54ª Reunião Anual da SBPC
Goiânia, UFG, 7 a 12 de julho de 2002
Simpósio ‘País passa por mutação religiosa’

O futuro será sincrético?
Candomblé e umbanda na cena religiosa brasileira

  Reginaldo Prandi

Universidade de São Paulo
[email protected]

 

  I

Na última década, muita coisa mudou também no âmbito das religiões no Brasil. O Censo de 2002 nos diz que o País está hoje menos católico, mais evangélico e menos afro-brasileiro. Velhas tendências foram confirmadas, novas direções vão se impondo. Religiões recém-criadas se enfrentam com as mais antigas, velhas religiões assumem novas formas e veiculam renovados conteúdos para enfrentar a concorrência mais acirrada no mercado religioso. Vou tratar aqui de um ramo religioso pequeno demograficamente, porém importante do ponto de vista de seu significado para a cultura brasileira e da visibilidade que transborda de seu universo de seguidores: as religiões afro-brasileiras.

Antes de mais nada é preciso observar que, no caso das religiões afro-brasileiras, o censo oferece sempre cifras subestimadas de seus seguidores. Isso se deve às circunstâncias históricas nas quais essas religiões se constituíram no Brasil e ao seu caráter sincrético daí decorrente. As religiões afro-brasileiras mais antigas foram formadas no século XIX, quando o catolicismo era a única religião tolerada no País e a fonte básica de legitimidade social. Para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável antes de mais nada ser católico. Por isso, os negros que recriaram no Brasil as religiões africanas dos orixás, voduns e inquices se diziam católicos e se comportavam como tais. Além dos rituais de seu ancestrais, freqüentavam também os ritos católicos. Continuaram sendo e se dizendo católicos, mesmo com o advento da República, quando o catolicismo perdeu a condição de religião oficial.

Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas, estabelecendo paralelismos entre divindades africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do catolicismo, valorizando a freqüência aos ritos e sacramentos da igreja. Assim aconteceu com o candomblé da Bahia, o xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do Maranhão, o batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações, todas elas arroladas pelo censo do ibge sob o nome único e mais conhecido: candomblé. Até recentemente essas religiões eram proibidas e por isso duramente perseguidas por órgãos oficiais. Continuam a sofrer agressões, hoje menos da polícia e mais de seus rivais pentecostais, e seguem sob forte preconceito, o mesmo preconceito que se volta contra os negros independentemente de religião. Por tudo isso, é muito comum, mesmo atualmente, quando a liberdade de escolha religiosa já faz parte da vida brasileira, seguidores das religiões afro-brasileiras se declararem católicos, embora sempre haja uma boa parte que declara seguir a religião afro-brasileira que de fato professa. Isso faz com que as religiões afro-brasileiras apareçam subestimadas nos censos, em que o quesito religião só pode ser pesquisado de modo superficial. Com o tempo, as religiões afro-brasileiras tradicionais se espalharam pelo Brasil todo, passando por muitas inovações, mas quanto mais tradicionais os redutos pesquisados, mais os afro-brasileiros continuam se declarando, e se sentindo, católicos. Mais perto da tradição, mais católico. Um mapeamento dos afro-brasileiros segundo as diferentes regiões mostra isso muito bem: eles são em número relativamente pequeno no Nordeste, região em que a religião afro-brasileira tradicional se formou, o que pode parecer paradoxal, e em número bem maior nas regiões em que se instalou mais recentemente, ou seja, já no século XX, e onde a mudança religiosa no campo afro-brasileiro tem se mostrado mais vigorosa, casos do Sudeste e do Sul. Até hoje o catolicismo é uma máscara usada pelas religiões afro-brasileiras, máscara que evidentemente as esconde também dos recenseamentos.

Um outro ramo afro-brasileiro, a umbanda, formada no século XX, no Sudeste, é igualmente problemática quando se trata de quantificar seus seguidores. Ela é uma síntese do antigo candomblé da Bahia, que foi transplantado para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX, com o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX. No início a nova religião se denominou espiritismo de umbanda, mais tarde, umbanda. Não é incomum, ainda atualmente, os umbandistas se chamarem de espíritas. E também de católicos. O próprio catolicismo, durante anos e anos de propaganda contra a umbanda, a chamava de baixo espiritismo, para diferenciá-la do espiritismo kardecista, que combatia com o mesmo zelo. A umbanda conservou do candomblé o sincretismo católico: mais que isto, assimilou preces, devoções e valores católicos que não fazem parte do universo do candomblé. Na sua constituição interna, a umbanda é muito mais sincrética que o candomblé.

Assim, sempre que se usam dados dos censos sabemos que boa parte dos afro-brasileiros está escondida na rubricas “católico” e “espírita”. Há muito os sociólogos conhecem essa dificuldade (Camargo, 1961). Era de se esperar, contudo, que o novo clima de liberdade religiosa que se respira cada vez mais entre nós, assim como inovações introduzidas por recentes movimentos de africanização e dessincretização das religiões afro-brasileiras, contribuíssem no sentido de tornar a dupla identidade religiosa sincrética menos freqüente. Muitas lideranças afro-brasileiras têm de fato se empenhado em lutar pelo apagamento das vinculações identitárias do candomblé e da umbanda com o catolicismo e o espiritismo.

  II

 

Os dados dos censos, inclusive deste último, não são, como já disse, suficientemente fidedignos no sentido de precisar quantos são os afro-brasileiros. Pesquisas feitas com metodologia mais precisa indicam valores maiores, da ordem de pelo menos o dobro das cifras encontradas pelo censo (Pierucci & Prandi, 1996). Assim, não dá para se usar o censo para dizer em que lugar é maior ou menor o número real de afro-brasileiros, pois diferenças observadas podem simplesmente resultar do fato de que numa região os afro-brasileiros declaram mais freqüentemente que noutras sua identidade religiosa sem o disfarce católico ou espírita.

O censo, entretanto, nos permite comparações ao longo do tempo muito importantes para entendermos o que se passa com essas religiões, pois em cada região a subestimação pode ser considerada característica local, como uma constante preservada ao longo do tempo. Devemos estar atentos para a situação em que de um censo para outro se registra um aumento no número de seguidores declarados: pode de fato ter havido um acréscimo no número de filiados, como pode ter ocorrido um aumento nas declarações em conseqüência de mudança na identidade religiosa que leva o afro-brasileiro a se declarar como tal. Claro que o crescimento das declarações numa região em que a religião foi introduzida recentemente deve apontar para um crescimento real. Já um decréscimo no número de fiéis dificilmente deve refletir maiores dificuldades de alguém se declarar adepto da umbanda ou do candomblé, uma vez que, como já foi enfatizado, tem sido crescente a legitimidade social da livre escolha da religião, sem os constrangimentos tradicionais. Neste caso, um decréscimo no número dos declarados deve mesmo significar uma queda demográfica real. De todo modo, quando tomamos estatísticas para o Brasil como um todo e as comparamos em diferentes épocas, as distorções introduzidas pelos padrões culturais locais e regionais associados com a identidade religiosa acabam se compensando.

Feitas essas ressalvas, o que os dados disponíveis nos mostram é que o conjunto das religiões afro-brasileiras vem perdendo adeptos no últimos vinte anos. Considerando que atualmente são menos imperativas as razões que têm levado os afro-brasileiros a se declararem católicos ou espíritas, a queda recentemente observada pode até mesmo ser maior, uma vez que em censos anteriores as taxas de “escondidos” podiam ser maiores que as de agora, já que agora estariam menos subestimados.

Conforme mostra a tabela anexa, o pequeno contingente de afro-brasileiros declarados representava em 1980 apenas 0,57% da população brasileira residente. Em 1991 eles eram 0,44% e agora, em 2000, são 0,34%. De 1980 a 1991 os afro-brasileiros perderam 30 mil seguidores declarados, perda que na década seguinte subiu para 71 mil. Ou seja, o segmento das religiões afro-brasileiras está em declínio.

Podem ser muitas as razões do descenso afro-brasileiro, mas certamente elas estão associadas às novas condições da expansão das religiões no Brasil no contexto do mercado religioso. A oferta de serviços que a religião é capaz de propiciar aos consumidores religiosos e as estratégias de acessar os consumidores e criar novas necessidades religiosas impõem mudanças que nem sempre religiões mais ajustadas à tradição conseguem assumir. É preciso, sobretudo, enfrentar-se com os concorrentes, atualizar-se. Para religiões antigas, podem ocorrer mudanças que mobilizam apenas um setor dos líderes e devotos, como, por exemplo, ontem, a fração das Comunidades Eclesiais de Base e, hoje, a parcela da Renovação Carismática do catolicismo (Prandi, 1997). Isso vale para os grandes grupos de religiões congêneres. No caso dos evangélicos, avançam os renovados pentecostais, mas declinam algumas das denominações históricas, tradicionais.

Certamente, o sincretismo católico, que por quase um século serviu de guarida aos afro-brasileiros, não deve mais lhes ser tão confortável. Quando o próprio catolicismo está em declínio, a âncora sincrética católica pode estar pesando desfavoravelmente para os afro-brasileiros, fazendo-os naufragar. Por outro lado, é sabido como muitas igrejas neopentecostais têm crescido às custas das religiões afro-brasileiras, sendo que para uma de suas mais bem sucedidas versões, a Igreja Universal do Reino de Deus, o ataque sem trégua ao candomblé e à umbanda e a seus deuses e entidades é constitutivo de sua própria identidade (Mariano, 1999).

 

 

Adeptos declarados das religiões afro-brasileiras nos censos

Brasil, 1980, 1991, 2000

 

Religião

1980

1991

2000

Incremento em %

1980-1991

1991-200

Afro-brasileiras

(candomblé + umbanda)

678.714

0,57%

648.475

0,44%

571.329

0,34%

- 4,5%

- 11,9%

Candomblé

(*)

106.957

0,07%

139.328

0,08%

(*)

+ 31,3%

Umbanda

(*)

541.518

0,37%

432.001

0,26%

(*)

- 20,2%

Brasil, população residente total

119.011.052

100%

146.815.788

100%

169.799.170

100%

+ 23,4%

+ 15,7

Candomblé sobre o total de afro-brasileiros em %

(*)

16,5%

24,4%

 

 

            Fonte: IBGE, Censos Demográficos.  (*) Dado não disponível.

 

 

Os afro-brasileiros estão em declínio, mas não é simplesmente isso o que os dados do censo mostram. Se interrompêssemos aqui a análise, muito da dinâmica das religiões afro-brasileiras deixaria de ser entendido. Para os censos de 1991 e 2000, podemos contar com dados que separam o candomblé e a umbanda, sendo que a classificação candomblé reúne as chamadas religiões afro-brasileiras tradicionais, isto é, as formadas no século XIX (candomblé, xangô, tambor-de-mina, batuque). Pelo menos desde a década de 1950, a umbanda tem sido majoritária no conjunto afro-brasileiro. Formada no Rio de Janeiro nos anos 20 e 30 do século XX, logo se espalhou pelo Brasil todo como religião universal sem limites de raça ou etnia, geografia e classe social. Até essa época, o candomblé e as demais denominações tradicionais continuavam circunscritas àquelas áreas urbanas em que se formaram em razão da concentração de populações negras, isto é, aglutinação de descendentes dos antigos escravos africanos. Continuavam a ser religiões de negros. A umbanda não: ela já nasceu num processo de branqueamento e ruptura com símbolos e características africanas, propondo-se como uma religião para todos, capaz mesmo de se mostrar como símbolo de identidade de um País mestiço que então se forjava no Brasil das primeiríssimas décadas do século XX. Alastrou-se rapidamente.

Parecia que a umbanda seria a única grande religião afro-brasileira destinada a se impor como universal e presente em todo o País. E de fato não tardou a se espalhar também por países do Cone Sul e depois mais além. A umbanda é chamada de “a religião brasileira” por excelência, num sincretismo que reúne o catolicismo branco, a tradição dos orixás da vertente negra e símbolos e os espíritos de inspiração indígena, contemplando as três fontes básicas do Brasil mestiço. Mas, a partir da década de 1960 muita coisa mudou nas religiões afro-brasileiras. O candomblé foi extravasando suas fronteiras geográficas, abandonando os limites originais de raça e etnia dos seus fiéis e ampliando seu território. Espalhou-se pelo Brasil, conquistando para seus quadros até mesmo antigos seguidores da umbanda. Nas pegadas da umbanda, também chegou ao estrangeiro. Cada vez mais foi se fazendo visível através da imagem capturada pelas artes e costumes de uma sociedade consumista e multicultural, marcando presença em esferas culturais não religiosas: literatura, cinema, teatro, música, carnaval, televisão, culinária etc.

No interior das religiões afro-brasileiras, o pequeno candomblé foi crescendo. Em 1991, o candomblé já tinha conquistado 16,5% dos seguidores das diferentes denominações de origem africana. Em 2000, esse número passou a 24,4%. O candomblé cresceu para dentro e para fora do universo afro-brasileiro. Seus seguidores declarados eram cerca de 107 mil em 1991 e quase 140 mil em 2000, o que representa um crescimento de 31,3% num período em que a população brasileira cresceu 15,7%. Sem dúvida um belo crescimento. Por outro lado, a umbanda, que contava com aproximadamente 542 mil devotos declarados em 1991, viu seu contingente reduzido para 432 mil em 2000. Uma perda enorme, de 20,2%. E porque o peso da umbanda é maior que o do candomblé na composição das religiões afro-brasileiras, registrou-se para este conjunto nada mais nada menos que um declínio de 11,9% numa só década. Na década anterior, fato para o qual Ricardo Mariano chamou a devida atenção (Mariano, 2001), as religiões afro-brasileiras já tinham sofrido uma perda de 4,5%, declínio que não somente se confirmou como se agravou na década seguinte. O conjunto encolheu, mas o candomblé cresceu.

  III

Como já sabemos, o termo candomblé, como rubrica censitária, inclui diferentes modalidades religiosas afro-brasileiras. Embora as chamemos todas de religiões tradicionais, para contrastar com a umbanda, que é de formação muito mais recente e muito mais desprendida de elementos culturais trazidos da África pelos escravos, elas têm mudado. Mesmo uma religião tradicional muda com o tempo, ao se enfrentar com novas situações sociais, especialmente quando passa a fazer parte, como concorrente, do mercado religioso. O candomblé tem mudado muito. Transformando-se em religião universal, sem as velhas amarras étnicas que faziam dele religião de preservação do patrimônio cultural e fonte de identidade do negro no Brasil, o candomblé pôde se espalhar pelo Brasil.

Em seu processo de transformação em religião universal, isto é, religião que se oferece para todos, o candomblé conheceu o que os sociólogos chamam de movimento de africanização, que implica certas reformas de orientação fortemente intelectual, como o reaprendizado das línguas africanas esquecidas ao longo de um século, a recuperação da mitologia dos deuses africanos, que em parte também se perdeu nesses anos todos de Brasil, e a restauração de cerimoniais africanos (Prandi, 1991). Um elemento importante do movimento de africanização do candomblé e sua constituição como religião autônoma inserida no mercado religioso é o processo de dessincretização, com o abandono de símbolos, práticas e crenças de origem católica. É a descatolização do candomblé, que se decentra do catolicismo e se assume como religião autônoma. O processo de africanização do candomblé evidentemente é muito desigual e depende das diferentes situações com que se depara aqui e ali. Podemos contudo afirmar com segurança que o candomblé que mais se espalha pelo Brasil, o que mais cresce, é esse que vai cada vez mais deixando de lado as ligações com o catolicismo. Um seguidor desse candomblé pode, se quiser, freqüentar ritos da igreja católica, mas essa participação já não será mais vista como parte do preceito obrigatório a que estavam sujeitos os membros dos candomblés mais antigos; já não é mais um dever ritual. Não é mais necessário mostrar-se católico para poder louvar os deuses africanos, assim como não é mais necessário ser católico para ser brasileiro.

Um seguidor da umbanda está longe dessas preocupações. Ao contrário, ao invés de fortalecer sua identidade religiosa, uma aspiração muito corrente entre os umbandistas é a de se iniciarem também no candomblé. Muitos o fazem e entre esses não são poucos os que acabam abandonando a umbanda definitivamente para se dedicar aos orixás segundo o rito do candomblé. Assim se enfraquece a autonomia umbandista. Nos ritos da umbanda, as preces católicas e a invocação de Jesus, Maria e santos da igreja nas letras dos cantos sagrados continuam indispensáveis. Num hipotético processo de dessincretização da umbanda, grande parte de seu hinário teria que ser abandonada, pois as referências às crenças católicas são muito explícitas.

Umbanda e candomblé são religiões mágicas. Ambas pressupõem o conhecimento e o uso de forças sobrenaturais para intervenção neste mundo, o que privilegia o rito e valoriza o segredo iniciático. Além do sacerdócio religioso, a magia é quase que uma atividade profissional paralela de pais e mães-de-santo, voltada para uma clientela religiosamente alheia à religião africana (Pierucci, 2001). Nesses termos, o candomblé é visto dentro do próprio segmento afro-brasileiro como fonte de maior poder mágico que a umbanda, o que atrai para o seio do candomblé muitos umbandistas. Para o candomblé, que está mais perto do pensamento africano que a umbanda, o bem e o mal não se separam, não são campos distintos. A umbanda, porém, quando se formou, se imaginou também como religião ética, capaz de fazer a distinção entre o bem e o mal, à moda ocidental, cristã. Mas acabou criando para si uma armadilha. Separou o campo do bem do campo do mal. Povoou o primeiro com seus guias de caridade, os caboclos, pretos-velhos e outros espíritos bons, à moda kardecista. Para controlar o segundo, arregimentou um panteão de exus-espíritos e pombagiras, entidades que não se acanham em trabalhar para o mal quando o mal é considerado necessário. Ficou dividida entre dois campos opostos, “entre a cruz e a encruzilhada”, na feliz expressão de Lísias Nogueira Negrão (1996). Tratado durante muito tempo com discrição e segredo, o culto dos exus e pombagiras, identificados erroneamente como figuras diabólicas, veio recentemente a ocupar na umbanda lugar aberto e de realce (Prandi, 1996, cap. 4; 2001). Era tudo de que precisava um certo pentecostalismo: agora o diabo estava ali bem à mão, nos terreiros adversários, visível e palpável, pronto para ser humilhado e vencido. O neopentecostalismo leva ao pé da letra a idéia de que o diabo está entre nós, incitando seus seguidores a divisá-lo nos transes rituais dos terreiros. Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente veiculadas pela televisão, submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar as entidades espirituais afro-brasileiras incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio (Almeida, 1995; Mariano, 1999).

IV

A umbanda e o candomblé, cada qual a seu modo, são bastante valorizados no mercado de serviços mágicos e sempre foi grande — e não necessariamente religiosa — a sua clientela, mas ambos enfrentam hoje a concorrência de incontáveis agências de serviços mágicos e esotéricos de todo tipo e origem, sem falar de outras religiões, que inclusive se apropriam de suas técnicas, sobretudo as oraculares. Concorrem entre si e concorrem com os outros. Por fim foram deixados em paz pela polícia (quase sempre), mas ganharam inimigos muito mais decididos e dispostos a expulsá-los do cenário religioso, contendores que fazem da perseguição às crenças afro-brasileiras um ato de fé, no recinto fechado dos templos como no ilimitado e público espaço da televisão e do rádio. Não foi um ato isolado e gratuito o discurso do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembléia de Deus, um dos apoiadores do candidato evangélico Anthony Garotinho à presidência da república, em que afirmou que uma das “três maldições” do Brasil é a religião africana (Folha de S. Paulo, 30/07/2002, p. A6). Se se confirma esse novo horizonte político-partidário, em que os evangélicos se fazem presentes até mesmo numa candidatura como a de Lula à presidência da república, na espantosa coligação entre o PT e o PL, em parte controlado pela Igreja Universal do Reino de Deus, não há de ser muito alvissareiro o futuro das religiões afro-brasileiras. Nos tempos atuais, a perseguição sofrida pelas religiões afro-brasileiras passou de órgãos do Estado para instituições da sociedade civil. Pode bem voltar ao Estado, se os governos caírem em mãos religiosas intolerantes?

V

Candomblé e umbanda são religiões de pequenos grupos que se congregam em torno de uma mãe ou pai-de-santo, denominando-se terreiro cada um desses grupos. Embora se cultivem relações protocolares de parentesco iniciático entre terreiros, cada um deles é autônomo e auto-suficiente, e não há nenhuma organização institucional eficaz que os unifique ou que permita uma ordenação mínima capaz de estabelecer planos e estratégias comuns na relação da religião afro-brasileira com as outras religiões e o resto da sociedade. As federações de umbanda e candomblé, que supostamente uniriam os terreiros, não funcionam, pois não há autoridade acima do pai ou da mãe-de-santo (Concone & Negrão, 1987). Além disso, os terreiros competem fortemente entre si e os laços de solidariedade entre os diferentes grupos são frágeis e circunstanciais. Não há organização empresarial e não se dispõe de canais eletrônicos de comunicação. Sobretudo, nem o candomblé em suas diferentes denominações nem a umbanda têm quem fale por eles, muito menos quem os defenda. Muito diferente das modernas organizações empresariais das igrejas evangélicas, que usam de técnicas modernas de marketing, que treinam seus pastores-executivos para a expansão e prosperidade material das igrejas, que contam com canais próprios e alugados de televisão e rádio, e com representação aguerrida nos legislativos municipais, estaduais e federal. Mais que isso, a derrota das religiões afro-brasileiras é item explícito do planejamento expansionista pentecostal: há igrejas evangélicas em que o ataque às religiões afro-brasileiras e a conquista de seus seguidores são práticas exercidas com regularidade e justificadas teologicamente. Por exemplo, na prática expansiva de uma das mais dinâmicas igrejas neopentecostais, fazer fechar o maior número de terreiros de umbanda e candomblé existentes na área em que se instala um novo templo é meta que o pastor tem que cumprir.

Grande parte da fraqueza das religiões afro-brasileiras advém de sua própria constituição como reunião não organizada e dispersa de grupos pequenos e quase domésticos, que são os terreiros. Entre as décadas de 1950 e 1970, as religiões de conversão se caracterizavam pela formação de pequenas comunidades, em que todos se conheciam e se relacionavam. A religião recriava simbolicamente relações sociais comunitárias que o avanço da industrialização e da urbanização ia deixando de lado. Tanto no terreiro afro-brasileiro como na igreja evangélica, o adepto se sentia parte de um pequeno e bem definido grupo. A religião da década de 1980 em diante é uma religião de massa. São grandes templos, situados preferencialmente nos lugares de maior fluxo de pessoas, com grande visibilidade, que funcionam o tempo todo — algumas 24 horas — e que reúnem adeptos vindos de todos os lugares da cidade, adeptos que podem freqüentar a cada dia um templo localizado em lugar diferente. Os crentes seguem a religião, mas já não necessariamente se conhecem. O culto também é oferecido dia e noite no rádio e na televisão e o acesso ao discurso religioso é sempre imediato, fácil. Os pastores são treinados para um mesmo tipo de pregação uniforme e imediatista. No catolicismo carismático, a constituição dos pequenos grupos de oração teve que se calçar na criação dos grandes espetáculos de massa das missas dançantes celebradas pelos padres cantores (Souza, 1991). Mudou muito a forma como a religião é oferecida pelos mais bem-sucedidos grupos religiosos. São mudanças a que o candomblé e a umbanda não estão afeitos. Não são capazes de se massificar, mesmo porque a vida religiosa de um afro-brasileiro se pauta principalmente pelo desempenho de papéis sacerdotais dentro de um grupo de características eminentemente familiares. Não é à toa que o grupo de culto é chamado de família-de-santo.

Além de se constituírem em pequenas unidades autônomas, reunindo em geral não mais que 50 membros, os terreiros de candomblé e umbanda usualmente desaparecem com o falecimento da mãe ou pai-de-santo, tanto pelas disputas de sucessão como pelo fato bastante recorrente de que os herdeiros civis da propriedade e demais bens materiais do terreiro, tudo propriedade particular do finado chefe, não se interessam pela continuidade da comunidade religiosa. A não ser em uma dúzia de casas que se transformaram em emblemas de importância regional ou mesmo nacional para a religião, dificilmente um terreiro sobrevive a seu fundador. Tudo sempre começa de novo, pouco se acumula.

VI

Fragmentada em pequenos grupos, fragilizada pela ausência de algum tipo de organização ampla, tendo que carregar o peso do preconceito racial que se transfere do negro para a cultura negra, a religião dos orixás tem poucas chances de se sair melhor na competição — desigual — com outras religiões. Silenciosamente, assistimos hoje a um verdadeiro massacre das religiões afro-brasileiras. Sem um projeto novo de expansão e de reorientação num quadro religioso que se tornou extremamente complexo e competitivo, a umbanda talvez tenha menos recursos que o candomblé para enfrentar a nova conjuntura. Os dados dos censos mostram que é da umbanda que vem o encolhimento demográfico do segmento religioso afro-brasileiro, e o vigor do novo candomblé não tem sido suficiente para compensar as perdas. Nem seus líderes, em grande parte pouco escolarizados, têm sabido como reagir ou como se organizar, mais preocupados que estão em garantir o funcionamento de seus terreiros. A umbanda tem menos de cem anos de idade e parece não conseguir se adaptar às novas demandas que a sociedade apresenta. Já o candomblé, um século mais antigo, porém renovado pelas mutações que vem sofrendo em sua expansão, tem se mostrado mais ágil para se adequar aos novos tempos. É mais uma demonstração de que a religião que não muda morre.

De todo modo, a importância cultural da umbanda, do candomblé, do xangô, do tambor-de-mina, do batuque e outras denominações menores no cenário cultural brasileiro tem sido sempre maior que seu alcance demográfico em termos da efetiva filiação de seguidores. Sua contribuição às mais diferentes áreas da cultura brasileira é riquíssima, como acontece também noutros países americanos em que se constituíram religiões de origem negro-africana. Mas, se se confirma que o Brasil vem se tornando religiosamente menos afro-brasileiro, a fonte viva de valores, visões de mundo, arranjos estéticos, aromas, sabores, ritmos etc., que são os terreiros de candomblé e umbanda, pode entrar em processo de extinção. Não seria um horizonte promissor para o cultivo da diferença cultural e do pluralismo religioso, cujo alargamento alimentou promessas do final do século XX de mais democracia, diversidade, tolerância e liberdade.

  * * *

  Referências bibliográficas

 

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