Manifesto: o sonho - pergaminho perdido que vem à luz - persistências em um 
eletroencefalograma

O que há de real são os sonhos. 

O que chamamos de realidade é a impressão dos sentidos na mente, e não vemos 
razão para privilegiar informações oriundas dos sentidos em detrimento daquelas 
que vêm à superfície da consciência pelo processo ordinariamente conhecido como 
"sonho". Se formos rigorosos, tudo pode ser encaixado na categoria de sonho. O 
mundo é assim ou assado porque seu espelho em nossas mentes é assim ou assado. 
No sonho, é o nosso próprio mundo que é refletido. Nada mais pessoal e "real" do 
que isso. Taras, símbolos, atos inconfessáveis, diálogos improváveis, mesmo 
orgasmos, tudo se mistura nos delicados mosaicos do onírico. 

Mas chega de teoria.

Estava fuçando no computador, esses dias, e encontrei um arquivo ZIP todo 
empoeirado, cheio de fragmentos de textos, escritos faz muito tempo. Um deles, 
entitulado "sonhos", registra quatro sonhos que tive. Ri muito, relendo aquelas 
insanidades. Nem sequer me lembrava de ter escrito aquilo, o que só aumentou a 
diversão. E, como não sou egoísta, aqui estão. 

	Sonho número UM

	- Vamos direto ao ponto: quero comprar o seu estacionamento - eu disse ao 
homem do outro lado da mesa, debruçado sobre um pequeno computador portátil. 
Ele sequer me olhou ao responder.
	- Por que eu o venderia a você? Estou ganhando meu dinheiro, legalmente, sem 
preocupação nenhuma. Não vou vender, não senhor. Não me interessa se sua 
oferta é generosa.
	Estudei aqueles olhos cinzentos, parecendo olhos de boneco, sem vida, sem 
expressão. Ele martelava furiosamente o teclado, aparentemente 
contabilizando os lucros. Começou uma longa dissertação sobre os aspectos 
contábeis de uma fraude bem planejada. Impostos: ele conhecia as leis por 
dentro e por fora, todas as brechas, e ria enquanto enumerava as maneiras de 
enganar o governo.
	- Espere - eu comecei, mas de repente o carpete e depois o chão de concreto 
começaram a se partir silenciosamente, como um bolo de chocolate. A sala se 
dividiu em duas metades, a brecha se escancarando debaixo dos meus pés. Caí 
e me segurei na borda, com os pés balançando a vinte andares de altura. O 
homem prosseguia na ladainha sobre contabilidade, quando meus dedos 
escorregaram e a mesa dele foi tragada, e ambos despencamos no espaço. Eu 
podia ver as luzes da rua lá embaixo, se aproximando. Olhei para o lado e o 
sujeito estava agarrado ao computador, ainda batendo nas teclas e ainda 
falando de leis e isenções e malandragens fiscais. "Meu Deus", pensei, "esse 
cara é completamente doido!"
	Parei suspenso no ar a cinco metros do chão. Ele prosseguiu à toda, caindo 
de costas na calçada. Vi seu crânio explodir como uma jarra de groselha. 
	Enquanto minha respiração voltava ao normal, os nativos chegaram, fazendo 
festa. As figuras, magras, sujas e altas, esquartejaram o corpo com euforia, 
e depois jogaram os pedaços de carne para o alto, comemorando a boa sorte. 
Iam jantar bem, e estavam felizes.
	
	Sonho número DOIS

	A sala era algo que oprimia, tão larga como um campo de futebol, alta de 
modo que o teto apenas se adivinhava, lá em cima, tocado pela fraca luz 
amarela. Duas colunas muito antigas formavam uma espécie de portal para o 
nada, pois havia a parede, e tudo parecia fazer parte de um quadro, um 
quadro conhecido. Senti uma presença às minhas costas, e rodopiei. Ele 
estava lá. 
	As paredes e o teto da sala prosseguiam em frente, muito em frente, e se 
dissolviam na noite lá fora. Era o mundo. Eu via o teto se prolongar, e 
imperceptivelmente, apareciam estrelas, e depois, era o céu. O que eu 
imaginava uma sala fechada, era um dos quatro cantos do universo. Ali ele 
acabava, e ali ele começava. E ele estava lá comigo.
	Eu vi a capa pendendo dos ombros largos, a testa ampla, o queixo emoldurado 
por uma barba discreta. Levantou um braço, e com um gesto amplo de 
anfitrião, me convidou a voltar ao mundo.

	Sonho número TRÊS

	O Engenheiro, enquanto estava vivo, era um espetáculo. Não se sabia 
exatamente ao que ele havia se exposto, que espécie de radiação, ou gás 
venenoso, ou intervenção extraterrestre provocara a espantosa mutação. Mas 
era magnífico seu longo pescoço réptil, seus tentáculos cobertos de 
delicadas boquinhas de bebês, seu tórax retorcido como uma árvore do 
deserto. 
	Porém ele está morto, agora. Seu corpo enorme repousa num aquário pago pela 
prefeitura, ao lado da janela da sala. Os membros poderosos, entregues à 
rigidez da morte, se espalham como algas fossilizadas, flutuando num 
abandono que só os mortos têm.
	Falo para mamãe que eu tinha visto o Engenheiro vivo, andando pela rua, 
comprando jornais com infinito constrangimento. Ela faz o sinal-da-cruz, e 
eu olho pela janela, olho o enorme corpo paralisado, e penso em algum método 
para trazê-lo à vida novamente. Ele se parece tanto com uma planta, agora. 
Acho que vejo um pequeno ensaio de raiz, perto do calcanhar.
	Ele vai se levantar, eu sei. Invento uma desculpa e saímos da cidade, eu e 
mamãe, evitando a ira terrível daquilo que não era mais humano.

	Sonho número QUATRO

	A caravana passou ao lado de onde eu estava, sentado numa pedra. Os camelos 
iam em silêncio, como grandes formigas entediadas, carregando as armas. Os 
condutores passavam, me olhavam por um segundo, e seguiam, calados. Eram 
muitos, animais e pessoas, trilhando uma estrada que não existia para meus 
olhos, oculta sob a terra amarela, morta. 
	Me levantei e fui de encontro à caravana. Num instante, estava no meio do 
cardume, e não esbarravam em mim, desviando imperceptivelmente. Prossegui na 
direção contrária à deles, e encontrei Rimbaud. Ele caminhava ao lado de um 
camelo igual aos outros, uma massa móvel de camurça suja. Era uma figura 
extremamente comum, mas eu sabia quem ele era. 
	Dei meia-volta e caminhei um bom tempo ao seu lado, também em silêncio. Não 
sabia por onde começar. Minha voz vacilou, mas perguntei o porquê do 
silêncio.
	Ele deu de ombros e me dise que não havia mais nada para colocar no papel. 
	
	
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