Tractatus practico-theoreticus

 

Prolegômenos ao Perspectivismo Semântico-Transcendental

Ontologia, Subjetividade, Linguagem

 

 

 

 

Nythamar de Oliveira

 

 

 “Da lag es dann nicht an der Theorie, wenn sie zur Praxis noch wenig taugte, sondern daran, daß nicht genug Theorie da war, welche der Mann von der Erfahrung hätte lernen sollen, und welche wahre Theorie ist, wenn er sie gleich nicht von sich zu geben und als Lehrer in allgemeinen Sätzen systematisch vorzutragen im Stande ist...”(Immanuel Kant, Über den Gemeinspruch: ‘Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis’, Berlinische Monatsschrift XXII, Sept. 1793, Werkausgabe, Hrsg. Wilhelm Weischedel, Band XI, Frankfurt: Suhrkamp, 1996, A 202-203)

 

“Die Frage, ob dem menschlichen Denken gegenständliche Wahrheit zukomme, ist keine Frage der Theorie, sondern eine praktische Frage. In der Praxis muß der Mensch die Wahrheit, d.h. die Wirklichkeit und Macht, die Diesseitigkeit seines Denkens beweisen. Der Streit über die Wirklichkeit oder Nichtwirklichkeit eines Denkens, das sich von der Praxis isoliert, ist eine rein scholastische Frage”.

(Karl Marx, Ad Feuerbach, 1844, Th. 2, Werke, Berlin: Dietz Verlag, 1976, Band 1)

 

“Das ‘praktische’ Verhalten ist nicht  ‘atheoretisch’ im Sinne der Sichtlosigkeit, und sein Unterschied gegen das theoretishce Verhalten liegt nicht nur darin, daß hier betrachtet und dort gehandelt wird, und daß das Handeln, um nicht blind zu bleiben, theoretisches Erkennen anwendet, sondern das Betrachten ist so ursprünglich ein Besorgen, wie das Handeln seine Sicht hat”. (Martin Heidegger, Sein und Zeit, 1927, § 15, Tübingen: Niemeyer, 1986)

 

INTRODUÇÃO

            Um tratado prático-teorético é fundamentalmente um tratado de epistemologia moral, na medida em que trata da filosofia prática em sua relação específica, por um lado, com uma teoria do conhecimento e da linguagem, e por outro lado, com a própria questão da teoria, enquanto teorização do ser (ontologia), da subjetividade (teoria ético-moral, problemas fundamentais de metafísica, em particular, da antropologia e psicologia filosóficas) e dos domínios regionais de objetos de investigação (incluindo correntes analíticas das chamadas filosofia da mente e filosofia da linguagem, e a própria lingüística, dentre outras ciências empíricas, como a biologia e a economia). Trata-se de marcar, outrossim, uma diferença fundamental entre um uso teórico e um uso prático da razão, seguindo uma tradição kantiana que, a despeito de contínuas e prolongadas críticas a uma idéia de “unidade da razão”, tem se mostrado deveras sustentável.[1] Tal diferença fundamental revela-se um princípio semântico-metafísico na própria classificação dos termos em que um tratado prático-teorético se propõe, na medida em que as diferenças implicadas entre o que é propriamente ontológico e não-ontológico acabam por nos remeter a uma diferenciação fundamental entre ontologia, subjetividade e linguagem. Um problema tão antigo quanto o da ontologia e das diferentes interpretações do realismo em Platão e Aristóteles serve aqui para balizar a idéia moderna de um perspectivismo que se mostra irredutível a oposições entre sujeito e mundo, subjetividade e ontologia, viabilizando uma retomada do problema da normatividade para além de oposições entre teoria e prática. Ademais, corrobora-se destarte toda tentativa de explicitar, hoje, em que consiste a normatividade, por exemplo, ao fundamentar ou justificar a crença de que as coisas são o que são, em contraposição ao que devem ser, ou que sejam assim e não de outro modo. Um erro em quaisquer aproximações de problemas de epistemologia moral consiste, com efeito, em reduzir tais problemas a pólos objetivistas, subjetivistas e intersubjetivistas e a diversas formulações de realismo e anti-realismo, intuicionismo e não-cognitivismo, internalismo e externalismo. O problema filosófico da normatividade revela-se, deste modo, anterior a tematizações afins na filosofia do direito e na filosofia da ciência. Já no início do século XX, Edmund Husserl aproximara o problema teórico da normatividade (por exemplo, na física matemática) de uma abordagem prática, na medida em que, por um lado, uma fundamentação fenomenológica da lógica e das ciências era pressuposta na própria distinção entre as chamadas ciências naturais e as ciências do espírito e, por outro lado, toda teoria pressupunha uma prática pré-teórica em nosso mundo da vida.[2] Embora o legado neokantiano desta problemática tenha sido sistematicamente criticado desde o início da filosofia analítica e das várias correntes da fenomenologia e hermenêutica, ainda permanecemos, no limiar do século XXI, reféns de um dos mais aporéticos dogmas de nosso filosofar, a saber, o de pressupormos uma certa normatividade –seja teórica, seja prática-- na própria constituição de sentido de nossas incessantes investigações. Se, para Kant, tudo na natureza opera segundo leis (isto é, tudo o que acontece, é o caso ou vem a ser, segue regras, num sentido teórico), assim como há um dever-ser ou uma normatividade prática, segundo as leis da liberdade, é a própria unidade da razão –enquanto idéia teórica e não como postulado prático-- e o recurso irredutível a uma subjetividade transcendental que nos asseguram uma coerência argumentativa. As tentativas de uma solução totalizante em autores como Hegel e Heidegger visam, decerto, a uma superação dos dualismos e da contraposição entre sujeito e objeto, mas parecem desembocar em novas versões de dogmatismo metafísico (subjetividade absoluta) e ontológico (diferença ôntico-ontológico), como foram respectivamente denunciados e traídos por uma certa herança da “metafísica da presença”, conforme a fórmula lapidar de Derrida. Decerto, a articulação prático-teórica de Sein und Zeit encerra um perspectivismo capaz de evitar reducionismos substancialistas, subjetivistas e nominalistas –por exemplo, na primazia prática de “que há um martelo” (Dass) sobre “o que venha a ser teoricamente tomado como objeto” (Was).

            Numa perspectiva metodológico-teórica, trata-se de um tratado de fenomenologia semântico-transcendental, em seu perspectivismo ontológico, ético-estético, semântico, repetindo solenemente a auto-asserção da filosofia transcendental enquanto prima philosophia, como modus philosophicus por excelência capaz de unir o significado conceitual, semântico, de toda filosofia: lógica, epistemologia, ética, estética e metafísica (onde se incluiriam ainda ontologia, antropologia, psicologia e teologia filosóficas). Embora trate primariamente de problemas de epistemologia moral, ética normativa, metaética e ética aplicada, um tratado prático-teórico desvela uma pretensão metodológica mais abrangente, fazendo jus ao seu perspectivismo semântico-transcendental. Esta é a maior lição que aprendemos com a leitura de um autor como Rawls, à primeira vista tão especializado quanto despretensioso, mas cuja teoria se desvela como sendo essencialmente prático-teorética e capaz de problematizar conceitos, tradições e áreas diversas como filosofia da mente (por exemplo, através da concepção normativa de pessoa), metafísica e filosofia da linguagem (em sua idéia diretriz de equilíbrio reflexivo). A reformulação rawlsiana do problema prático-teorético kantiano perpassa, outrossim, toda articulação meticulosa de conceitos teóricos ideais (como a posição original e a sociedade bem-ordenada) com a sua aplicabilidade prática (políticas públicas, direitos humanos, bioética) em termos teóricos não-ideais. Uma teoria da justiça como eqüidade é correlata, portanto, a uma ontologia política, a uma concepção normativa de subjetividade e, num sentido tão oblíquo quanto polêmico, a uma semântica transcendental. Amy Gutmann mostrou que a concepção normativa de pessoa em Rawls independe dos pressupostos metafísicos kantianos, assim como Philip Pettit argumentou em prol de uma ontologia política rawlsiana capaz de evitar os reducionismos utilitaristas e libertarianos, que tendem a inflacionar a concepção de povo enquanto agente coletivo ou a pulverizar grupos sociais em indivíduos supostamente livres, respectivamente.[3] Por outro lado, a obra de Rawls foi tradicionalmente recebida como algo indiferente à chamada “guinada lingüística” e à tradição analítica da filosofia da linguagem, como Norman Daniels o colocou, ao tentar explicar o tremendo impacto e o sucesso imediato da teoria da justiça:

One obvious factor is that many readers and editors found in Rawls’s work a welcome return to an older tradition of substantive, rather than semantic moral and political philosophy. Rawls’s approach stands in sharp contrast to the work of the logical positivists and the analytical school in general.[4]

 

            É precisamente por causa dessa complicada relação entre leituras substantivas e semânticas da ética e da filosofia política que, a meu ver, a obra de Rawls pode nos guiar num reexame da correlação entre metaética e ética substantiva, sobretudo se tomarmos o dispositivo procedimental do equilíbrio reflexivo como ferramenta de investigação metodológica, de forma a explorarmos as possíveis relações entre ontologia, subjetividade e linguagem. Pensadores tradicionalmente associados com a chamada filosofia continental, tais como Hegel, Husserl e Heidegger, assim como filósofos analíticos, como Wittgenstein, Hare e Davidson, contribuíram para esta aproximação possível entre fenomenologia e metaética, entre hermenêutica e filosofia analítica da linguagem. O presente tratado se propõe apenas a fornecer Materialen para esboçar os prolegômenos a toda investigação futura em ontologia, subjetividade e linguagem, segundo um perspectivismo semântico-transcendental, de inspiração kantiana e reconhecidamente devedor de interpretações seminais, tais como as oferecidas por Friedrich Kaulbach, Zeljko Loparic e Robert Hanna.[5] Assim como o perspectivismo transcendental rejeita um suposto dualismo ontológico de “dois mundos” (Zwei-Welten-Theorie), a semântica transcendental recusa todo reducionismo da filosofia transcendental kantiana a problemas lógico-ontológicos, mas a vislumbra também na elucidação de problemas ético-políticos, jurídicos e estéticos.[6] De resto, mesmo que usássemos o termo “ontologia” para compreender não apenas a totalidade do que é, mas ainda do que pode ser e do que deve ser, ainda assim teríamos de lidar com questões do poder e do dever-ser em outros enfoques de subjetividade e da própria linguagem se quiséssemos dar conta do problema rousseauniano que, seguindo e criticando um modelo hobbesiano, antecipa todas as formulações do jogo do regramento político, ao tomar os seres humanos como são e suas leis como devem ser: “Je yeux chercher si, dans l’ordre civil, il peut y avoir quelque règle d’administration légitime et sûre, en prenant les hommes tels qu’ils sont, et les lois telles qu’elles peuvent être”.[7] Com efeito, como Rousseau já observara no mesmo livro, uma questão do tipo “ovo e galinha” (a chicken-egg question) em muito antecipara o problema wittgensteiniano do rule-following (Regelfolgen, “seguir uma regra”)-- o que é mais fundamental: a existência da sociedade para a invenção da linguagem, ou a invenção da linguagem para o estabelecimento da sociedade? Segundo o filósofo suíço, “Pour qu’un peuple naissant pût goûter les saines maximes de la politique et suivre les règles fondamentales de la raison d’État, il faudrait que l’effet pût devenir la cause; que l’esprit social, qui doit être l’ouvrage de l’institution, présidât à l’institution même; et que les hommes fussent avant les lois ce qu’ils doivent devenir par elles”.[8] Assim como fora tematizado em termos aristotélicos pela articulação entre racionalidade (logos, linguagem) e sociabilidade (ontologia política), o problema clássico seria retomado em termos de representações de uma subjetividade, na modernidade, pela correlação intersubjetiva entre pessoa e sociedade. A teoria política (ou filosofia política) se apresenta como um locus por excelência da epistemologia moral e, neste sentido, da própria concepção de uma philosophia prima capaz de articular ontologia, subjetividade e linguagem, na tentativa de conjugar filosoficamente theoria e praxis.

            Outrossim, um tratado prático-teorético é essencialmente uma investigação metaética, na medida em que trata de conceitos, juízos e argumentos morais, de forma a tematizar questões semânticas (do tipo “o que é o bem?”, “o que é certo e errado?”), ontológicas (“há fatos morais?”), lógico-deônticas (“o que deve ser necessariamente inferido?”) e epistemológicas (“o cognitivismo moral é possível?”).[9] Neste sentido, o presente tratado segue um programa de investigação prático-teorética inciado com o Tractatus ethico-politicus, em sua proposta de traçar uma genealogia do ethos moderno, irredutível a uma história natural do animal humano ou a uma doutrina moral abrangente, teológica, antropológico-filosófica ou a quaisquer outras tentativas de reformular uma metafísica prática.[10] Trata-se, ademais, de revisitar a própria divisão da filosofia nos termos de seus objetos de investigação --o verdadeiro, o bem e o belo; theoria, praxis e poiesis; filosofia teórica, prática e estética. A emergência de novos termos para designar disciplinas tais como a epistemologia moral e a metaética no século XX, assim como a filosofia da linguagem e a filosofia da mente em filosofia teórica, nos remete não tanto ao surgimento de novos objetos ou problemas filosóficos quanto a novas maneiras de abordá-los, ou simplesmente a novas perspectivas do filosofar. De resto, o presente tratado se propõe a retomar o perspectivismo filosófico como uma nova maneira de fazer filosofia a partir das perspectivas delimitadas por problemas de ontologia, subjetividade e linguagem, sem preocupar-se com domínios pré-definidos, mas voltando-se antes para questões diretrizes que subjazem à questão norteadora: “o que é, afinal, filosofia?” O que determina a especificidade filosófica em nossas atuais reformulações de problemas teóricos tradicionais, cada vez mais interdisciplinares e cuja especificidade teórico-conceitual está constantemente colocada em xeque? A nossa hipótese de trabalho consiste em refutar tanto o relativismo moral quanto as posições mais ou menos dogmáticas adotadas por modelos cognitivistas (intuicionistas, teleológicos, deontológicos e utilitaristas) em filosofia moral, através de uma concepção semântico-transcendental do perspectivismo, capaz de efetivamente realizar pela prática aquilo que tem sido tematizado em metaética e ética normativa (por exemplo, pela adoção de políticas públicas, pela defesa e promoção eficaz dos direitos humanos, pela regulamentação de princípios bioéticos, da ecologia política e da ética aplicada em geral). É precisamente pela conjugação correlativa das perspectivas de uma ontologia política, de uma teoria normativa de pessoa e de uma hermenêutica pluralista da cultura política democrática que o equilíbrio reflexivo, inerente a uma teoria rawlsiana da justiça, pode nos guiar nesta empreitada de reconstrução de uma epistemologia moral de forma a evitar as limitações inerentes a concepções tradicionais de metaética e ética substantiva.

            Com efeito, o campo delimitado pela “epistemologia moral”, seguindo Robert Audi e outros filósofos analíticos de língua inglesa, tem procurado dar conta do problema suscitado pelo confronto entre questões de ontologia e linguagem e as mais recentes elaborações de uma filosofia moral pós-metafísica, sobretudo a partir dos trabalhos de G.E. Moore e A.J. Ayer em metaética e de B. Russell e L. Wittgenstein em epistemologia, no início do século, e mais recentemente de R.M. Hare, J. Mackie, W.V. Quine, D. Davidson, K. Lehrer, R. Audi, T. Nagel, S. Blackburn, P. Railton e R. Campbell.[11] O estado atual das pesquisas sobre epistemologia moral e metaética e sua aplicabilidade em ética normativa, ética aplicada e filosofia política divide-se entre aqueles que defendem uma concepção utilitarista ou intuicionista do realismo moral em Kant (autores de língua inglesa, sobretudo ligados aos trabalhos de Sidgwick, Ross, Hare, Audi  e epígonos) e aqueles que seguem uma concepção procedimentalista ou construtivista do anti-realismo na filosofia moral de Kant (Rawls, Habermas, O’Neill, Pogge, Wood, Schneewind). A partir do segundo grupo de autores, notavelmente após a publicação do livro seminal de Brink, vários estudos têm procurado resgatar um modelo cognitivista em ética e filosofia política, de forma a evitar os dilemas e aporias decorrentes da mera redução do realismo ao intuicionismo ou da rotulação de falácia naturalista às abordagens que operam um retorno pós-kantiano a Hume. O ceticismo e o não-cognitivismo em moral têm se mostrado, com efeito, bem mais fecundos para o problema da moral do que nos fazem crer os novos anti-fundacionismos modernos e pós-modernos. Através de uma releitura da problemática articulação entre os legados de pensadores tão diversos quanto Hume, Kant, Wittgenstein e Habermas, o presente tratado procura mostrar em que sentido o construtivismo rawlsiano contribui para a epistemologia moral e merece a denominação não-pejorativa de “uma deontologia com face humeana”.

            O nosso insight e ponto de partida programáticos é o postulado rawlsiano do equilíbrio reflexivo, enquanto dispositivo procedimental de representação capaz de articular o construtivismo político entre os conceitos e princípios de uma teoria ideal e as nossas idéias intuitivas sobre a justiça, o bem e o que é, afinal, moralmente aceitável, nas mais diversas formas de vida, crenças e valorações expressas por um ethos ou um modus vivendi qualquer, em nível de uma teoria não-ideal. Assim como Kant e Marx antes dele, Rawls não toma como pressuposto que há fatos morais, embora reconheça que grupos sociais concretos compartilham juízos morais, mais ou menos ponderados ou resultantes da deliberação e da reflexão morais. Mesmo que a socialização de indivíduos possa explicar como se dá, em grande parte, tal processo de valoração ético-política, o fenômeno de “seguir regras” num determinado contexto social não seria redutível a meras constatações empíricas, como já sugeriu Wittgenstein, mas prescinde de uma análise lingüístico-filosófica dos complexos jogos de racionalidade que subordinam meios a fins.

            Sem maiores pretensões além de introduzir o leitor a problemas fundamentais de epistemologia moral, o presente texto apresenta de maneira deliberadamente reconstrutiva problemas paradigmáticos de ontologia, subjetividade e linguagem enquanto característicos de três modos distintos de se pensar a relação entre ser, pensamento e linguagem. A presente investigação pressupõe, portanto, uma pesquisa ético-política, dentro da qual se insere e onde se visa uma tal articulação em um nível prático (em contraposição ao teórico ou teorético, segundo o uso kantiano). Uma perspectiva  semântico-transcendental já se encontrava, decerto, de forma ainda implícita em concepções reconstrutivas de inspiração nietzscheana, heideggeriana e foucauldiana, contrastando com as teorias analíticas de autores contemporâneos como Rawls e Habermas. De resto, o termo “perspectivismo” é de inspiração tão nietzscheana quanto kantiana ou husserliana, não devendo limitar-se a um uso estético-empírico ou meramente fenomenológico-transcendental, assim como não poderia confinar-se a uma abordagem analítica ou continental da filosofia política.[12] A guinada hermenêutico-analítica serve, neste caso, para explicitar tal perspectivismo como sendo justamente semântico-transcendental.

Introdução: Tractatus - O perspectivismo transcendental enquanto hermenêutica analítico-fenomenológica filosofia européia contemporânea

 

            O primeiro capítulo trata da relação entre teoria e prática à luz da recepção wittgensteiniana do problema platônico do realismo, seguindo a teoria do atomismo lógico de Bertrand Russell. O capítulo apresenta algumas reflexões acerca da teoria do significado no primeiro e no segundo Wittgenstein, mostrando como o conceito de jogos de linguagem no segundo implica uma forma de ceticismo quanto ao ato de seguir uma regra. Assim como o primeiro Wittgenstein teria logrado uma Aufbau semântico-transcendental de inspiração kantiana, o segundo Wittgenstein procede a uma verdadeira Abbau ou desconstrução de sua própria teoria pictórica da linguagem, do mito da interioridade e do paradigma das chamadas filosofias da consciência.

            No segundo capítulo, tratamos da relação entre teoria e prática, notavelmente à luz da apropriação contemporânea que Rawls nos oferece da articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal, seguindo releituras de Platão e Kant. Assim, o capítulo nos introduz definitivamente na problemática fundante da teoria política, a saber, a de articular teoria e prática como tarefa fundamental da filosofia:

            No terceiro capítulo, investigamos a concepção de comunidade, moralidade e religião nos escritos do jovem Hegel, em particular na sua formulação da origem do cristianismo a partir da superação (Aufhebung) do judaísmo, na realização efetiva da liberdade humana a ser desenvolvida mais tarde em seus escritos jurídico-políticos. Uma de minhas hipóteses de trabalho é de reexaminar em que sentido a crítica hegeliana do contratualismo que resulta na concepção de eticidade na Filosofia do Direito pressupõe a concepção de comunidade religiosa de seus escritos de juventude. Tal projeto é compatibilizado com o intento contemporâneo de buscar alternativas teórico-políticas ao liberalismo como o procura fazer, por exemplo, o comunitarismo.

comunitarismo, contratualismo, cristianismo, eticidade, judaísmo, liberdade, moralidade, religião

 

            O quarto capítulo retoma a contribuição de Kant

a fim de desafiá-la, como o faz Hegel e seu modelo comunitarista dialético, encontrando na historicidade e intersubjetividade social da experiência humana o destino da liberdade na modernidade. Mostrar-se-á em que medida Hegel permanece próximo do ideal de dever-ser kantiano, ao mesmo tempo em que retorna a Aristóteles e rompe com o dualismo sensível-inteligível e com a abstração do contratualismo.

            No quinto capítulo, retomamos a problemática delineada pelo ethos heraclítico, na sua mais radical leitura não-dialética e não-cognitivista: o perspectivismo proposto por Nietzsche e contraposto aos modelos cognitivistas liberais e comunitaristas. O problema paradigmático da ética moderna pode ser, neste sentido, formulado pela contraposição de Nietzsche a Kant e Hegel, assim como o perspectivismo nietzschiano se opõe ao deontologismo kantiano e à dialética de reconciliação hegeliana. Apesar de não propor nenhuma ética no sentido prescritivo de normatividade, Nietzsche empreende uma crítica genealógica da modernidade de forma a desvelar a correlação saber-poder na própria constituição do sujeito moderno. O perspectivismo nietzschiano não apenas desmascara os interesses  práticos inerentes a uma subjetividade cognoscente mas revela ainda a historicidade e metaforicidade do sujeito que se constitui por suas valorações do mundo humano.

Com Foucault e a genealogia da modernidade, o sexto capítulo retoma o perspectivismo nietzschiano, na sua articulação entre verdade e vontade de poder, a fim de demonstrar que há uma dimensão ético-política inerente ao esteticismo desses autores. Apresentamos, assim, algumas reflexões acerca da genealogia do sujeito moderno segundo Foucault, enfocando particularmente a correlação entre verdade, poder e ética na constituição de uma subjetividade destranscendentalizada. Através de suas releituras de Kant e Nietzsche, Foucault desenvolve uma crítica a concepções metafísicas da natureza humana e propõe uma genealogia da subjetividade de modo a renovar questões de método em filosofia e nas ciências humanas, e reaproximar o político do ético numa estética da existência.

No sétimo capítulo, reexaminamos a concepção política de justiça defendida por Rawls à luz de sua contraposição a uma concepção hobbesiana de justiça como vantagem mútua ou regramento de interesses, por um lado, e de sua apropriação crítica do construtivismo procedimental kantiano numa concepção de justiça como imparcialidade, por outro lado. Partindo da constatação de uma continuidade entre a primeira formulação rawlsiana da doutrina abrangente da justiça como eqüidade em A Theory of Justice (1971) e sua concepção política de justiça no volume sobre Political Liberalism (1993), procurar-se-á demonstrar em que medida Rawls logra preservar o princípio normativo de universalizabilidade sem incorrer no fundacionalismo moral do “fato da razão” kantiano e dar conta da estabilidade de uma “sociedade bem-ordenada”, onde são satisfeitas as exigências de um ajuste racional para arbitrar interesses conflitantes. Trata-se de abordar, portanto, o liberalismo político de Rawls na sua dupla fundamentação de uma teoria contratualista da obrigação política e de uma teoria procedimentalista da justiça, à luz dos conceitos kantianos de razão prática, autonomia e publicidade.   

Finalmente, o oitavo capítulo discorre sobre

Equilíbrio reflexivo e mundo da vida em Rawls e Habermas universalismo modernista ético-político, enquanto modelo deliberativo-participativo de democracia, que visa conciliar as virtudes dos modelos universalistas liberais e comunitaristas socialistas sem os seus respectivos vícios.

Partindo da concepção habermasiana de mundo da vida, conforme sua apropriação crítica dos conceitos de Lebenswelt em Husserl e Lebensform em Wittgenstein, procuramos mostrar em que medida Habermas dá conta da fundamentação normativa de uma teoria crítica da sociedade ao propor uma alternativa ao liberalismo político de Rawls e ao comunitarismo de neo-aristotélicos, neomarxistas e neo-hegelianos, tais como MacIntyre, Elster e Taylor.  Encerramos, assim, nossa odisséia conceitual com uma reformulação genealógica da Lebenswelt moderna.  Através dos inacabáveis debates entre liberais e comunitaristas, modernistas e pós-modernos, universalistas e particularistas, chegamos à complexa situação de multiculturalismo e pluralismo democrático que hoje presenciamos e com a qual esperamos conviver cada vez melhor nos próximos séculos, em meio a tanta miséria humana e apesar das crescentes exclusões e desigualdades sociais.

 

20th-Century European philosophy has been characterized by the return to and critical appropriations of given strands of modern philosophy (notably Cartesian rationalism, British empiricism, and German idealism, and especially the lasting contributions by Descartes, Hume, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, and Kierkegaard). It has been argued that the seminal works of Gottlob Frege and other logicians and philosophers of mathematics led to the decisive emergence of the analytical philosophy of language and the schools of phenomenology at the threshold of the 20th century in Europe. Although this has been somewhat a geographical rather than properly conceptual division of labor, the opposition between (British) analytical and Continental philosophy has been sustained even by those who either problematize or refuse such an opposition. By all criteria, both currents have elaborated on a radical critique of traditional metaphysics and of the modern conceptions of subjectivity, consciousness and representation, and have shared a common interest in the philosophy of meaning and language, as well as in the related problems of intersubjectivity and of a post-Kantian return to fundamental questions of ontology and logic. In effect, although the philosophy of language does emerge as a new paradigm in the20th-century, both ontology and subjectivity remain within the creative, conceptual horizon of the new landscape that still characterizes Contemporary European Philosophy even today. On the other hand, it would certainly be unfair to classify the various strands, trends and schools of 20th-century European thought as though they could be confined to exclusive, self-contained sets, since many other possible combinations would allow for equally fair, imaginable classifications. In a work in progress, Tractatus practico-theoreticus, in which I deal with contemporary approaches to the classical problem of articulating theoria and praxis and offer a moral epistemological counterpart to the first part of a trilogy on modern philosophical anthropology (Tractatus ethico-politicus, Edipucrs, 1999), I have suggested a fourfold mapping of 20th-Century European philosophy as follows:

1. Filosofia anlítica, positivismo lógico e filosofia da linguagem: G.E. Moore, B. Russell, L. Wittgenstein, G.E.M. Anscombe, G. Ryle, A.N. Whitehead, R. Carnap, E. Cassirer, K. Popper, M. Schlick, O. Neurath, A.J. Ayer, H. Albert, P. Strawson, J.L. Austin, J. Hintikka, M. Dummett, K.O. Apel, E. Tugendhat, D. Henrich

2. Fenomenologia, Lebensphilosophie, hermenêutica, existencialismo, pós-estruturalismo e desconstrução: E. Husserl, W. Dilthey, H. Bergson, M. Heidegger, M. Scheler, K. Jaspers, J. Ortega y Gasset, M. de Unamuno, M. Buber, F. Rosenzweig, K. Löwith, N. Hartmann, G. Marcel, G. Bachelard, H. Plessner, A. Gehlen, N. Berdyaev, A. Camus, M. Merleau-Ponty, J.-P. Sartre, E. Mounier, M. Foucault, E. Levinas, G. Bataille, G. Deleuze, H.-G. Gadamer, P. Ricoeur, M. Henry, J.F. Lyotard, J. Derrida, G. Vattimo, R. Schürmann, M. Frank, D. Janicaud, J.L. Nancy, P. Lacoue-Labarthe

3. Marxismo e filosofia social: A. Gramsci, G. Lukács, C. Schmitt, W. Benjamin, T.W. Adorno, M. Horkheimer, E. Bloch, H. Arendt, L. Strauss, L. Althusser, C. Lefort, C. Castoriadis, I. Berlin, J. Habermas, N. Bobbio, T. Negri, O. Höffe, W. Kersting, A. Wellmer, A. Honneth, J. Baudrillard, J. Elster, B. Barry, T. Pogge

4. Estudos culturais e de gênero, filosofia feminista, filosofia da raça, psicanálise, estruturalismo, ambientalismo e estudos interdisciplinares: S. Freud, C.G. Jung, F. de Saussure, J. Lacan, S. Beauvoir, C. Lévi-Strauss, R. Barthes, S. Weil, H. Cixous, L. Irigaray, J. Kristeva, N. Sarraute, S. Hall, P. Gilroy, C. Ruthner, W. Müller-Funk, A. Millner, E. Morin, R. Major, M.M. Roberts, T. Mizuta, G. Pollock, G. Griffin, C. von Braun, E. Sotelo, R. Bernasconi, P. Singer

 

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Apel Wittgenstein Heidegger

fenomenologia e filosofia analítica

A guinada lingüístico-pragmática em filosofia política

Mundo da vida, fenomenologia e filosofia analítica

Problemas analítico-hermenêuticos

A presentação do mundo


Trata-se de responder à mais fundamental e abrangente questão filosófica através de tratados, que tratam de ontologia, subjetividade e linguagem. Em se tratando de problemas de metafísica e ontologia, ética e filosofia política, estética e filosofia da religião, cada tratado mantém a especificidade de sua investigação, ao mesmo tempo em que nos remete a um perspectivismo semântico-transcendental capaz de explicitar a especificidade filosófica de tais investigações.

A fim de respondermos à questão “o que é perspectivismo?”, devemos articular questões de ontologia, subjetividade e linguagem com domínios e disciplinas específicos da filosofia, o que também nos remete inevitavelmente à questão “o que é filosofia?” Numa abordagem de epistemologia moral, é mister situarmos o objeto de nossa investigação com relação a tais domínios da filosofia. Embora haja uma tendência, desde os chamados pré-socráticos até os nossos dias, a aproximar a filosofia da arte, da ciência ou da religião, a filosofia não se deixa reduzir a nenhuma delas, embora tenha sempre influenciado e sido influenciada diversamente por todas elas. Etimologicamente, como é bem conhecido de todos, a palavra “filosofia” (do grego philo + sophia) significa “amor à sabedoria” ou “amizade ao saber”, na medida em que os primeiros filósofos gregos buscavam conhecer cada vez melhor a si mesmos e o mundo que os cercava. Assim, a filosofia se apresenta como um questionamento radical acerca da realidade última das coisas: o ser, os entes, a verdade, o bem, o belo, o eterno. Por isso mesmo, historicamente, as primeiras investigações filosóficas se confundiam com os primeiros questionamentos sobre a natureza (physis) do universo: a terra, a água, os céus, os corpos celestes, o fogo, o repouso, o movimento, as mudanças de estações e a repetição de fenômenos (como os eclipses, as estações etc). Até a emergência da ciência moderna com Copérnico, Galileu e Newton nos séculos XVI e XVII, a filosofia da natureza se ocupava do mesmo objeto de investigação da própria ciência da época. Por outro lado, desde Homero, os poetas trágicos e líricos, havia nas teogonias e cosmogonias um forte elemento mítico-religioso que seria pouco a pouco desconstruído pela filosofia, mesmo quando mantinha uma identificação mais próxima à arte e literatura. A problemática relação entre arte e ciência só pode ser compreendida à luz das transformações filosóficas dos termos “techne” (arte) e “episteme” (ciência), sobretudo a partir de Platão e Aristóteles. Grosso modo, podemos dividir os grandes domínios e objetos de estudo da filosofia em 5 áreas distintas:

1. Metafísica, Ontologia
2. Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Ciência
3. Ética e Filosofia Política
4. Estética
5. Filosofia da Religião

 

1. A metafísica trata do “ser enquanto ser”, isto é, de investigar o que é, o que há, a realidade, e de elucidar a questão fundamental do ser. De uma maneira mais abrangente, a metafísica pode ser tomada num sentido geral (ontologia) que trata da questão do ser dos entes (em grego, “onta”) ou num sentido especial, tratando especificamente de Deus (teologia filosófica), da alma humana (psicologia filosófica e antropologia filosófica) e do mundo (cosmologia filosófica).

 

2. A lógica diz respeito às regras de inferência (dedução) do pensamento analítico, diferenciando   inferências válidas (silogismos) e inválidas (falácias ou sofismas). A epistemologia é a teoria do conhecimento, isto é, a parte da filosofia que procura justificar racionalmente crenças verdadeiras. A filosofia da linguagem cuida de questões sobre o significado e a verdade de proposições lingüísticas. A filosofia da ciência examina a fundamentação e a justificativa das ciências e seus respectivos métodos de investigação.

3. A ética é o estudo filosófico da ação moral e trata de questões sobre a conduta humana, a sua normatividade e implicações práticas. A filosofia política tenta fundamentar a sociabilidade humana enquanto seres que vivem racionalmente em sociedade, assim como busca justificar a melhor forma de constituição política ou o melhor regime de governo. A filosofia do direito procura justificar a normatividade das codificações jurídicas, uma teoria da justiça, uma teoria do Estado e teorias afins (constituição, democracia, direitos humanos), muitas vezes ao ponto de se confundir com a filosofia política.

 

4. A estética (do grego aisthesis, sentidos) trata da arte, do belo, do sublime e de todas as formas de expressão artística (literatura, música, teatro, pintura, escultura, cinema etc) em sua fundamentação filosófica: o que é, afinal, uma obra de arte?


5. A filosofia da religião trata do divino, do sagrado, da divindade e de suas manifestações através da religião. Os problemas da fé, do misticismo, do absoluto, da alteridade, da imortalidade da alma e da morte são aqui tematizados.

 

metaética epistemologia moral

 

Davidson

 

Dorothea Frede, “Disintegration and restoration: Pleasure and pain in Plato’s Philebus”, in The Cambridge Companion to Plato, ed. Richard Kraut. Cambridge University Press, 1992. 425-463.

459 n. 16: Davidson conclui que o Philebus marca a renúncia definitiva de Platão de recorrer à dialética para dar conta da incomensurabilidade entre conhecimento e prazer. Interessantemente a discussão sobre a fraqueza da vontade (desde Aristótele denominado o problema da akrasia), i.e. de agir contra aquilo que se considera o melhor ou o bem a ser racionalmente seguido. A posição socrática seria de que alguém somente erraria moralmente por ignorância, enquanto Platão (dos diáologos intermediários e tardios) parece conceder que há partes conflitantes em nossa alma que dificultam a vida virtuosa, o que exige bastante aiskesis, exercício espiritual, práticas e hábitos morais. diferente da motivação, por ex, em Kant, onde a vontade é que é determinante e não apenas o conhecimento (cognição moral), como em Platão. p. 134

 

 

Em seu prefácio

 

 

 

 

Tratados de filosofia semântico-transcendental

 

 

 Perspectivismo Semântico-Transcendental em Epistemologia Moral

 

Introdução a problemas de metaética e epistemologia moral em Immanuel Kant e John Rawls, à luz das recentes contribuições de filósofos analíticos, particularmente das Lectures on the History of Moral Philosophy (2000) do segundo e de textos seminais como Moral Realism and the Foundations of Ethics (1989) de David O. Brink, The Moral Problem (1994) de Michael Smith e Kant and the Foundations of Analytic Philosophy (2001) de Robert Hanna. Neste seminário, revisitaremos as contribuições de Kant, Hume e Rawls para a epistemologia moral, assim como a problemática da recepção analítica de Kant, particularmente no vasto campo de pesquisas em metaética.

 

A questão da diferença entre uma abordagem descritiva e uma abordagem prescritiva é tematizada pela epistemologia enquanto teoria do conhecimento numa perspectiva que tem sido identificada como sendo “normativa” em oposição à “naturalista” ou “naturalizada”, seguindo o polêmico projeto de Willard Von Quine de naturalizar a epistemologia (epistemology naturalized).[13] Um outro pensador de Harvard, John Rawls, revisitou em sua filosofia prática o papel fundamental da teoria, partindo desta mesma  problemática empirista pela releitura pós-kantiana de David Hume, assim como o filósofo alemão Jürgen Habermas radicalizou, por sua vez, a teoria crítica pela reformulação da racionalidade prática após sucessivas querelas positivistas e pós-empiristas. Tanto Rawls quanto Habermas testemunharam no final do século XX a tremenda crise por que passara a aparentemente segura e tranqüila dicotomia neokantiana que, no início do mesmo século, contrapunha a epistemologia à moral assim como a modelos cognitivistas e não-cognitivistas de teoria e normatividade que meramente ressuscitavam as supostamente superadas querelas entre racionalistas e empiristas no início da modernidade clássica. Com efeito, as mais variadas tradições de filosofia analítica e continental no século XX acabariam por voltar ao problema kantiano da “terceira via” com relação à primazia acordada à razão ou à experiência na formulação de uma teoria do conhecimento e de uma filosofia da ação.  Stein Husserl Heidegger Todavia não creio que seria questão aqui de tomar partido por uma tradição, por exemplo, oriunda do idealismo alemão, em oposição ao racionalismo cartesiano ou ao empirismo britânico.

Antes mesmo de Immanuel Kant haver consagrado tal diferenciação e o sentido propriamente filosófico da razão prática em sua contraposição à razão teórica, encontramos a expressão em autores modernos de língua inglesa e francesa, em seus respectivos modelos de argumentação empiristas e racionalistas. Segundo Lewis White Beck, o termo kantiano “praktische Vernunft” remonta a 1765, embora a expressão inglesa “practical reason” já houvesse sido empregada por Richard Burthogge em 1678, em seu Organum vetus et novum, or Discourse on Reason and Truth.[14] Mesmo que não tenha tomado o termo diretamente de autores britânicos que lera antes da sua guinada crítica, como argumenta Beck, o filósofo de Königsberg teve sobretudo o mérito de haver superado a mera contraposição entre Verstand e Wille, como a encontramos na tradição racionalista desde Descartes e Malebranche a Leibniz e Wolff. Com efeito, já no seu celebrado Discours de la méthode de 1637 Descartes nos adverte que, em se tratando da impossibilidade de discernir as opiniões ou crenças mais verdadeiras, sigamos as mais prováveis, e no caso da indeterminação destas, que nos determinemos a algumas delas e as consideremos verdadeiras e certas na medida em que se relacionam com a prática (et même, qu’encore que nous ne remarquions point davantage de probabilité aux unes qu’aux autres [opinions], nous devons néanmoins nous déterminer à quelques-unes, et les considérer après, non plus comme douteuses, en tant qu’elles se rapportent à la pratique, mais comme très vraies e très certaines, à cause que la raison qui nous y a fait déterminer, se trouve telle).[15] epistemologia normativa e naturalista Klein     

assim como encontramos

 

Por “epistemologia moral” entendo aqui o campo demarcado pelas questões de justificação epistêmica Sosa. perspectivismo transcendental filosofia continental e filosofia analítica da linguagem Karl-Otto Apel

 

Hume

outro lado, é da filosofia tout cout que ele trata, pois todo tratado filosófico é, direta ou indiretamente, prático-teorético, dependendo da maior ou menor articulação entre questões de ontologia, epistemologia e linguagem. Pensamos imediatamente em autores como Wittgenstein ou Quine, mas não seria menos pertinente atribuirmos a pensadores como Spinoza, Marx e Heidegger a lograda tarefa de pensar o ser e como dizê-lo. De resto, é neste sentido que podemos entender a ética, por exemplo, enquanto tarefa fundamental do pensamento. Dizer que há algo --coisas, objetos concretos ou abstratos-- nos remete desde sempre ao problema do realismo platônico e suas diferentes versões e problematizações de anti-realismo. Assim como o verdadeiro, o bem  e o belo, podemos tomar o objeto do pensamento sobre a sociabilidade, o poder e as relações e instituições coercitivas enquanto algo ainda por ser investigado, determinado, objetivado numa meditação tão metafísica e com tanta pretensão de superação da metafísica quanto uma meditação cartesiana, husserliana ou habermasiana. Afinal, pensar o político é dizer o que é e o que deve ser o político. Pensar, isto é, enunciar, discorrer sobre, tratar da relação entre teoria e prática. Portanto, theoria e praxis sempre foram e permanecem hic et nunc a questão filosófica por excelência, irredutível a um domínio específico da filosofia --para antigos e modernos. Talvez seja esta tão modesta quanto audaciosa contribuição uma versão inaudita de anciennes querelles (sua implícita pretensão), mesmo assim repetindo algo que foi dito ou pensado, daí a repetição, a remise en scène de querelas de anciens e modernes.

 

Ontologia Social, Subjetividade e Linguagem

Perspectivismo Transcendental

 

Pensar a diferença entre ser e dever-ser, assim como entre vita contemplativa e vita activa, theoreticus e practicus --para além de toda proposta de Aufhebung dialética,-- eis-nos aqui diante de nossa nobre vocação, a do espanto malgré tout, a despeito de infindáveis possibilidades de leituras, interpretações, voire traições de tradições, do grego ao latim, mas também do hebraico ao grego. Pensar a correlação intersubjetividade e linguagem de a contribuir para estabelecer a especificidade do político, e em que medida este é independente da moral ou anterior a esta. Cf Tractatus ethico-politicus. Outrossim, ao tratar de questões em torno do complexo correlato de teoria e prática resgata-se um sentido fundamental, a saber, o da própria crítica à metafísica da fundamentação. Aristóteles,  ética e de filosofia política, toda investigação conceitual termina por tratar também da não menos problemática questão acerca da natureza humana.

 

Assim, retornamos ao triângulo clássico que articula, num mesmo espaço discursivo, antropologia filosófica, ética e filosofia política.

Revisitar constante e sistematicamente a idéia diretriz do tractatus traduz e trai, na verdade, uma nova proposta de fazer filosofia, una nueva manera de hacer filosofía, subjacente a este breve tratado introdutório de epistemologia moral e ao projeto mais amplo e ambicioso da trilogia, de estabelecer o perspectivismo transcendental como tomada de posição metodológica e mathesis universalis, por mais paradoxal que possa parecer. Num terceiro momento, com efeito, é tematizada a problemática da contradição performativa inerente à superação definitiva do paradigma metafísico ou onto-teológico da filosofia.[16] Este é, de resto, o problema por excelência de toda tentativa de resolver o problema semântico da filosofia da linguagem, sem recorrer a uma lógica transcendental nem a suas alternativas naturalistas e semióticas transcendentais. Neste sentido, um tratado de epistemologia moral mostra por que a crise de paradigmas das ciências sociais revela um problema maior e mais complexo dentro da própria reflexão filosófica sobre a ciência e o progresso da tecnologia, notavelmente na filosofia e história da ciência. Apel

Assim como foi abordada, no primeiro Tractatus, a articulação entre natureza humana, ética e política, procura-se retomar aqui uma “história de problemas”, Problemgeschichte, das oposições entre ontologia, consciência moral e linguagem e seus paradigmas propostos por modelos clássicos, modernos e contemporâneos de filosofia. O legado de problematizações em questão é o que motiva as mais importantes produções teóricas na primeira e segunda metades do século XX, assinadas por Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger, John Rawls e Jürgen Habermas. Assim como Rawls dificilmente poderia ser percebido como um herdeiro de Wittgenstein ou Habermas com relação a Heidegger, a transformação operada pela indiferença com relação ao método lingüístico-analítico no primeiro caso e a sutil reapropriação de temas hermenêutico-fenomenológicos no segundo confirmam a suspeita de que a oposição entre as chamadas filosofias analíticas e continentais se dissolve na transubstanciação da própria filosofia do século XX em algo quimérico no século XXI. Como bem observou Richard Rorty, a guinada lingüística é um movimento inacabado, tanto em filosofia analítica quanto em fenomenologia e hermenêutica, como podemos inferir da recepção da filosofia da interpretação e da ação de Donaldo Davidson com relação a Wittgenstein, assim como na desconstrução de Jacques Derrida com relação a Heidegger.(Companion to Heidegger)


Capítulo Um

 

Significação do Mundo: Da semântica transcendental do Tractatus

à desconstrução do significado nas Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein

 

“Skeptizismus ist nicht unwiderleglich, sondern offenbar unsinnig, wenn er bezweifeln will, wo nicht gefragt werden kann”. (T 6.51)

“O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contra-senso (unsinnig), se pretende duvidar onde não se pode perguntar.” (T 6.51)

“Ist es aber eine genügende Antwort auf die Skepsis der Idealisten oder die Versicherungen der Realisten: ‘Es gibt physikalische Gegenstände’ Unsinn ist? Für sie es doch nicht Unsinn”. (UG 37)

“Mas seria uma resposta adequada à skepsis dos idealistas ou às seguranças dos realistas dizer que “há objetos físicos” é um contra-senso (Unsinn)?Afinal, para eles não é contra-senso.” (UG 37)

 

            Antes de mais nada, consideremos um problema de terminologia: “contra-senso”, seguindo Luiz Henrique Lopes dos Santos (cf. Tractatus 4.003, 6.51), traduz em português o substantivo Unsinn (em inglês nonsense) e sua forma adjetivada unsinnig (non-sensic), equiparando-o a Widersinn. A concepção de Bedeutung (significado, significação) em Wittgenstein deve ser, assim, contrastada com a de Frege, por um lado, e a de Husserl, por outro.2 Segundo Frege, as duas expressões “1+1+1+1” e “(1+1)+(1+1)” têm o mesmo significado (dieselbe Bedeutung), portanto a mesma referência, mas sentidos diferentes (verschiedenen Sinn) (T 6.231). O autor do Tractatus se propõe a mostrar que “a identidade de duas expressões não se pode asserir” (6.2322), sendo portanto impossível dizer o que pode ser apenas mostrado. “O que pode ser mostrado não pode ser dito” (Was gezeigt werden kann, kann nicht gesagt werden, 4.1212), visto que “a proposição mostra seu sentido” (Der Satz zeigt seinen Sinn, 4.022). Husserl também se opôs à solução fregiana da referência enquanto significado, através das funções de valores de verdade que constituem o sentido de proposições. Assim, duas proposições providas de sentidos diferentes como “a estrela da tarde é um planeta” e “a estrela da manhã é um planeta” atribuem a mesma propriedade ao mesmo objeto. Enquanto Frege identifica Gegenstand e Bedeutung ao expressar o valor de verdade do conceito como referência, Husserl associa conceitos (Begriffe) a objetos (Gegenstände) na relação lógica a fatos (Beziehungen) que constituem objeto do pensamento (Gedanke). Em suma, o que Frege denomina Sinn e Bedeutung corresponde, respectivamente, a Bedeutung e Gegenstand em Husserl. O contra-senso (Widersinn) não é, estritamente falando, desprovido de sentido (sinnlos), ao contrário do não-senso (Unsinn) que não possui nenhum uso lingüístico. Bedeutung e Sinn se equivalem, portanto, na medida em que realizam uma performance de sentido, uma significação (Bedeutungserfüllung). Se para o cético a proposição “há objetos físicos” não é contra-senso (Unsinn), é porque a linguagem ordinária da vida comum nos ensina a distinguir o que faz sentido, “ein sinnvolle Satz”, um pensamento possível, um objeto que possa ser pensado, de um contra-senso (Widersinn) ou daquilo que não faz sentido (Unsinn, sinnlos). Por exemplo, o conceito de uma filosofia cristã é, para Heidegger[3] e para muitos, um “quadrado redondo”, um Widersinn, enquanto uma construção do tipo “verde canta foi” é simplesmente sinnlos, desprovida de sentido. O enunciado “há objetos físicos” exprime uma proposição com sentido (ein sinnvolle Satz), portanto, a possibilidade lógica de um pensamento. Até aqui o autor do Tractatus não entraria em conflito com o autor das Investigações. No mesmo aforismo supracitado sobre o ceticismo, o autor do Tractatus afirma que “só pode existir dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta, só onde algo possa ser dito”.(T 6.51) Do mesmo modo, para o autor das Investigações, o passo seguinte de asserir que realmente ‘há objetos físicos’, como dizer que ‘W’ significa W, não pode ser dito sem já não ter sido mostrado. Significar é mostrar, na medida em que “o que uma palavra significa, uma proposição não pode dizer”(“Was ein Wort bedeutet, kann ein Satz nicht sagen”, PG I Anhang 3). Mas por que o próprio Wittgenstein rejeitaria, mais tarde, a chamada concepção ostensiva da linguagem? Esta questão implicaria muitas outras, incluindo o problema da metafísica e da ética nestes escritos, mas limitar-me-ei aqui ao problema do significado. O ponto de partida deste artigo reduz-se à simples constatação de que, tanto no Tractatus quanto nas Investigações, Wittgenstein procura distanciar-se de uma teoria referencial do significado, em particular, do logicismo de Frege e Russell no “primeiro” e da semiologia ostensiva no “segundo” Wittgenstein. Com efeito, a oposição entre o atomismo lingüístico no Tractatus e o suposto “ceticismo de regras” (rule-skepticism) nas Investigações Filosóficas constitui a problemática central de um inacabado debate sobre a teoria do significado em Wittgenstein. Este debate será aqui reexaminado a partir do artigo seminal de Saul Kripke sobre “Regras e Linguagem Privada em Wittgenstein”[4] e das subseqüentes críticas empreendidas por Colin McGinn e G.P.Baker & P.M.S. Hacker.[5] Não se trata de reavaliar a controversa recepção de Wittgenstein entre filósofos analíticos de língua inglesa, nem mesmo de resgatar uma teoria wittgensteiniana do significado através dos seus escritos de ambas as fases (antes e depois do seu retorno a Cambridge em 1929). Proponho-me tão-somente reexaminar a concepção wittgensteiniana do significado como uso (Bedeutung als Gebrauch), na passagem da chamada “teoria figurativa da proposição” no Tractatus a uma “teoria de jogos de linguagem” nas Investigações. É nesta passagem que procurarei localizar a atitude de Wittgenstein em relação à skepsis da “suspensão de juízo” (epochê)[6] quanto à determinação e formulação das regras que asseguram o significado e a compreensão daquilo que está em jogo num dado contexto lingüístico.

            Nas suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein explora entre outros problemas, os conceitos de significado e compreensão (“Den Begriff der Bedeutung, des Verstehens” Prefácio ix). O problema da “linguagem privada” constitui igualmente um dos mais importantes temas lingüísticos analisados pelo “segundo” Wittgenstein nas Investigações (PU §§  243 ss). Entre as passagens mais intrigantes que tratam dos conceitos de significado e compreensão em conexão com o argumento da “linguagem privada” estão as duas situações no § 293 (a minha dor/o meu besouro; a dor/o besouro de outrem). Apesar de nenhum destes conceitos ser explicitamente articulado neste parágrafo, ambos são supostos para “saber o que a palavra ‘dor’ significa” ou o que é designado por “besouro” (Käffer). Segundo Kripke, o verdadeiro argumento da linguagem privada se encontra nas seções que precedem o § 243 --e não nas que o sucedem, como reza a tradição-- em particular do § 143 ao § 242, onde é discutido o chamado “paradoxo cético”. As seções seguintes seriam apenas uma aplicação do argumento ao caso especial das sensações. A conclusão do argumento da linguagem privada encontra-se assim enunciada no § 202:

“Eis porque “seguir a regra” é uma prática. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”.

 

            Segundo Kripke, a problemática que permeia essas seções é essencialmente cética. O “paradoxo cético” do § 201 constitui, para Kripke, o “problema central” das Investigações:

“Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra. A resposta era: cada modo de agir deve estar em conformidade com a regra, pode também contradizê-la. Disto resultaria não haver aqui nem conformidade nem contradições”.

 

            Segundo Kripke, Wittgenstein nos propõe uma “solução cética” à la Hume para este problema cético. Ora, Baker e Hacker criticam o artigo de Kripke precisamente por caricaturar a posição humiana tanto quanto a wittgensteiniana --afinal, nem Hume nem Wittgenstein teriam assumido um posicionamento que merecesse esta denominação. Servindo-se do Nachlaß para refutar de modo assaz convincente a interpretação de Kripke, Baker e Hacker omitem todavia a questão da autocrítica wittgensteiniana em relação ao Tractatus. Procurarei sumariamente explorar esta transição, antes de retornar à teoria do significado no Tractatus e concluir com sua articulação com a skepsis filosófica do “segundo” Wittgenstein. Ao contrário do atomismo lógico do Tractatus, a linguagem ordinária das Investigações problematiza a própria oposição entre “simples” e “compostos” (§ 47), mostrando como as semelhanças surgem e desaparecem nas diferentes combinações possíveis e imagináveis na comparação de diferentes jogos.( § 66) A fim de “salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade (Tätigkeit) ou de uma forma de vida (Lebensform)”( § 23), Wittgenstein propõe-se a mostrar, na primeira parte das Investigações, a complexidade e a variedade dos jogos de linguagem. Por Sprachspiel Wittgenstein compreende “o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada”.( § 7) Ao invés de limitar a “significação” ao que é significado na denominação de objetos, o significado é agora articulado em termos do seu uso e da prática de seguir regras:

“A questão ‘o que é realmente uma palavra?’ é análoga a ‘o que é uma peça de xadrez?’“ (§ 108)

“Mas como é estabelecida a ligação entre o nome e o denominado? A questão é a mesma que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo, da palavra ‘dor’.” (§ 244)

 

            Jogos de linguagem implicam, portanto, um contexto prático onde o significado é determinado pelo uso de signos. A fim de compreendermos a concepção de significado no “segundo” Wittgenstein, partiremos da sua crítica a três concepções errôneas que tendem a identificar a significação com um processo mental, com uma interpretação particular e com a formulação de razões pelas quais seguimos uma regra. Como veremos, é precisamente neste terceiro ponto que Kripke rompe com a leitura que McGinn e Baker & Hacker nos oferecem das Investigações.

Tese 1: O significado não é um processo mental.

 

            “Não pense, pelo menos uma vez, na compreensão como ‘processo mental’/’anímico’ --Pois este é o modo de falar que o confunde. Mas pergunte-se: em que espécie de caso, sob que espécies de circunstâncias dizemos, pois, ‘agora sei continuar’? Quero dizer, quando a fórmula me veio ao espírito. No sentido em que há processos (também processos anímicos) característicos da compreensão, a compreensão não é um processo anímico. (A diminuição e o aumento de uma sensação de dor, a audição de uma melodia, de uma frase: processos anímicos)”.(§ 154)

“O ter-em-mente [Das Meinen] não é nenhum processo que acompanha essa palavra. Pois nenhum processo poderia ter as conseqüências do ter-em-mente”. (p. 218/211)

 

            Tanto Kripke como McGinn consideram esta primeira tese negativa como a mais convincente e a mais evidente de todas as três. As Investigações começam, afinal, com uma crítica à gramática agostiniana do vellent ostendere precisamente porque tal concepção mentalista do significado confunde o “que é significado” com acompanhamentos experienciais que podem ocorrer ou não na constituição do significado. Assim, o desenho de um cubo pode me vir ao espírito quando ouço a palavra “cubo” mas não tem de ocorrer (§ 139). E Wittgenstein conclui,

“E o essencial, pois, é ver que, ao ouvir a palavra, o mesmo pode pairar em nosso espírito e que sua aplicação, no entanto, pode ser outra. E tem, então, a mesma significação em ambas as vezes? Creio que o negaríamos”. (§ 140)

 

            Obviamente, Wittgenstein rejeita a metafísica da Innerlichkeit (o “homem interior” em Santo Agostinho) tanto na sua versão consciente (o significado como um processo mental) quanto na sua versão inconsciente (o significado como um estado do sistema nervoso).[7] Assim, quando observo cuidadosamente caracteres de um alfabeto desconhecido ou quando leio em voz alta sem prestar atenção ao que está escrito (como uma “máquina de leitura”), em nenhuma destas situações compreendo o que leio, embora meus processos mentais pareçam contradizê-lo. Significado e compreensão não podem ser assimilados a experiências, como por exemplo, a dor, a depressão, a excitação.(§ 59) Experiências, sensações e a imaginação podem acompanhar ou não a constituição do significado --mas não podem ser ditas constitutivas da significação.

 

Tese 2: O significado não é uma interpretação particular. “Como pode uma regra ensinar-me o que fazer neste momento? Seja o que for que faça, deverá estar em conformidade com a regra por meio de uma interpretação qualquer. --Não, não deveria ser deste modo, mas sim deste: cada interpretação, juntamente com o interpretado, paira no ar; ela não pode servir de apoio a este. As interpretações não determinam sozinhas a significação”. (§ 198)

 

            Segundo Kripke, este parágrafo pertence ao contexto do que Wittgenstein denomina “nosso paradoxo”, a saber, que “uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra”.(§ 201) Ao contrário do uso ostensivo da linguagem associado ao “olhar interno” agostiniano que revela o que permanece “escondido” em camadas profundas de significação, Wittgenstein solapa toda eficiência essencial (praesentia) de significados que subjazem aos cursos de ações. A alusão ao “corpo de significação” (Bedeutungskörper) no § 559 corrobora a autocrítica do “segundo” Wittgenstein com relação ao Tractatus. Se a interpretação fosse entendida como “a substituição de uma expressão da regra por outra”(§ 201), então poderíamos ter assimilado a ação de “ler” uma escrita desconhecida à sua mera transliteração em caracteres conhecidos (por exemplo, do hebraico em letras latinas). Assim, dependendo da equivalência fonética adotada, poderíamos emitir os sons correspondentes a um sistema de escritura desconhecida sem compreendermos o sentido de tal escritura. O que é questionado aqui é precisamente que uma transliteração seja suficiente para a constituição de significado.

            De fato, Wittgenstein não estaria preocupado, neste exemplo, com a compreensão do que está sendo lido, mas com o fenômeno de seguir regras que permitam a produção de significado na leitura de uma escritura que não seja imediatamente reconhecida. Assim, se alguém pronunciasse ou cantasse “hineh mah tov u-mah nayim”, seria insuficiente traduzir tal expressão do hebraico para o português “como é bom e agradável”, como se tal tradução ou interpretação bastasse para explicar a constituição de seu significado. Afinal, “traduzir de uma língua para outra”, seria mais um jogo de linguagem, como “comandar e agir segundo comandos, relatar um acontecimento, inventar uma história, cantar uma cantiga, fazer, uma anedota, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar”.(§ 23) Sem dúvida, esta também seria a razão pela qual pessoas bilíngües podem naturalmente mudar de uma língua para outra sem recorrer a traduções na sua mente. Na verdade, tanto a tradução como a interpretação já pressupõem a produção de significado. Assim, Wittgenstein enfatiza que a tradução e a interpretação sempre implicam o ato de pensar, formando uma hipótese acerca da melhor maneira de traduzir um signo de tal forma a ser compreendido (p. 213). O significado é constituído de um modo prático tal que não pressupõe nenhuma teoria, mas apenas requer prática e envolvimento em jogos de linguagem. A constituição de significado deve ser compreendida como uma expressão de regras que tacitamente seguimos ao participarmos de certos jogos de linguagem. Todavia, a necessidade implicada no ato de seguir uma regra (isto é, que uma regra determina uma linha de ação) não é uma premissa lógica mas algo a ser paradoxalmente encontrado no final, uma vez consumada a ação que produz significado.

Tese 3: Seguir uma regra não se fundamenta em razões.

 

“Seja como for que você o ensine a continuar a faixa decorativa, como pode ele saber como fazê-lo por si próprio? --Ora, como eu sei? --Se isto significa: ‘tenho razões?’, então a resposta é: logo não terei mais razões. E agirei então sem razões”. (§ 211)

 

            Não há nenhuma razão fundamental pela qual alguém segue uma regra ao usar certas palavras para exprimir um pensamento, comunicar-se com alguém, dizer um palavrão ou pedir um favor. Por exemplo, por que será que dizemos “obrigado” ao agradecer alguém por ter-nos feito um favor ou simplesmente cumprido com o seu dever? Por que chamamos a cor vermelha de “vermelho”? Segundo Wittgenstein, “quando sigo uma regra não escolho. Sigo a regra cegamente”.(‘ 219) Para Kripke, é aqui que devemos situar o contexto imediato do “paradoxo cético” wittgensteiniano, a saber, que nenhum fato pode constituir um significado em detrimento de um outro significado. O que é paradoxal acerca disto reside na força da regra que alguém tacitamente obedece ao constituir tal significado. Assim, quando solicitado para calcular ‘68 + 57’ o cético pode muito bem responder ‘5’ e não ‘125’ de modo a questionar o significado do signo ‘+’ (sinal de adição). Ele poderia argumentar, por exemplo, que o signo ‘+’ denota uma função quais[8], de acordo com a qual obtemos a adição convencional ‘x+y’ se e somente se ‘x’ e ‘y’ forem menores do que ‘57’, caso contrário obteremos a constante ‘5’. Por isso, ‘68 + 57 = 5’. Como Kripke observa, o que está sendo questionado pelo cético é o que tinha sido constituído como significado pelo hábito:

“A questão não é que se eu quis dizer adição com ‘+’, eu responderei ‘125’, mas que se quiser concordar com meu significado no passado de ‘+’, eu devo responder ‘125’. ...A relação do significado e da intenção com a ação futura é normativa, e não descritiva”.[9]

 

            A argumentação de Kripke está baseada no que Wittgenstein denominaria “gramática do compreender” (das Verstehen, cf. ‘‘ 180 ss.). Por exemplo, como perguntaríamos a um estudante se ele compreendeu a série de números naturais 0,1,2,3,4,5,... (cf. § 145) segundo um ordenamento do tipo ‘+ 1’. Se ao ser requisitado para continuar a série ‘+2’ depois de 1.000, o aluno escreve 1.000, 1.004, 1.006, 1.008, 1.012, ..., no lugar dos esperados 1.002, 1.004, 1.006, 1.008, ..., isso mostra como assumimos mais do que devíamos quanto ao significado de signos que usamos tão freqüentemente. Isto nos traz à tese positiva do “segundo” Wittgenstein sobre significado e seguir regras:

“Pois dizemos que não há nenhuma dúvida de que compreendemos esta palavra, mas, por outro lado, que sua significação reside no seu emprego. Não há dúvida de que agora quero jogar xadrez; mas o jogo de xadrez é este jogo devido a todas as suas regras (e assim por diante). ...Onde é feita a ligação entre o sentido das palavras ‘joguemos uma partida de xadrez!’ e todas as regras do jogo? Ora, nas instruções do jogo, na lição de xadrez, na prática diária do jogo [in der täglichen Praxis des Spielens]”. (§ 197)

 

            Imediatamente após, Wittgenstein levanta a questão de relacionar a “expressão da regra” (der Ausdruck der Regel) a ações (Handlungen), por exemplo, o modo particular como alguém reage a um certo signo. Wittgenstein não está primariamente preocupado com conexões causais mas com o “uso regular” (ständige Gebrauch) de sinais, seu uso comum ou costume (Gepflogenheit). Assim, ele procede para problematizar o conceito de “regramento” como costume em função de uma prática privada:

“O que chamamos ‘seguir uma regra’ é algo que apenas uma pessoa pudesse fazer apenas uma vez na vida? --E isto é, naturalmente, uma anotação sobre a gramática da expressão ‘seguir a regra’... Compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica”. (§ 199)

 

            Para Kripke, a conclusão de Wittgenstein acerca da impossibilidade de obedecer uma regra privadamente significa que o argumento da linguagem privada deve ser encontrado nas seções que precedem o § 243 --onde é explicitamente discutido o uso privativo da linguagem. McGinn acusa Kripke de forçar tal leitura do texto de Wittgenstein, impondo-lhe significações que não constam na superfície, em particular quanto à solução cética ao paradoxo do § 201. Acima de tudo, escreve McGinn, o § 202 não pode constituir o argumento conclusivo empregado por Wittgenstein contra a possibilidade de linguagem privada. McGinn não descarta a importância de uma interpretação comunitária mas critica Kripke por reduzir a problemática das Investigações ao uso comunitário da linguagem.

            À guisa de conclusão, creio que McGinn, assim como o fizeram Baker e Hacker, oferece boas razões para suspeitarmos o que Kripke denomina “a nova forma de ceticismo” supostamente inventada por Wittgenstein, o chamado “ceticismo de regra” (rule skepticism). Afinal, torna-se difícil separar tal versão de ceticismo de um ceticismo metodológico humiano, conforme o rapprochement elaborado pelo próprio Kripke. O maior mérito do artigo de Kripke, além de dissipar a suspeita de behaviorismo nas Investigações, consiste em haver articulado o problema da significação com o ato de seguir regras num mesmo nível lingüístico que solapa a metafísica do sujeito transcendental do Tractatus.[10] Teríamos de passar aqui a um exame mais cuidadoso do argumento da linguagem privada e dos problemas do solipsismo e da oposição entre Darstellung e Vorstellung, tais como figuram no Tractatus e em que proporção são resolvidos nas Investigações. Se realmente existe algo como uma “ruptura epistemológica” entre o “primeiro Wittgenstein” e o “segundo”, ou de forma mais precisa, entre a teoria do significado no Tractatus e sua reformulação crítica nas Investigações, esta “mudança de paradigma” é assinalada pelo próprio autor na sua crescente insatisfação face a teorias referenciais logicistas, em voga desde as publicações de Frege e Russell. Sem incorrer numa reconstituição genética do desenvolvimento de tais concepções, assinale-se apenas que o abandono do atomismo lógico não traduz, necessariamente, uma ruptura com uma teoria do significado no “segundo Wittgenstein”. Embora rompendo com uma concepção figurativa da linguagem, a concepção do significado como uso, nas Investigações, pode implicar por um lado uma correlação entre lógica e ontologia e, por outro lado, uma atitude cética de ordem prático-regulativa. Creio, portanto, que já no Tractatus encontra-se antecipada a concepção tardia do significado como uso, embutida na crítica que Wittgenstein empreende a Frege e a Russell.

            Numa das suas ilustrações mais conhecidas (PU Parte II, xi, p. 194/189), Wittgenstein reproduz a figura da “cabeça PC”, o pato-coelho (duckrabbit) de Jastrow, para ilustrar sua concepção de descrição (Beschreibung). O contexto imediato é obviamente o da gramática do verbo “ver”. Mas no contexto maior, da investigação filosófica sobre a significação, trata-se de mostrar como “ver”--assim como “saber” e “crer”-- não poderia fundamentar a descrição na constitituição do significado e de sua compreensão --em particular na relação entre sujeito cognoscente e o chamado “mundo exterior.” Afirmar que sei ‘p’ no sentido de que vejo ‘p’ não seria mais evidente, apesar de aparentarmos ‘saber’ e ‘ver’ e opormos ‘saber’ e ‘crer’, ao nosso senso comum do que afirmar que sei ‘p’ no sentido de que creio ‘p’. Trata-se do paradoxo de Moore, que Wittgenstein assim o enuncia:

“A expressão ‘creio que isto está assim’ [ich glaube, es verhalt ist so/ I believe that this is the case] é empregada de modo semelhante à afirmação ‘isto está assim’; e contudo a suposição de que creio que isto está assim não é empregada do mesmo modo que a suposição de que isto está assim”.(p.190/185)

 

            Afinal, como afirma no mesmo capítulo, “podemos desconfiar dos próprios sentidos mas não da própria crença”. Chegamos assim ao contexto da discussão sobre a prova do mundo exterior, que Wittgenstein questiona nas Investigações e nas anotações Sobre a Certeza. Comecemos pela figura de Jastrow. O que tem de interessante, à primeira vista, é que “pode-se vê-la como cabeça de lebre ou como cabeça de pato”, dependendo da experiência visual (Seherlebnis) daquele que a percebe. A discussão imediata gira em torno da experiência de “notar um aspecto” (das Bemerken eines Aspekts). Wittgenstein observa que a mesma figura pode suscitar diferentes interpretações, dependendo de como a vemos em diferentes contextos: “podemos também ver a ilustração ora como uma, ora como outra coisa. --Portanto, nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos”.(193/188) O que nos aparece como “algo”, nossa primeira palavra de identificação intuitiva, na percepção imediata de uma lebre, um coelho, um pato, ou uma coisa engraçada, este parente mais próximo da descrição, antes mesmo de descrevê-lo como jogo de linguagem ou algum tipo de brincadeira. “O que é isso?” ou “o que você vê aí?” parece exigir, num contexto de vivências cotidianas, uma descrição do que percebemos. Antes mesmo de identificá-lo como “uma figura L”, a possibilidade de responder “uma cabeça de lebre” ou “uma cabeça de coelho”, mais do que um problema de tradução (Hasen/rabbit/hare), implica uma pré-imersão no mundo de significações, inclusive as socialmente constitutivas.

            Sem incorrermos num reducionismo mentalista (por exemplo, “vi um coelho porque tive um coelhinho quando criança”), devemos ainda admitir que o que vemos depende de nosso “horizonte de expectativas”. Wittgenstein parece ter em vista não tanto uma “descrição indireta” posterior à interpretação quanto uma descrição do que é visto imediatamente, uma experiência espontânea da visão. Todavia, se alguém retrucasse: “O que é que eu devo ver aí?”, serei obrigado a explicar as regras do jogo e falar das duas possibilidades: “cabeça de lebre” e/ou “cabeça de pato”. Poderei até mesmo propor que uma terceira possibilidade, “a cabeça L-P”, seria a partir de então incorporada ao nosso imaginário cotidiano, e assim por diante. Devemos também distinguir entre a “visão permanente” de um aspecto e a “revelação” de um aspecto. Percebo as mudanças de aspectos:

“Mas o que é diferente: minha impressão? Meu ponto de vista?--Posso dizê-lo? Descrevo a mudança como uma percepção, exatamente como se o objeto tivesse se alterado diante dos meus olhos”. (193/190)

 

            Suponha que duas figuras me sejam mostradas, uma com a cabeça L-P cercada de cabeças de pato, outra cercada de cabeças de lebre. Como poderíamos, antes de mais nada, diferenciar estas duas situações imaginárias?

“Imagine a cabeça L-P escondida sob um emaranhado de traços. Primeiro, noto-a na figura, aliás, simplesmente como cabeça de lebre. Depois, olho a mesma figura e noto as mesmas linhas, mas como pato, e nisto não preciso ainda saber que ambas as vezes tratava-se da mesma linha. Se, mais tarde, vejo o aspecto mudar, --posso dizer que aí o aspecto L e o aspecto P são vistos de modo inteiramente diferente do que quando os reconhecera no emaranhado de traços? Não”. (199/193)

 

            Devemos, finalmente, concluir que seria equívoco dizer que o que vemos é o que cremos ver. O contexto parece exigir que apenas vejamos o que nos aparece, sem nenhuma conexão com o problema de crer ou saber --mesmo se alguém exclamasse “eu já sabia que era a figura L-P” ou “eu já conhecia este jogo!” Não se trata, em última análise, de uma diferenciação de estados mentais entre sujeitos que questionam a exterioridade do mundo e suas representações, mas para além do solipsismo metafísico de toda subjetividade trata-se de suspender todo e qualquer juízo sobre a interioridade do sujeito. Isso é corroborado com a analogia entre o significado do que falamos e representamos e a apresentação prática do que vivemos-- por exemplo, a apresentação (Darstellung) do que é visto (198/192).

            Finalizando com a questão do ceticismo no “segundo” Wittgenstein, encontramos em UG exemplos que ilustram a mesma gramática da apresentação, tais como “Todo corpo é extenso” ou “a água ferve a 100 oC”, que não dizem nada no sentido de constituir uma asserção descritiva de um estado de coisas (Sachverhalt) mas ajudam-nos a notar (bemerken) algo. Também aqui o contexto é o da prova do mundo exterior, como atestam as notas tomadas por Norman Malcolm, quando da estadia de Wittgenstein na sua casa no estado de Nova York em 1949.[11] O ensaio de G.E. Moore sobre a prova do mundo exterior, considerado por Wittgenstein o seu melhor artigo, inspira toda a argumentação sobre a Certeza: “Se tu sabes que aqui está uma mão, nós te concedemos todo o resto”(Wenn du weißt, daß hier eine Hand ist, so geben wir dir alles Übrige zu).[12] Se para Kant a prova do mundo exterior não tem sido alcançada pela filosofia (KrV B xxxix) e permanece um artigo de fé, para Moore nós podemos ao contrário saber/conhecer um número de proposições que não podemos provar, partindo de premissas verdadeiras, que são tacitamente evidenciadas pela constatação daquilo que todo mundo sabe ou reconhece, como senso comum. Contudo, como observou Jaakko Hintikka, “Moore não está provando tanto a existência do mundo exterior quanto mostrando que possuímos de fato um conceito impecável de existência aplicável a mãos, cadeiras, casas e outros ‘objetos exteriores’ triviais”.[13] A passagem, portanto, de “eis uma mão” a “mãos existem” não pode ser logicamente formalizada --seria impossível inferir ‘(Ex)P(x)’ de ‘P(a)’. Assim, quando Wittgenstein associa a matemática a jogos de linguagem consistindo de axiomas, teoremas, provas, operações, regras de inferência, etc., é o mesmo problema de seguir uma regra que nos impede de dissociar realidade e linguagem.[14] Contra a lógica da subjetividade metafísica, contra idealistas, solipsistas e realistas (PU ‘ 402), Wittgenstein opera uma verdadeira suspensão da representatividade pela apresentação das formas de vida que permitem ao cético manter o significado da existência de objetos físicos sem contra-senso.

 

N O T A S

Abreviaturas das obras de Ludwig Wittgenstein citadas:

PU = Philosphische Untersuchungen

T = Tractatus Logico-Philosophicus

UG = Über Gewißheit

PG = Philosophische Grammatik

PB = Philosophische Bemerkungen

Além destes na Werkausgabe em 8 volumes (Frankfurt: Suhrkamp, 1985), foram consultadas traduções da PU (em português, José Carlos Bruni, Os Pensadores; em inglês, D.F. Pears e B.F. McGuinness; em francês, Pierre Klossowski), do T (Luiz Henrique Lopes dos Santos, G.E.M. Anscombe, Pierre Klossowski) e do UG (G.E.M. Anscombe e G.H. von Wright, Jacques Fauve).


2. Cf. Gottlob FREGE, Begriffeschrift (trad. Os Pensadores); Edmund HUSSERL, Logische Untersuchungen.
3. Cf. M. HEIDEGGER, Einführung in der Metaphysik.
Mesmo cometendo o parricídio, Heidegger não deixa de venerar o mestre, servindo-se de fórmulas de autoria do pai da fenomenologia.
4. Uma primeira versão do artigo de Kripke foi publicada na obra Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, org. I. BLOCK (Oxford: Blackwell, 1981). Todas as referências neste ensaio remetem à versão definitiva: Saul A. KRIPKE, Wittgenstein on Rules and Private Language: An Elementary Exposition, (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982), doravante abreviado RPL.
5. Colin McGinn, Wittgenstein on Meaning: An Interpretation and Evaluation, Aristotelian Society Series, Vol. 1, Oxford: Blackwell, 1984 (abrev. WM); G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Scepticism, Rules and Language, Oxford: Blackwell, 1984 (abrev. SRL).
6. Sobre a concepção grega de skepsis e epochê, cf. David SEDLEY, “The Motivation of Greek Skepticism” in Myles BURNYEAT (org.), The Skeptical Tradition, Berkeley: University of California Press, 1983, cap. 2, p. 9-29.
7. Cf. Jacques BOUVERESSE, Le mythe de l’intériorité: Expérience, signification et langage privé chez Wittgenstein. Paris: Minuit, 1976.
8. Em inglês “quus” contrasta com “plus” (“mais”).
9. KRIPKE, op. cit., p. 124.
10. Cf. T 5.632: “O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo”.
11. Norman MALCOLM, Ludwig Wittgenstein: A Memoir. Oxford: Oxford University Press, 1984.
12. Wittgenstein está obviamente questionando o ponto de partida de Moore, “Here is one hand, and here is another”. Cf. G.E. MOORE, “Proof of the External World” in Proceedings of the British Academy 1939; cf. “Defence of Common Sense” in Contemporary British Philosophy, 2nd Series, 1925 (org.
J.H. MUIRHEAD) Ambos publicados nos Philosophical Papers de Moore (Londres, 1959), traduzidos para o português por Pablo Ruben Mariconda, in Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1989.
13. J. HINTIKKA, Logic, Language-Games and Information. Oxford: Claredon Press, 1973. p. 72.
14. Cf. L. WITTGENSTEIN, Remarks on the Foundations of Mathematics, trad. G.E.M. Anscombe. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1991, III.27: “even if the proved mathematical proposition seems to point to a reality (Realität) outside itself, still it is only the expression (Ausdruck) of acceptance of a new measure (of reality)”.

 

 

Capítulo Dois

Episteme, Theoria, Praxis: O Legado Platônico-Kantiano

da Epistemologia Moral em John Rawls

 

Sem dúvida um dos mais notáveis colegas e admiradores de Willard von Quine em Harvard, John Rawls tem sido mais conhecido pela sua reformulação do construtivismo moral de Immanuel Kant do que pela sua reavaliação da “epistemologia naturalizada” (epistemology naturalized) de David Hume, ao revisitar tanto a tese do dever-ser/ser (ought/is thesis) quanto a problemática relação entre crença (belief) e desejo (desire) ou entre razão (reason) e paixão (passion) em sua teoria ético-política da justiça como eqüidade (justice as fairness). Ao invés de reduzir as paixões, como fazem os não-cognitivistas (tais como Ayer, Russell e Gibbard) a emoções, expressões ou inclinações do arbítrio humano (warm passions, segundo a feliz fórmula de David Lewis) e esquivando-se de identificar realismo moral e intuicionismo (na esteira de Clark, Sidgwick e Moore), o cognitivismo anti-realista de Rawls mantém o dualismo prático-teorético kantiano de forma a viabilizar um internalismo deontológico capaz de revisitar a importante contribuição das teorias da escolha racional para a ética e a filosofia política, sem incorrer na mera redução da epistemologia moral a uma “moralidade psicologizada” (morality psychologized) ou numa versão anti-humeana de legalismo. Partindo de suas leituras seminais de Hume e Kant nas Lectures on the History of Moral Philosophy (2000), procurarei examinar em que sentido o construtivismo rawlsiano merece a denominação de “uma deontologia com face humeana” (“deontology with a Humean face”) em sua reabilitação da “epistemologia moral”, seguindo Ernest Sosa, Thomas Nagel, Robert Audi, David Brink e outros filósofos analíticos de língua inglesa, na busca de uma justificativa epistêmica para a ação moral. Rawls parte da original contribuição humeana quanto ao “papel epistemológico dos sentimentos morais” e sua correlata concepção da justiça como “virtude artificial” em oposição ao “intuicionismo racional”, em direção à formulação de uma razão prática deliberativa governada por um dispositivo procedimental de construção de inspiração kantiana.

Os modelos de justificação da moral de Kant e Rawls poderiam ser hoje classificados, com efeito, como sendo ambos cognitivistas, racionalistas, universalistas e deontológicos. Quanto ao seu suposto internalismo e anti-realismo, teríamos que rever várias correntes e possíveis linhas de interpretação desses dois autores. Isso é o que me proponho a fazer neste paper, recorrendo à arbitragem do judicious spectator de Hume. Grosso modo, identifica-se o internalismo epistêmico da ética kantiana com a sua formulação do imperativo categórico enquanto princípio a priori da moralidade. Na medida em que justifica a regra de universalizabilidade de proposições práticas, a crença de que devo agir de tal modo ou que tenho razões para agir assim, nos remete segundo o modelo kantiano ao imperativo categórico enquanto princípio supremo da moralidade. Neste sentido, uma crença racional (o próprio princípio cognitivo da ação moral) não exige nenhum desejo ou paixão no sentido humeano do termo (de que a razão é sempre escrava das paixões). O construtivismo de Rawls, assim como o equilíbrio reflexivo de seu correlato coerentismo epistêmico-moral (moral epistemic coherence theory), servem aqui para explicitar a correlação que se busca estabelecer entre igualdade e liberdade na própria formulação de um princípio universalizável de justiça, segundo o modelo internalista e anti-realista da interpretação kantiana. A fim de justificar ou fornecer razões para fazer algo, no foro da chamada “razão pública”, o princípio de universalizabilidade é, segundo Rawls, reorientado para a deliberação inerente aos processos decisórios que legitima procedimentalmente as instituições sociais, econômicas e políticas de uma democracia liberal constitucional. Procura-se, assim, enfrentar o problema de articular a abordagem “epistemológica” com a “motivacional”, em Hume, assim como a vontade (Wille) e o livre arbítrio (freier Willkür), em Kant, num sentido de articulação da tarefa de fundamentação com a sua aplicabilidade empírica, ou, nos termos kantianos, da moralidade com a legalidade enquanto dimensões normativas internas e externas das leis da liberdade. Este tipo de problema parece-me correlato ao problema rawlsiano, também de origem tão racionalista quanto empirista, que é o do realismo e anti-realismo em epistemologia moral na própria tentativa de tornar defensável a idéia de autonomia sem recorrer a uma “metafísica da natureza humana” (Hume) ou a um suposto “fato da razão” (Kant). A radicalidade do projeto deontológico do construtivismo kantiano consiste precisamente em superar as aporias da heteronomia inerentes ao naturalismo psicológico de Hume, de forma a viabilizar uma defesa razoável da autonomia. A posição deontológica de Rawls defende, portanto, a impossibilidade de compatibilizar juízos morais (“incommensurable visions of the good”) como numa rede de crenças incomensuráveis, aproximando o pluralismo razoável de um pragmatismo político, na medida em que a razão pública se traduz pelo equilíbrio reflexivo, co-constitutivo de concepções-modelo de pessoa (self) e sociedade, ambos tomados num sentido normativo pragmático, não-substancializado, não-fundacionista. Para Rawls, a visão de Kant é marcada por um número de dualismos, em particular, entre o necessário e o contingente, forma e conteúdo,  razão e desejo, noúmenon e fenômeno. Não seria questão de abandonar ou não esses dualismos como foram concebidos por Kant, mas de abraçar sua concepção moral em sua estrutura característica que é mais claramente discernível quando esses dualismos não são tomados no sentido que ele lhes deu mas são reinterpretados e sua força moral reformulada dentro do escopo de uma “teoria empírica”. Ao articular a “teoria ideal” nas duas primeiras partes de Uma Teoria da Justiça (capítulos I a VI) com a “teoria não-ideal” da terceira parte (capítulos VII a IX), Rawls segue, portanto, um caminho já proposto pela filosofia prática kantiana na medida em que procura responder aos desafios suscitados pela crítica de Hume ao racionalismo, evitando o reducionismo naturalista do direito natural clássico (direitos naturais como causalidade de uma lei natural) e o dogmatismo teológico da metafísica tradicional (direito divino dos monarcas). Rawls procura reabilitar o liberalismo político, mais ou menos como Hume resgata o que viria a ser identificado como o sentido pragmático da justiça política (the circumstances of justice) e Kant reinterpreta o liberalismo lockeano e o igualitarismo rousseauniano em sua reformulação do contratualismo (justiça enquanto igual liberdade). Trata-se, em última análise, de um contratualismo construtivista político e não moral, assim como o ideal de autonomia a ser efetivado não é meramente moral ou libertário mas político e igualitarista. A passagem de um estado de natureza a um estado jurídico-civil é, num certo sentido, correlata a uma naturalização política da moral na medida em que esta é secularizada segundo uma neutralidade de propósito --e não procedimentalmente neutra. A concepção rawlsiana de razoabilidade (reasonableness) visa justamente a desvencilhar-se de toda pretensão de uma razão prática pura, assim como as diversas concepções de bem são objeto de uma racionalidade (rationality) empiricamente mensurável segundo teorias da escolha racional e cálculos utilitaristas. A epistemologia moral é, desta forma, naturalizada pela especificidade do político, na medida em que a vida humana deve ser regrada para garantir a sua própria subsistência e sustentabilidade. Embora não tenha operado de maneira explícita uma guinada lingüística (linguistic turn), a epistemologia moral revoluciona em Rawls a relação entre o público e o privado pela subversão do a priori pelo a posteriori desse formidável retorno pós-kantiano a Hume: sobre aquilo de que não se pode mais falar com argumentos razoáveis, publicamente defensáveis, não se deve esperar nenhum vínculo de obrigação a não ser em círculos privados de crenças religiosas, morais ou político-partidárias, muitas vezes incapazes de serem traduzidos de um nível a outro de racionalidade. A crença razoavelmente justificada só se concebe politicamente como ponto de partida enquanto resultado de critérios públicos consensualmente sedimentados ao longo de várias gerações e de várias tentativas entre erros e acertos visando a escolha dos princípios que devem reger as relações e instituições sociais. Um exemplo desta epistemologia moral naturalizada encontramos, creio eu, na reformulação rawlsiana dos direitos humanos em seu The Law of Peoples (1999).

O termo “epistemologia naturalizada” (naturalized epistemology) foi forjado por W.V. Quine em alusão a sua abordagem da epistemologia introduzida em seu famoso ensaio de 1969 ‘Epistemology Naturalized’, seguindo várias premissas epistêmicas que encontramos em David Hume, notavelmente em sua crítica ao racionalismo cartesiano, seu fundacionismo e pretensão de justificar um conhecimento absolutamente seguro da verdade. Segundo Quine,

“It was sad for epistemologists, Hume and others, to have to acquiesce in the impossibility of strictly deriving the science of the external world from sensory evidence. Two cardinal tenets of empiricism remained unassailable, however, and so remain to this day. One is that whatever evidence there is for science is sensory evidence. The other…is that all inculcation of meanings of words must rest ultimately on sensory evidence”. (Quine 1969: 75)

Assim como em Quine, o empirismo de inspiração humeana que interessa a Rawls é intersubjetivo, falsificacionista e, interessantemente, externalista, i.e. uma forma de pragmatismo político social, lingüística e historicamente constitutivo. O problema do conhecimento, assim como o de dar razões para a ação moral, permanece o grande problema humano segundo a formulação humeana. Nas palavras de Quine, The Humean predicament is the human predicament. O externalismo dos naturalistas, na esteira de Hume e Quine, se oporia aqui ao internalismo dos racionalistas e de Kant, segundo o qual a justificativa epistêmica para a cognição e para a ação moral encontra-se na consciência (cogito) ou numa estrutura de subjetividade transcendental. Embora não me proponha  a desenvolver aqui o problema internalista-externalista, creio que se trata de uma questão importante para esclarecer a problemática prático-teorética que fornece grande parte do pano-de-fundo conceitual para a articulação rawlsiana entre teoria ideal e teoria não-ideal. Com efeito, creio que todo problema de articular teoria e prática nos remete direta ou indiretamente ao debate entre racionalismo e empirismo, herdado pelo próprio modelo kantiano do idealismo transcendental. Se, como Quine sugeriu, o grande erro de Hume teria sido o de reduzir juízos analíticos a juízos a priori, universais necessários, em contraposição a juízos sintéticos, redutíveis por sua vez a juízos a posteriori, particulares contingentes, a solução kantiana, como já observara Popper, não apenas não resolve o problema da indução mas permite ainda o retorno, pela porta dos fundos talvez, do auto-engano de pretendermos justificar a ação moral com uma argumentação transcendental a priori. Esta me parece, de resto, a herança maldita da argumentação pós-kantiana que, tal como a encontramos em Rawls, retorna ao cerne procedimental de sua universalizabilidade ao mesmo tempo em que busca livrar-se de seus dualismos.

Gostaria de argumentar aqui em favor de uma articulação entre theoria e praxis que defende a objetividade em moral sem incorrer em nenhuma das supracitadas reduções, segundo um modelo rawlsiano que, seguindo Hume e Kant, logra manter a correlação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal para dar conta de problemas práticos, i.e. referentes à ação humana e mais especificamente à vida política. Assim, limito-me a tão-somente reexaminar em que sentido a articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal na trilogia rawlsiana (A Theory of Justice, Political Liberalism, The Law of Peoples) logra reabilitar o modelo deontológico de inspiração kantiana de forma a responder aos desafios de um igualitarismo político num modelo cognitivista universalista. Neste sentido, procurarei mostrar que o conceito jurídico-formal de igualdade em Rawls, de inspiração kantiana, torna sua utopia política realista, não apenas no sentido de exeqüível mas ainda de defensável e capaz de responder às exigências da instável condição humana de insociável sociabilidade.

Na medida em que Rawls rejeita a tese da meritocracia em sua defesa do igualitarismo, gostaria de aproximar esse procedimento da igualdade jurídico-formal de inspiração kantiana, em termos da articulação entre theoria e praxis.

2. A forma platônica da justiça

A questão da justiça é introduzida no mais famoso diálogo platônico, A República --considerado por muitos o primeiro tratado de filosofia política--com o intuito pedagógico de elevar a alma () a um nível idealizado de inteligibilidade capaz de dar conta da melhor constituição (em grego, , como é intitulado no original) para os cidadãos de uma polis (cidade-Estado). O proto-comunismo platônico ou o seu igualitarismo ideal logra articular num mesmo logos sobre a justiça uma concepção moral de virtudes da alma com um projeto político aristocrático. A corrupção da polis --tão iminente quanto a demagogia inerente aos movimentos das massas (daí sua condenação pragmática da democracia)-- é dialeticamente proporcional à perversão da alma, tentada pelos prazeres imediatos de uma existência finita, destinada à morte. Resulta desse modo uma clara conexão entre imortalidade e virtude, justiça e eternidade. De resto, a imortalidade da alma ocupa um lugar privilegiado na história das teorias da justiça que estruturaram a tradição metafísica, de Platão a Kant, segundo um raciocínio que nos remete a uma teologia retributiva e punitiva. Para Platão, os conceitos correlatos de  e  desvelam o próprio modo de estruturação dialética que caracteriza não apenas a composição deste diálogo de Platão, mas a sua filosofia ético-política como um todo.(Oliveira, 1999, p. 39-50) Deste modo, as concepções platônicas do bem, da justiça, das idéias, etc, fazem parte de um todo orgânico, uma epistemologia ao mesmo tempo metafísica e moral, onde a alma humana figura como ponto de encontro do macrocosmos e do microcosmos, do sensível e do inteligível, das aparências e da realidade, do não-ideal e do ideal.(White, 1992, p. 277-310) Como seu mestre, Platão teria herdado o apelo délfico do daimon socrático e procurado a verdadeira justiça na vida privada, antes mesmo de proceder à missão pública do filósofo, através da definição das virtudes e da idéia universal que as viabilizaria. Antes mesmo de falarmos de homens justos ou de diferentes opiniões sobre o que seja justo e injusto, é mister mergulharmos nas profundezas da alma e buscarmos uma definição ideal de justiça, segundo o seu . Se há uma “teoria platônica das idéias” em termos de uma dialética entre a  (alma) e o destino coletivo da  (cidade-estado), e em que consiste a forma do bem capaz de explicitar tal teoria, permanece um assunto deveras complexo para esta breve comunicação. De toda forma, para Platão, a politeia é a alma da polis, como já observara Allan Bloom, na medida em que a psyché aparece como o princípio (arché) racional por excelência que informa e governa a vida humana, tanto individualmente como coletivamente.(Bloom, 1968, p. 440) No entanto, a própria concepção de psyché já nos oferece aqui um grande problema para a epistemologia moral, na medida em que serve para designar tanto o seu maior bem quanto o instrumento que anima o ser humano (como os cavalos e os cães também têm alma), portanto os seus desejos não-racionais assim como os racionais enquanto função (ergon) a ser preenchida pela virtude. Com efeito, para Platão, os conceitos do bem e da excelência da alma são correlatos aos da eudaimonia (florescer humano) e da satisfação dos desejos da psyché. A notável semelhança entre a divisão tripartida da alma no Fedro e a estrutura triádica da polis-psyche na República é reveladora neste sentido. A fim de ir além das aparências da justiça (aquilo que a justiça apenas parece ser), Sócrates parte em busca da verdadeira natureza da “justiça”(dikaiosyné) e “injustiça” (adikia) na alma humana (375-77). Com efeito, assim como o argumento da imortalidade da alma ilustra a filosofia política de Platão, a própria polis surge primeiro como um mero artifício ilustrativo (369a), precisamente ao introduzir o microcosmos da alma individual. O eidos de tal relação entre a polis e a psyché é tematizado de maneira mais completa no Livro IV, quando Sócrates conclui com espanto “que em cada um de nós existem os mesmos princípios e modos de ser que na polis” (435e). Platão emprega aqui a palavra eidé, que é comumente traduzida como “formas”. Ora, é sabido de todos que a metáfora platônica da visão, em particular sua concepção de eidos, orquestra grande parte de seus conceitos. Esta palavra é derivada do verbo , “ver”, e pode significar “a aparência de algo”, o seu aspecto, como algo aparece aos nossos olhos. Daí o sentido de “forma, classe ou espécie” de coisa. A relação entre polis e psyché não pode, todavia, ser reduzida a uma analogia ontológica de causa-e-efeito ao ponto de fazermos corresponder às três classes da polis (governantes, soldados e “o resto da polis”, 414d) meramente uma divisão tripartida da alma. Com efeito, o eidos não implica nenhuma forma de correspondência causal, pois o próprio Sócrates chega a descrever elementos opostos da alma em termos de “classes”, isto é, diferentes que caracterizam contrários na estrutura da psyché. Por exemplo, a análise do homem sedento que se abstém de beber é usada por Sócrates para distinguir entre a faculdade racional (logistikon) e a faculdade sensual (epithymetikon). Contudo, um terceiro elemento a ser acrescentado é a faculdade afetiva, thymos (“vivacidade, espirituosidade”), que é caracterizada pela ambigüidade, podendo aliar-se tanto à razão como aos desejos (Livro IV). Neste caso, a razão aparece em oposição principial ao eros --notando-se que a polis não abriu ainda espaços para incluir o filósofo, que só entra em cena no Livro V. Às três partes da alma correspondem portanto as três classes da polis, num sentido estritamente dialético. Quanto às virtudes da polis, sophia (sabedoria) e andreia (coragem) são “departamentais”, isto é, só podem ser encontradas entre governantes e soldados, respectivamente, enquanto sophrosyné (“temperança” em oposição a hybris, “excesso”) e dikaiosyné (enquanto virtude de alocar a cada parte da psyché sua função perticular) são estendidas a todas as três classes. Como modelo da polis, a estrutura da alma é hierárquica, governada pela sophia, auxiliada pela andreia; um equilíbrio interno é mantido pela sophrosyné, e a “ordem” (kosmos) é assegurada pela dikaiosyné. A polis ilustra e molda o ser humano, assim como a psyché governa e informa o indivíduo viabilizando a própria vida humana. Todavia, a constituição socrática da polis ideal parece condenada a fracassar na sua constituição de almas capazes de compor tal cidade-estado. Afinal, como observou MacIntyre, o desejo racional só se realiza numa polis ideal com uma constituição ideal.(MacIntyre, 1981, p. 140) Ora, se o bem é objetivamente estabelecido como valor absoluto e supremo a ser alcançado pela elevação dialética da alma, como dar conta da defasagem entre a razão deliberativa que guia o desejo racional e o desejo sensual e afetivo da alma? O problema da akrasia, da fraqueza da vontade humana, já antecipa aqui a tensão entre um querer racional (da vontade, Wille, que quer o que deve ser quisto) e o arbítrio humano (Willkür, que traduz apenas as inclinações, paixões, instintos e desejos empíricos) na filosofia prática de Kant.

3. Igualdade em Kant e Rawls

Gostaria de propor agora que reexaminemos a questão ético-política da melhor constituição para a polis à luz da transformação da concepção platônica de isonomia politiké, igualdade social. Vlastos nos lembra que há uma vasta literatura desde a época de Heródoto que nos autoriza a identificar isonomia com demokratia enquanto forma mais eqüitativa (fairest) da constituição política.(Vlastos, 1981, p. 166s.) O termo ocorre na oração fúnebre de Platão (Menexenus 239 a), um encomium de Atenas, onde a idealização da polis serve para justificar sua rejeição da democracia igualitária. Aqui estamos em pleno acordo com o que lemos na República 558 c, onde a demokratia é descrita como “distribuição de um tipo de igualdade para iguais e desiguais indiscriminadamente”--daí a sua inerente injustiça. Vlastos enfatiza que, para além dos jogos de palavras, Platão estaria reafirmando o que já tinha sido dito em sua exposição da teoria das formas no Fédon, que a “igualdade” (isonomia) --i.e. recompensas iguais-- deviam ser dadas apenas aos “iguais” (i.e. àqueles cujas reivindicações são iguais). Este é, de resto, o sentido mais preciso de areté, “excelência”, enquanto mérito (desert, em inglês, objeto do que se merece, what is deserved). Assim, para Platão, o homem propriamente chamado democrático, o igualitarista ou igualitário (, isto é, aquele que ordena sua alma como a polis ordena seus ofícios, indiferente à excelência do merecimento para a ocupação de cargos (561c-e), (). Resumindo, o problema com tal concepção de igualdade é que ela não dá primazia à excelência. Em escritos posteriores, notavelmente nas Leis, essa concepção de igualdade será contrastada com uma concepção geométrica de igualdade (). Na medida em que Rawls rejeita a tese da meritocracia em sua defesa do igualitarismo, gostaria de aproximar esse procedimento da igualdade jurídico-formal de inspiração kantiana, em termos da articulação entre theoria e praxis. Para tanto, retomo uma citação da conclusão da Doutrina do Direito (Rechtslehre) de Kant:

“Se alguém não pode provar que uma coisa é, pode tentar provar que ela não é. E se não for bem sucedido em nenhuma destas (como freqüentemente acontece), ele pode ainda perguntar se é de seu interesse aceitar uma ou outra das alternativas hipoteticamente, de um ponto de vista teórico or prático. Em outras palavras, uma hipótese pode ser aceita seja para explicar um certo fenômeno (como na astronomia, para dar conta do movimento de recuo [Rückganges] e do estado de repouso [Stillstandes] dos planetas), ou para alcançar um certo fim, que pode ser ainda pragmático, meramente técnico [Kunstzweck, um fim da arte], ou moral, i.e. um fim tal que a máxima de adotá-lo é ela mesma um dever. Ora é evidente que não é a suposição (suppositio) de que um tal fim possa ser exeqüível que seria tomado como nosso dever, o que seria meramente um juízo teórico e, ademais, problemático; pois não pode haver nenhuma obrigação de crer em um tal fim. O que nos incumbe como dever é antes o agir em conformidade com a idéia daquele fim, mesmo se não há a menor verossimilhança teórica que ele possa ser efetivado, na medida em que a sua impossibilidade não pode ser tampouco demonstrada.”(Kant, 1997, p. A 232s.)

 

Grosso modo, identifica-se o internalismo epistêmico da ética kantiana com a sua formulação do imperativo categórico enquanto princípio a priori da moralidade.(Audi, 1997, p. 14) Na medida em que justifica a regra de universalizabilidade de proposições práticas, a crença de que devo agir de tal modo ou que tenho razões para agir assim, nos remete segundo o modelo kantiano ao imperativo categórico enquanto princípio supremo da moralidade. Neste sentido, uma crença racional (o próprio princípio cognitivo da ação moral) não exige nenhum desejo ou paixão no sentido humeano do termo (de que a razão é sempre escrava das paixões). Assim, podemos facilmente concordar que o modelo deontológico kantiano é internalista, seguindo a formalização modal proposta por David Brink (1997, p. 4-32):

ÿ (J « B)  cognitivismo

ÿ (J ® M) internalismo

ÿ (M ® D)                                          rejeitando apenas a tese humeana,  à (B . ~D)

Permanece, todavia, o problema de articular vontade (Wille) e livre arbítrio (freier Willkür), num sentido de articulação da tarefa transcendental da fundamentação com a sua aplicabilidade empírica, ou, nos termos da Doutrina do Direito, da moralidade com a legalidade enquanto dimensões normativas internas e externas das leis da liberdade. Este tipo de problema tem sido identificado por Michael Smith (1994) como sendo o problema moral por excelência, na medida em que satisfaz (1) a tese da objetividade (juízos morais nos remetem a crenças racionais que podem ser epistemicamente justificadas, “It is right that I ” --”objectivity thesis”), (2) a exigência de praticabilidade (“practicality requirement”, i.e., o juízo moral é suficiente para explicar a ação que deve ser realizada), e (3) a psicologia crença-desejo de inspiração humeana: “An agent is motivated to act in a certain way just in case she has an appropriate desire and a means-end belief, where belief and desire are, in Hume’s terms, distinct existences”.(ibid., p. 12) Brink e outros interlocutores de Smith também mostram que essa problemática é correlata a um outro problema, de origem tão racionalista quanto empirista, que é o do realismo e anti-realismo em moral. Segundo autores de língua inglesa que defendem a realidade de valores morais como o bem independentemente de nossa valoração, juízo moral ou expressão pela emoção ou desejos, uma concepção do realismo moral encontra-se em Kant assim como em Platão (G.E. Moore, Iris Murdoch, David Brink), ao contrário de autores que defendem alguma forma de não-cognitivismo (como o emotivismo de A.J. Ayer, o prescritivismo de Richard Hare e o expressivismo-normativo de Allan Gibbard). Todavia, embora seja questionável a identificação do realismo moral com o intuicionismo, há ainda aqueles que seguem uma concepção procedimentalista ou construtivista do anti-realismo na filosofia moral de Kant (Rawls, Habermas, O’Neill, Pogge, Wood, Schneewind). Foi sobretudo após a publicação da Teoria da Justiça de Rawls em 1971 que vários estudos têm procurado resgatar um modelo cognitivista em ética e filosofia política, de forma a evitar os dilemas e aporias decorrentes da mera redução do realismo ao intuicionismo, da oposição entre internalismo e externalismo ou da rotulação de falácia naturalista às abordagens que operam um retorno pós-kantiano a Hume. É neste sentido que podemos realizar um experimento com o pensamento político (a political thought-experiment), postulando uma posição original enquanto princípio universalizável da igualdade. Imaginemos uma situação em que todos subscrevamos ao seguinte princípio ético-político. “Somos todos iguais na medida apenas (i.e. justamente) em que temos todos a mesma liberdade”. Ou seja, não tanto que sejamos todos livres do mesmo modo de facto, mas que sejamos todos de jure igualmente livres. Esta situação hipotética é obviamente uma construção da razão prática e que embora todo mundo (ou pelo menos muita gente) conheça a existência de algum artigo na Constituição de seu país que postule tal igualdade e disso se sirva para reivindicar direitos concretos particulares (aqui e alhures), o que em Kant seria uma proposição sintética  a priori (na Rechtslehre), em Rawls não passa de um dispositivo procedimental de representação. O construtivismo de Rawls, assim como o equilíbrio reflexivo de seu correlato coerentismo epistêmico-moral (moral epistemic coherence theory), servem aqui para explicitar a correlação que se busca estabelecer entre igualdade e liberdade na própria formulação de um princípio universalizável de justiça, segundo o modelo internalista e anti-realista da interpretação kantiana. É neste contexto de pesquisa meta-ética que eu gostaria agora de expolorar a leitura que Rawls nos oferece de uma concepção kantiana de igualdade, onde a questão empírico-pragmática da motivação e do desejo é revisitida e resgatada na reformulação do princípio de universalizabilidade em seus desdobramentos substantivos.

Segundo um dos mais ilustres interlocutores de John Rawls, Amartya Sen, o conceito de igualdade admite hoje pelo menos quatro sentidos socio-econômicos diferenciados, quando se discute o problema em teoria política --que não poderia obviamente ser confundido com a igualdade ôntico-ontológica de entes na natureza ou com a igualdade matemática, por exemplo. Segundo Sen, o grande divisor de águas em teoria política e econômica é justamente o de se avaliar o que está efetivamente em jogo na formulação da questão: “igualdade de quê?” (equality of what?). Como toda abordagem ética dos arranjos sociais parece defender uma certa idéia de igualdade, resta-nos especificar qual é o objeto da igualdade nas modernas versões do igualitarismo. Enquanto igualitaristas de esquerda advogam a igualdade de proventos e ganhos salariais (income-egalitarians) e os libertarianos exigem apenas a igualdade de direitos e liberdades individuais (pure libertarians), utilitaristas clássicos insistem na igualdade de utilidades e os  igualitaristas do bem-estar social (welfare-egalitarians) defendem a igualdade dos níveis de bem-estar.(1994, p. 5ss.) A questão não seria, portanto, de ser a favor ou contra a igualdade em termos sociais, econômicos e políticos, mas de estabelecer os mecanismos institucionais capazes de promover as igualdades desejáveis e de manter ou ignorar as desigualdades aceitáveis. Dada a diversidade da natureza humana, da divisão social do trabalho e de suas multiformes manifestações em seus processos civilizatórios (nas artes, nas ciências e nas religiões), a filosofia ocidental sempre buscou ideais de igualdade capazes de universalizar o sentido próprio do ser humano em suas relações éticas e políticas. A articulação entre igualdade, liberdade e justiça que embasa a teoria rawlsiana da justiça como eqüidade é, como todos sabem, de inspiração kantiana e reformula, a meu ver, a mais importante contribuição de Immanuel Kant para a filosofia do direito, a saber, o seu procedimentalismo enquanto correlato jurídico do princípio de universalizabilidade em filosofia moral. Com efeito, é sobretudo a partir do liberalismo kantiano que os ideais iluministas da tolerância, liberdade, igualdade e reciprocidade convergiriam numa teoria da justiça capaz de ordenar juridicamente as instituições sociais, econômicas e políticas de uma sociedade igualitária. Seguindo uma interpretação kantiana da justiça como eqüidade, proponho-me a reexaminar a questão da igualdade à luz do opúsculo de Kant Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria, mas não vale na prática (“Über den Gemeinspruch: ‘Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis’,” 1793) e do ensaio de Rawls, “Uma Concepção Kantiana de Igualdade” (1975). Se um dos problemas centrais de uma teoria kantiana da justiça consiste em articular, de um lado, liberdade e igualdade (como Rawls o sugere através do princípio da “igual liberdade”), e, de outro lado, igualdade e desigualdade (“princípio da diferença”), em que medida podemos resgatar um igualitarismo procedimental em Kant sem incorrermos num conseqüencialismo utilitarista ou numa versão conservadora de reformismo político? Creio que a correlação que Kant estabelece entre theoria e praxis pode nos ajudar a encontrar uma posição defensável que faça jus a ambos desafios, sobretudo quando, na segunda parte do Gemeinspruch, Kant argumenta em favor de uma igualdade legal, na medida em que todos são iguais perante a lei, em pleno acordo com o seu princípio de liberdade inata correlato à própria concepção de igualdade inata, esboçado na Rechtslehre.

O projeto kantiano da paz perpétua, enquanto extensão e fim terminal (Endzweck) de sua teoria do direito, repousa numa “utopia realista” que Rawls corretamente identificou com um igualitarismo cosmopolita liberal, cujo moto negativo (“veto irresistível”, unwiderstehliches Veto) foi formulado pelo próprio Kant nos seguintes termos: “Não deve haver guerra” [Es soll kein Krieg sein].(A 233) Tanto no estado de natureza para as relações entre cidadãos de uma mesma nação quanto nas relações internacionais entre os povos, a guerra contradiz a própria idéia kantiana do direito e da justiça. A passagem de um estado hobbesiano de guerra para um estado de paz através do contrato social é condição sine qua non para a constituição política e para a subseqüente sobrevivência do gênero humano, em sua complexa condição de insociável sociabilidade. Interessantemente, na segunda parte do Gemeinspruch, Kant se propõe a ratificar a teoria hobbesiana do estado de natureza, reformular sua concepção de contratualismo e refutar o seu absolutismo. Segundo Kant, como já fôra de resto assinalado na Primeira Crítica (KrV B 780), o estado de natureza é inevitavelmente identificado com um estado de guerra, posição esta que é ratificada na Paz Perpétua, onde Kant afirma que “o estado de paz entre os homens que vivem lado a lado não é um estado de natureza (status naturalis), que antes é um estado de guerra, i.e. posto que nem sempre uma eclosão de hostilidades, contudo [é] uma ameaça permanente destas.”(kant, 1989, p. 32) Kant concorda, portanto, com Thomas Hobbes quanto à igualdade dos seres humanos no estado de natureza. O grande ponto de ruptura consiste precisamente no conceito de liberdade que, para Kant, não poderia ser pensado em termos empíricos ou meramente negativos (“ausência de impedimento”) na fundamentação de uma teoria da justiça. Kant se refere ao princípio pacta sunt servanda, concordando com Hobbes quanto ao exercício legítimo da coerção que obriga a todos o cumprimento da lei segundo os próprios princípios da justiça. Todavia, Kant não pode seguir Hobbes quando se confunde a renúncia sem reserva da liberdade natural (enquanto faculdade de se fazer o que se quer) com a instituição contratual do Estado despótico. É neste sentido que Rawls aproxima o modelo kantiano do liberalismo de Locke e do igualitarismo de Rousseau, em contraposição ao modelo hobbesiano. Como para Hobbes o conceito de liberdade ainda permanece num nível negativo, isto é, de negação de condicionamentos fenomênicos ou de ausência de determinação causal, Kant obviamente aproxima-se mais de uma concepção liberal-democrática do que do absolutismo hobbesiano. Para melhor compreendermos como se dá a apropriação kantiana do modelo contratualista clássico seria necessária uma investigação de sua filosofia da história, pois é no regramento de uma história mundial (Weltgeschichte) que a liberdade, em sua acepção positiva de autodeterminação da razão prática pura, realiza a sua finalidade moral de modo a satisfazer suas exigências externas e internas de legalidade. Assim como Hobbes, Kant argumenta no Gemeinspruch (A 248) que o contractus originarius ou pactum sociale não deve ser tomado como um fato histórico mas, para além do filósofo de Malmesbury, Kant concebe o contrato como uma “idéia da razão”, de forma a estabelecer o teste de validade do direito público.(Kant, 1992, p. 82) Assim como Kant rejeita o regramento hobbesiano de interesses particulares através da barganha, o filósofo de Königsberg renuncia também ao modelo jusnaturalista de John Locke, segundo o qual a autopreservação e a garantia absoluta de direitos de propriedade são direitos naturais anteriores ao contrato social. De acordo com Rawls, a contribuição kantiana consiste sobretudo em tornar defensável uma correlação de igualdade normativa entre um ideal de pessoa humana (pessoa moral, livre e igual) e uma sociedade ideal (que ele denomina “well-ordered society”, seguindo uma fórmula de Jean Bodin, “république bien ordonnée”, de 1576). A fim de sugerir a idéia principal, Rawls nos convida a pensar na noção de uma sociedade bem ordenada como uma interpretação da idéia de um reino de fins concebida como uma sociedade humana sob circunstâncias de justiça. Segundo Rawls, “os membros de tal sociedade são livres e iguais e nosso problema consiste, portanto, em achar uma interpretação de liberdade e igualdade que seja naturalmente descrita como kantiana”. Assim, partindo da distinção liberal entre liberdade positiva e negativa, tal como foi apropriada e desenvolvida por Kant, Rawls se serve deste contraste e recorre à idéia da “posição original”, de forma a supor “que a concepção de justiça apropriada para uma sociedade bem ordenada é aquela que seria acordada numa situação hipotética que fosse eqüitativa (fair) entre indivíduos concebidos como pessoas morais livres e iguais, isto é, como membros de uma tal sociedade. A eqüidade (fairness) das circunstâncias sob as quais o acordo é alcançado se transfere à eqüidade dos princípios acordados. A posição original foi concebida de tal forma que a concepção de justiça resultante seria apropriada.”(Rawls, 2001, p. 254-266)

Para Rawls, a visão de Kant é marcada por um número de dualismos, em particular, entre o necessário e o contingente, forma e conteúdo,  razão e desejo, noúmenon e fenômeno. Não seria questão de abandonar ou não esses dualismos como foram concebidos por Kant, mas de abraçar sua concepção moral em sua estrutura característica que é mais claramente discernível quando esses dualismos não são tomados no sentido que ele lhes deu mas são reinterpretados e sua força moral reformulada dentro do escopo de uma teoria empírica. Ao articular a teoria ideal nas duas primeiras partes de Uma Teoria da Justiça (capítulos I a VI) com a teoria não-ideal da terceira parte (capítulos VII a IX), Rawls segue, creio eu, um caminho já proposto pela filosofia do direito kantiana na medida em que evita o reducionismo naturalista do direito natural clássico (direitos naturais como causalidade de uma lei natural) e o dogmatismo teológico da metafísica tradicional (direito divino dos monarcas). Rawls procura reabilitar o liberalismo político, mais ou menos como Kant reinterpreta o liberalismo lockeano e o igualitarismo rousseauniano em sua reformulação do contratualismo.

Assim como em Hobbes o estado de natureza não pode ser pacífico, mas é necessariamente belicoso, Kant evoca um estado de natureza internacional, na guerra de nações contra nações, e que somente pela constituição de uma liga das nações, enquanto dispositivo procedimental de contrato, pode-se contemplar a coexistência pacífica entre os povos. Ao contrário de Hobbes, todavia, o vínculo contratual não se encontra numa racionalização estratégica visando evitar o perigo iminente da morte violenta, mas num ordenamento jurídico, fundamentado moral e procedimentalmente num dispositivo de representação análogo ao do imperativo categórico, por ele denominado o “princípio universal do direito / justiça”: “É justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais.”(Kant, 1997, p. 230) Apesar de compartilhar com Hobbes a identificação do estado de natureza com um estado de direito privado (na verdade, pode-se argumentar que, para Hobbes, o direito a todas as coisas constitui-se num direito a coisa alguma), a passagem deste ao estado de direito para a promoção da justiça é, para Kant, necessariamente distinto de um estado social—portanto, como em Locke, a sociabilidade deve ser politicamente regrada pelo contrato mas pode existir em sua condição natural (status artificialis, em oposição ao status civilis). Segundo Kant, “Do direito privado no estado natural resulta um postulado de direito público: ‘Tu deves juntamente com os demais, na relação de uma coexistência necessária, sair do estado natural para entrar em um estado de direito, i.e., estado de uma justiça distributiva”.(ibid., p. 145) Assim como em Hobbes, a hipótese do contrato funciona em Rawls como um dispositivo heurístico capaz de dar conta de uma situação histórica determinada: embora a maior parte das nações tenha historicamente emergido de guerras contra seus vizinhos, o contrato é invocado como metáfora solene de nascimento e coesão da commonwealth, em oposição a quaisquer situações de guerra civil.

Obviamente a concepção kantiana de razão prática refuta todo nível empírico de fundamentação voluntarista, sendo a vontade pura (Wille) contraposta ao arbítrio ou “vontade” (Willkür) no sentido fraco de inclinação, desejo, impulso, escolha ou quaisquer atos de um querer psicologicamente condicionado. Por isso mesmo, o princípio de autonomia da razão prática deve coincidir, segundo Kant, com a própria vontade enquanto vontade geral, universalizável e publicamente reconhecida como boa, soberana e eficiente, isto é, capaz de realizar a liberdade de todos os membros da sociedade enquanto seres humanos, assegurar a igualdade de todos enquanto sujeitos e manter a independência de cada um como cidadão.(Kant, 1992, p. 73 ss.) A concepção de liberalismo em Kant permanece fiel ao seu distanciamento teórico do dogmatismo racionalista de Hobbes: uma metafísica embasada more geometrico mostra-se insuficiente para dar conta da liberdade e do complexo conceito de natureza humana, assim como o império da lei (the rule of law) não decorre de uma soberania absoluta mas de um estado de direito autonomamente estabelecido, a própria base do Rechtsstaat político. A justificação, segundo Locke, da resistência dos cidadãos a uma determinada forma de governo (Commonwealth no sentido político), portanto, a legitimação da dissolução do governo não se coloca ao serviço, na perspectiva kantiana, de práticas revolucionárias mas de reformas constitucionais.(ibid., p. 162) A concepção rawlsiana de sociedade política enquanto sistema cooperativo estável embasado num consenso justaposto de doutrinas abrangentes razoáveis é uma concepção liberal nitidamente pautada pelo princípio lockeano da tolerância e pela formulação kantiana da liberdade segundo um princípio de universalizabilidade que formaliza a idéia popular de que “a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”.(Rawls, 1996, p. 43, 134) Nas palavras de Lewis White Beck, a fundamentação kantiana da moral dá conta de um “conhecimento moral do senso comum”; mutatis mutandis, dir-se-á que Rawls visa a uma formalização procedimental da “sociedade mais justa” que todo mundo, com um senso de justiça e concepções razoáveis do bem, naturalmente deseja. Na Introdução à edição em paperback de Political Liberalism, Rawls explicitamente define sua concepção político-liberal de justiça segundo as três condições seguintes: 1. uma especificação de certos direitos, liberdades e oportunidades; 2. uma prioridade especial para tais liberdades; e 3. medidas que assegurem aos cidadãos, independentemente de sua posição social, meios adequados (referentes aos bens primários) para fazer um uso inteligente e efetivo de suas liberdades e oportunidades.(ibid., p. xlviii) Com efeito, assim como a proeminência das liberdades civis e da tolerância contrapõem concepções liberais como as de Locke, Kant e Rawls a versões (utilitaristas) que recorrem ao princípio de utilidade, a primazia do justo sobre o bem é o que caracteriza o liberalismo rawlsiano de inspiração kantiana  em oposição a toda forma de libertarismo.

Para Kant e Rawls, o princípio universalizável da justiça deve preceder toda tentativa pragmática de se chegar a um acordo segundo projetos racionais do bem precisamente por causa da identificação entre fim terminal e liberdade humana, anterior a toda escolha racional dos meios para atingir fins contingenciais. Neste sentido, a concepção deontológica do liberalismo kantiano se opõe a Hobbes e a Locke: “Todo conceito de um direito externo é derivado inteiramente do conceito de liberdade nas relações mútuas externas de seres humanos, e não tem nada a ver com o fim que todos os homens têm por natureza (o propósito de alcançar a felicidade) ou com os meios reconhecidos para atingir tal fim.”(Kant, 1992, p. 73)

Ao propor uma concepção kantiana de igualdade, John Rawls visa situar dentro de sua interpretação kantiana da justiça como eqüidade uma concepção de igualitarismo que faça jus, por um lado, ao desafio empírico do liberalismo político, prenunciado pela visão semântica ideacional de Locke (a idéia de igualdade, numa perspectiva propriamente de uma filosofia prática da linguagem), e por outro lado, à efetiva realização da igualdade pela liberdade, como abstratamente formulado por uma “vontade geral” no sentido proposto por Rousseau. Creio que uma concepção kantiana de igualdade, tal como foi reformulada por Rawls, responde aos desafios teóricos de um termo que tem sido empregado de maneira tão vaga quanto imprecisa em textos clássicos da ética e da filosofia política, sobretudo quando confunde uma concepção formal de igualdade (por ex., jurídica e política) com uma concepção material ou real de igualdade. O exemplo clássico é o da Declaração Universal dos Direitos Humanos quando afirma no seu artigo primeiro: “Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits...” (os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito). Esta seria, de resto, a problemática platônica --retomada por seu mais ilustre discípulo, Aristóteles (na Ética a Nicômaco)-- na formulação de uma forma de igualdade capaz de transcender a mera aparência de coisas iguais, notavelmente pelas diferentes leituras dos argumentos socráticos sobre participação e separação do ser dos entes no Fédon (74a-75e).

Gostaria de propor aqui que a articulação entre uma teoria ideal e uma teoria não-ideal da justiça decorre precisamente da articulação kantiana entre theoria e praxis, na medida em que a teoria é tomada strictu senso enquanto teoria das representações (no nosso caso, das Idéias de liberdade, contrato e igualdade) e a praxis é concebida não no sentido pragmático vulgar (que Kant explicitamente rejeita no seu Gemeinspruch) mas no sentido crítico do “uso prático da razão pura”, i.e. na realização efetiva das representações práticas de nossa liberdade na moral, no direito e na política:

“Chama-se teoria mesmo a um conjunto de regras práticas quando estas regras são pensadas como princípios numa certa universalidade, e aí se abstrai de um grande número de condições as quais, no entanto, têm necessariamente influência sobre a sua aplicação. Inversamente, denomina-se prática (Praxis) não toda a operação, mas apenas a efetuação de um fim conseguida como adesão a certos princípios de conduta representados na sua generalidade.”(Kant, 1992, p. 57)

 

Kant visava inicialmente em seu opúsculo à sátira do eminente matemático Abraham Kästner que denunciara, no seu texto de 1793 [“Pensamentos sobre] a inabilidade de escritores produzirem uma rebelião”, (Gedanken über das Unvermögen der SchriftstellerEmpörungen zu bewirken). Kant buscava mostrar, assim, que a validade de uma teoria não dependia de suas conseqüências revolucionárias, como se houvesse uma fórmula quimérica vulgar que colocasse em prática todas as utopias teorizadas, mas evitava igualmente as reações conservadoras de Edmund Burke com relação à Revolução Francesa (Reflections on the French Revolution, 1790) e seus leitores na Alemanha, em particular o grande jurista Gottfried Achenwall, Friedrich Gentz (que traduziu a obra de Burke para o alemão em 1793) e o secretário do Chanceler Wilhelm Rehberg. Interessantemente, Burke rejeita o ideal revolucionário da igualdade por ser contrário à própria natureza, assim como a liberté em questão não passava de uma idéia metafísica esvaziada de todas as relações concretas e a fraternité era apenas um pretexto dos revolucionários para promover seus vícios da ambição, orgulho, lascívia e sedição. Tal evento serviu mais uma vez para questionar o valor da teoria filosófica e suas pretensões morais, em face dos acontecimentos históricos. Se Kant já havia contraposto o ser dos eventos naturais ao dever-ser da liberdade, a própria questão da intervenção humana na história em seus processos civilizatórios exigia no final do século XVIII uma reflexão que desse conta das aspirações da liberdade num contexto político tão polêmico quanto complexo. Para Kant, em última análise, a teoria define a prática na sua própria aplicação efetivante, o que poderia ser formulado através da faculdade de julgar (Rechtslehre § 62), em se tratando de uma relação sintética entre o que é determinado pela teoria e o que permanece objeto de experiência prática. O grande desafio moral da teoria política (assim como da teoria do direito) consiste afinal na real condição humana de desregramento, de não se submeter a princípios racionais que, idealmente ou em teoria seriam os mais razoáveis para balizar uma condição estável ou viabilizar a estabilidade social e política. Embora não proceda a uma analogia direta com a matemática (como queriam os racionalistas, de Descartes a Leibniz), Kant afirma no § E (1997, p. 233) que não é tanto o conceito de direito (condições que permitem que o meu direito e o teu direito sejam compatibilizados conforme a lei universal da liberdade) mas antes enquanto coação plenamente recíproca e igual que viabiliza tal conceito sob uma lei universal. É neste sentido mesmo que Kant defende no Gemeinspruch a igualdade quanto ao direito de coação, atribuído a cada membro da comunidade, enquanto súditos, na medida em que todos estão igualmente sob as mesmas leis do Estado:

“...Todo o direito consiste apenas na limitação da liberdade de outrem com a condição de que ela possa coexistir com a minha segundo uma lei universal... em virtude da qual todos os que, enquanto súditos, fazem parte de um povo encontram-se num estado jurídico (status juridicus) em geral, a saber, num estado de igualdade de ação e reação de um arbítrio reciprocamente limitador, em conformidade com a lei universal da liberdade.”(A 240s.)

 

Deste mesmo princípio decorre a condenação da escravidão, na medida em que o súdito deixa de ser seu próprio senhor e entra na classe dos animais domésticos, no que seria mais tarde identificado pela sociologia como uma “morte social”. Creio inclusive que esta concepção de igualdade pode ser aplicada contra o sexismo, latente na visão pré-feminista de Kant (que ainda submete a mulher ao seu marido, como tem sido o costume de 2400 anos de falocentrismo!) Rawls se reapropria de Kant precisamente para defender uma concepção igualitária e pública de autonomia política. Assim a autonomia política, enquanto liberdade positiva, exige uma correlação entre liberdade e igualdade nos seguintes termos: 

“Minha liberdade exterior (jurídica) deve antes ser definida assim: ela é a autorização de não obedecer a nenhuma lei exterior a não ser àquelas que pude dar meu assentimento. A igualdade exterior (jurídica) num Estado é justamente assim aquela relação dos cidadãos segundo a qual ninguém pode obrigar juridicamente outrem a algo sem que ele ao mesmo tempo se submeta à lei de também poder ser obrigado por ele reciprocamente do mesmo modo.”(Kant, 1989, p. 34)

À guisa de conclusão, observamos que Rawls mantém os dois princípios igualitários de justiça, visando um ideal de sociedade (“bem ordenada”), de forma a assegurar a proteção recíproca dos interesses fundamentais que os membros de uma tal sociedade supostamente possuem, portanto, os seus direitos básicos. Isso nos remete, mais uma vez, a uma noção normativa de pessoa moral, não apenas livre, mas igual, isto é, na medida em que todos são igualmente livres. A normatividade implícita nesta reformulação do ideal kantiano de pessoa é correlata à estruturação institucional da sociedade, e é neste sentido jurídico preciso que podemos dizer que as pessoas modelam a sociedade na mesma proporção em que são por esta modeladas --muito reminiscente da correlação entre alma e polis em Platão. Um dos méritos da leitura que Rawls nos oferece da filosofia moral kantiana reside justamente na superação do “formalismo estéril” e do “transcendentalismo” freqüentemente atribuídos ao modelo deontológico por comunitaristas e naturalistas. Ao tentar tornar o procedimentalismo de inspiração kantiana mais defensável, Rawls corrobora o argumento deontológico contra todos os modelos teleológicos, perfeccionistas e utilitaristas, rejeitando, por um lado, a confusão entre fundamentação e aplicabilidade da moral e do direito, e contemplando, por outro lado, as reivindicações empíricas de tais modelos. A primazia do justo sobre o bem, assim como a contraposição entre o razoável e o racional, é evocada por Rawls com o intuito de viabilizar a igualdade e a liberdade, de facto e de jure. As pessoas são livres e iguais porque devem ser razoáveis, apesar de todas as suas deficiências e contradições empíricas, mesmo quando buscam promover seus projetos racionais e concepções do bem --por mais conflitantes e incompatíveis que sejam. Afinal, segundo Rawls,

“...as pessoas não se concebem como se fossem inevitavelmente vinculadas a qualquer arranjo particular de interesses fundamentais; ao contrário, elas se percebem como capazes de rever e modificar esses fins terminais. Elas desejam, portanto, dar prioridade a sua liberdade para fazer isso, e assim sua lealdade original e contínua devoção aos seus fins devem ser formadas e afirmadas sob condições que são livres. Ou, para dizer em outros termos, os membros de uma sociedade bem ordenada são vistos como responsáveis pelos seus interesses e fins fundamentais. Embora enquanto membros de associações particulares alguns possam decidir na prática delegar esta responsibilidade para outros, a estrutura básica não pode ser construída de forma a prevenir que as pessoas desenvolvam sua capacidade de serem responsáveis ou que obstruam seu exercício da mesma uma vez a tenham alcançado. Os arranjos sociais devem respeitar a sua autonomia e esta aponta para a propriedade dos dois princípios.”(Rawls, 2001, p. 260)

 

Em Uma Teoria da Justiça, Rawls já havia contraposto (§ 2) a teoria ideal da justiça à teoria não-ideal, em função da estrutura básica de uma sociedade bem-ordenada enquanto objeto primário de justiça como eqüidade, assim como contrapõe uma teoria de aquiescência estrita (strict compliance) a uma teoria de aquiescência parcial (partial compliance theory, §§ 25, 39). Essa mesma contraposição é retomada na estrutura do argumento central do Direito dos Povos (Rawls, 1999), onde nas partes I e II a idéia genérica do contrato social é estendida, respectivamente, à sociedade dos povos democráticos liberais e à sociedade dos povos não-liberais decentes, enquanto a parte III considera dois tipos de teoria não-ideal, a saber, um tipo que lida com condições de não-aquiescência (Estados fora da lei) e outro que trata de condições desfavoráveis, dentro de seu projeto de tornar defensável uma utopia realista, capaz de garantir a sobrevivência da humanidade e a coexistência pacífica entre os povos do planeta.

Na Teoria da Justiça, as duas primeiras partes tratam do que Rawls denomina uma teoria ideal da justiça, enquanto a terceira diz respeito à teoria não-ideal. Trata-se portanto de articular o trabalho meta-teórico dos procedimentos formais da moral com o seu correlato substantivo normativo: a fim de problematizar a sociedade como ela é, deve-se partir de uma análise deontológica, qual seja, a de como ela deveria ser para ser caracterizada como uma sociedade justa. No nível da teoria ideal, encontra-se propriamente a sua idéia de um igualitarismo liberal, através dos conceitos da “posição original” e da “sociedade bem-ordenada”. A teoria não-ideal procura demonstrar a exeqüibilidade da justiça como eqüidade, na medida em que a cultura política, movimentos sociais e reformas constitucionais viabilizam, pelo “equilíbrio reflexivo”, uma aproximação cada vez maior dos ideais de justiça, liberdade e igualdade propostos. Rawls procura esquivar-se assim do positivismo jurídico, de um lado, e das definições materiais da justiça (do jusnaturalismo clássico), de outro. É precisamente este modelo procedimental, formal, de articulação entre regras (procedimentos) e práticas (instituições) que caracteriza o trabalho conceitual da obra de Rawls como um todo e a aproxima dos projetos políticos de Platão e Kant. No Liberalismo Político, Rawls reafirma que a teoria ideal (“which defines a parfectly just basic structure”) é um complemento necessário para a teoria não-ideal “sem a qual o desejo de mudança carece de propósito” (without which the desire for change lacks an aim).(Rawls, 1996, p. 285) Mais uma vez, Rawls defende aqui seu modelo de uma teoria puramente procedimental (a purely procedural theory) mas cujos princípios estruturais são capazes de substantivar e efetivamente tornar a nossa ordem social vigente em uma ordem cada vez mais justa, em direção ao ideal de uma estrutura básica eqüitativa (a fair basic structure).  Assim, a articulação entre a teoria ideal e a teoria não-ideal atinge todo o seu vigor climático para uma teoria da democracia, que a meu ver permeia a original contribuição de Rawls para a teoria política do nosso século. Embora não possa desenvolver este ponto aqui, creio que neste sentido muitas críticas dirigidas ao Direito dos Povos são errôneas, sobretudo no que diz respeito à lista minimalista dos direitos humanos evocados por Rawls (the right to life and to personal security, the right to personal property, the right to the requirements of a legal rule, the right to a certain amount of liberty of conscience and association, and finally the right of emigration). Segundo tais críticos, o projeto de Rawls teria fracassado ao excluir de sua lista dos direitos humanos universais fundamentais direitos tais como o de um governo democrático, da igualdade política ou o direito a uma distribuição igualitária ou welfrista de bens materiais. Gostaria de concluir afirmando que, justamente por se tratar de uma teoria não-etnocêntrica, não concordo (1) que haja uma tal exclusão e (2) que não seja contemplada a possibilidade de intercâmbios e de trocas interculturais, capazes de enriquecer cada vez mais nossa compreensão do que sejam os direitos humanos ou o escopo político-pragmático de tais direitos, de forma a incluir valores e contribuições de povos não-eurocêntricos, não-cristãos e não-ocidentais. (1) A própria concepção de um consenso sobreposto (overlapping consensus), evita a tentação de reduzir o modelo procedimental do “liberalismo político” a uma cosmovisão (world view, Weltanschauung) ou doutrina abrangente (moral, religiosa, ideológica ou mesmo filosófica!). Embora tal concepção seja, com efeito, “filosófica”, o consenso sobreposto se refere reflexivamente a uma razão pública irredutível a quaisquer filosofias ou doutrinas abrangentes. Creio que aqui reencontramos a dimensão histórico-pragmatista do argumento rawlsiano, neste sentido mais defensável do que as leituras alternativas de tomar o liberalismo político como uma doutrina abrangente ou de praticar o proselitismo democratizante do imperialismo americano ou de outros projetos na esteira do argumento de Trasímaco (“a justiça é a lei do mais forte”). (2) Assim, o sentido substantivo da humanidade (muito próximo, convenhamos, da versão material do imperativo categórico kantiano, qual seja, de tratar sempre a humanidade também como um fim em si) adquire toda sua força normativa. O ser humano é um fim terminal (Endzweck), sagrado, digno de ser preservado em sua integridade e inviolabilidade, enfim, em sua própria constituição empírico-transcendental, para além de todos os reducionismos empíricos e transcendentais. Creio que a filosofia política de Rawls nos ajuda a entender, afinal, por que os direitos humanos exigem uma fundamentação filosófica ao mesmo tempo em que não se deixam reduzir a nenhuma filosofia ou pretensão de verdade --metafísica ou não.

Introdução: Fenomenologia semântico-transcendental

Perspectivismo

Ética e Natureza Unisinos

 

1. Significação do Mundo: Da semântica transcendental do Tractatus à desconstrução do significado nas Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein

Bipolaridade da proposição teoria das representações e teoria do enunciado

Witt

1.1   

1.2   

1.3   

 

 

2. Episteme, Theoria, Praxis: O Legado Platônico-Kantiano da Epistemologia Moral em John Rawls

teoria ideal e teoria não-ideal

kant direito pelotas

-         Aristoteles Begriffe der Ousia, Theoria und Praxis

-         Contrário a correntes da suspeita radical pós-moderna e da condenação dos processos civilizatórios da chamada  civilização ocidental. (supostamente benéfica: resposta de Rousseau sobre progresso moral que não parece acompanhar um indiscutível progresso nas artes e nas ciências

Questão da especificidade da filosofia

 

2.1 - Hume e o Problema da Epistemologia Naturalizada

2.2 - Justiça e Igualdade em Platão

2.3 - Igualdade, Theoria, Praxis: O Transcendental Kantiano

2.4 - Teoria Ideal e Não-Ideal em Rawls

 

3. Karl Marx antropologia e trabalho, Desconstruindo a libertação theologia praxis

natureza humana: trabalho e espécie genérica

3.1 –

3.2 - Derrida como árbitro entre Lutero e Marx Howard

3.3 -

3.4 -

 

4.   Kant über Theorie und Praxis Habermas-Kant-pedagogia-processos de aprendizagem

Pierre KERSZBERG, Critique and Totality (Albany, NY: SUNY Press, 1998), Studia Kantiana 2 (2000).

 

5. Hegel contrato comunitarismo

 

6. Artigo: “Ética e Estética na Terceira Crítica de Kant,” Veritas 45/4 (2001): pp. 312-321.

 

6.1 -

6.2 -

6.3 -

6.4 -

7. Derrida e o après-Hegel: Desconstruindo a fundamentação normativa da modernidade

 

7.1 -

7.2 -

7.3 -

7.4 -

8. Rawls Judiciario FilPol

 

8.1 - A guinada lingüístico-pragmática em filosofia política

8.2 - Mundo da vida, fenomenologia e filosofia analítica

8.3 - Problemas analítico-hermenêuticos

8.4 - A presentação do mundo

 

9. Direitos Humanos Kant Rawls Pessoa

Conclusão

 



[1] Cf. Pauline Kleingeld, “Kant on the Unity of Theoretical and Practical Reason,” The Review of Metaphysics 52 (1998): pp. 500-528.

[2] Cf. os Prolegômenos às Investigações Lógicas e os escritos da Crise, de Edmund Husserl.

[3] Cf. Amy Gutmann, “Rawls on the Relationship between Liberalism and Democracy,” in Samuel Freeman (org.), The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge University Press, 2003, pp. 168-199; Philip Pettit, “Rawls’s Political Ontology,” Politics, Philosophy and Economics Vol. 4 (2005): pp. 157-174.

[4] Norman Daniels (org.), Reading Rawls. Stanford University Press, 1989, p. xxxi.

[5] Cf. F. Kaulbach, Studien zur späten Rechtsphilosophie Kants und ihrer transzendentalen Methode. Würzburg, 1982; Z. Loparic, A semântica transcendental de Kant. Campinas: CLE, 2000; R. Hanna, Kant and the foundations of analytic philosophy. Oxford University Press, 2001.

[6] Cf. Z. Loparic, “Acerca da sintaxe e da semântica dos juízos estéticos”, “O problema fundamental da semântica jurídica de Kant”, in Daniel Perez (org.), Kant no Brasil. São Paulo: Escuta, 2005, pp. 231-313.

[7] Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, ou principes du droit politique  (1762), Livre I.1.

[8] Ibidem.

[9] Cf. Michael Smith, Meta-Ethics. Aldershot: Dartmouth, 1995. 

[10] Tractatus ethico-politicus. Genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: Edicpucrs, 1999.

[11] Cf. R. Audi, Moral Knowledge and Ethical Character. New York: Oxford University Press, 1997; Richmond Campbell & Bruce Hunter, Moral Epistemology Naturalized, Canadian Journal of Philosophy Suppl. (2000).

[12] Cf. Philip Petit, “The contribution of analytical philosophy” e David West, “The contribution of continental philosophy”, in Robert Goodin and Philip Petit (eds.), A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell, 2003, pp. 7-71.

[13] QUINE, W.V. “Epistemology Naturalized”, in Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969, pp. 69-90.

[14] BECK, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1960, p. 37 n. 14.

[15] DESCARTES, R. Discours de la méthode. Troisième Partie. Paris: Union Générale d’Édition, 1951, p. 53.

[16] Cf. Tractatus ethico-politicus (Edipucrs, 1999) e Tractatus theologico-philosophicus.

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