
Atraente, em 1877, obtém uma aceitação extraordinária,
traduzida em mais de 15 edições. Daí em diante, fica
cada vez mais conhecida à medida que são editadas
outras músicas em papel e, mais tarde, pode
apresentá-las no teatro musicado.
Famosa e comentada, alvo da maledicência e de
preconceitos, tem ativa participação nos movimentos
que empolgam a época, como a revolta, em 1880, contra
o imposto do vintém nas passagens dos bondes, a
abolição da escravatura, finalmente alcançada em 1888,
e a implantação da República no ano seguinte.
Em 1885, já tinha derrubado outras barreiras. Na
terceira tentativa, consegue com que uma peça de sua
autoria, A Corte na Roça, seja encenada. As duas
anteriores com músicas suas, Viagem ao Panasco e Festa
de São João, não foram aceitas pelo fato de ser mulher
e não haver precedente. Torna-se, assim, a primeira
compositora brasileira a ser levada à cena. Nesse
mesmo ano, num espetáculo em seu benefício,
consagra-se igualmente como a primeira mulher a
dirigir uma orquestra, portanto a primeira maestrina
que tivemos.
Em 1899, para o Cordão Rosa de Ouro, do Andaraí,
compõe a marchinha de rancho Abre Alas, considerada a
primeira música composta especialmente para o
carnaval, desde então símbolo do mesmo, ainda que
decorrido todo um século.
Seu coração inquieto e ardente ainda tinha espaço para
o amor. Também em 1899, já com 52 anos, une-se a João
Batista, de apenas 16 anos, e o apresenta como filho,
solução que julga suficiente para evitar maiores
constrangimentos. Os que a conhecem, por admiração e
amizade, fingem acreditar. Malgrado a diferença
chocante de idade, foi uma união tão forte que duraria
até seu falecimento, e mais além, já que Joãozinho
jamais trairia a memória da "mãe" com revelações
indiscretas.
Por 3 vezes esteve em Portugal. A primeira em 1902,
desembarcando na volta com o "filho" Joãozinho, que
por fim assumia publicamente, mas que ninguém
conhecia, apesar de já bem criado. Na viagem de 1904,
sempre com Joãozinho ao seu lado, passa meses. Na
última viagem, que durou de 1906 a 1909, e que
desenvolve atividade profissional, com destaque, no
teatro de revistas português.
De novo no Brasil, toma pé no meio musical, nada mais
que a retomada do seu legítimo lugar, para assinalar,
em 1912, o maior êxito, até hoje, do teatro
brasileiro, a burleta Forrobodó, com texto de Carlos
Bettencourt e Luiz Peixoto. Outras peças de Chiquinha,
nos anos seguintes, continuariam a merecer o favor do
público, entremeadas com o escândalo que foi a
execução, mesmo que apenas em solo de violão, do seu
popularíssimo tango Corta-Jaca, em 1914, no Palácio do
Catete, por decisão de Nair de Tefé, mulher do
presidente Hermes da Fonseca.
Sempre lutadora, levantou também bem alto a bandeira
do direito autoral. Era a única mulher entre os 21
fundadores, em 1917, da SBAT (Sociedade Brasileira de
Autores Teatrais), que acompanharia de perto no seu
dia-a-dia enquanto viveu. A SBAT muito deveu também a
Joãozinho Gonzaga, seu funcionário, incansável na
cobrança dos direitos. Reconhecendo os bons serviços
prestados, a SBAT, em assembléia, mesmo não sendo ele
escritor, considerou-o o sócio-efetivo e benemérito.
Até falecer, em 28.2.1935, no Rio de Janeiro, com 87
anos, Chiquinha não sentiu esgotada a sua capacidade
criativa. Em 1933, era levada à cena sua última peça
original, Maria, no Teatro Recreio, tendo texto de
Viriato Corrêa, com quem tinha marcado os êxitos
memoráveis de A Sertaneja, em 1915, e Juriti, em 1919.
Maior vulto de compositora popular brasileira,
Francisca Edwiges Neves Gonzaga contribuiu,
inestimavelmente, para a formação do nosso
nacionalismo musical e, tantas vezes pioneira, teve a
coragem de viver, com intensidade e desassombro, tudo
o que lhe ditava o coração de mulher adiante do seu
tempo.
Texto escrito por Abel Cardoso Junior